Míriam Santini de Abreu
Palavras podem encantar e brutalizar. Podem tornar banal o sentimento mais arrebatador; podem cobrir de enlevo o fato mais casual. Li “Passeio ao farol”, de Virginia Woolf, e me lembro ainda agora daquela escrita correndo como fogo líquido nas minhas veias. As mil e tantas páginas de “José e seus irmãos”, de Thomas Mann, atravessei sedenta, devoradora. Eu sorria ao observar o livro fechado e pensar nos capítulos finais, aos quais eu não me rendia, antevendo o prazer dolorido do parágrafo final, da frase derradeira. História tão antiga, bíblica, sabida, mas contada por Mann como se, naquela narrativa, se escondesse o mais indevassado dos mistérios humanos. E por ter estendido as mãos a Mann, a quantas outras leituras ele me levou!
E os jornalistas, ah, o que são esses jornalistas que sabem deixar a letra rolar, enroscar-se com outra, deslizar o sentido, confundir... como disse mesmo Elaine Tavares... desalojar! Ai, um jornalismo que desaloja... que faz um ponderado sentir-se sem chão, um insolente tremer, um sábio perder a compreensão.
Oriana Fallaci, que neste dia 15 faz três anos que partiu, também me desalojava. Era à procura dela que eu me estendia sobre as mesas da hemeroteca da Unisinos, em São Leopoldo, deslizando os dedos sobre os velhos exemplares da revista Realidade, que publicava textos da atrevida italiana. Na época da faculdade não havia a “Estante Virtual”, e andei meses atrás de um livro dela, “Um homem”. Encontrei-o sem querer numa banca na Feira do Livro em Porto Alegre. Puro Serendipity. Como jornalista e escritora, Fallaci é deleite de fera.
Marcos Faerman também me desaloja. Revivem indefinidamente as pessoas que ele entrevistou para reportagens que não canso de ler. Os trindadeiros de Paraty que perderam as terras. Os homens e as águas envenenadas de Alagados. Kosak, o europeu enfeitiçado pelas sombras mortas dos índios xetás.
Eni Orlandi, em seus livros, costuma dizer que somos condenados, desde que nascemos, a interpretar. Precisamos dar um sentido ao mundo, dar um sentido às coisas que acontecem nele.
Assim, pode-se dizer que o jornalista é uma espécie de interpretador profissional, porque seu trabalho é produzir discursos sobre o mundo e fazê-los circular em diferentes meios.
Todos os dias, lemos textos e ouvimos jornalistas que nos trazem notícias de fatos próximos e distantes, e essas notícias são interpretações. Por isso é impossível falar em jornalismo isento.
Ficar isento é renunciar à interpretação. Isso é uma impossibilidade para o ser humano, porque parar de interpretar significa deixar de perceber o mundo, significa morrer.
Quando falamos de um jornalismo feito a partir do Brasil, da América Latina, renunciar à interpretação, ser isento, significa não só a morte individual, mas também a morte coletiva. E por quê?
Porque há, disponíveis, milhões de discursos sobre o mundo, mas poucos são capazes de ajudar a maioria das pessoas a compreendê-lo. E como mudar algo se não o compreendermos?
A questão é que abandonar a idéia da isenção também nos faz sair de uma certa zona de conforto, porque somos obrigados, diante dos fatos, diante da realidade, a fazer escolhas, como seres humanos e como jornalistas. “Ouça sempre o outro lado”, nos dizem. Mas há vários outros lados, há múltiplas versões. Qual levar em conta? A partir da qual, das quais, interpretar?
Essa pergunta transpira em cada pauta, em cada reportagem. E a resposta define o caminho jornalístico de cada um, e por isso a importância da leitura, da análise, da observação das coisas e das pessoas.
Nada disso impede as dúvidas, as inquietações terríveis, a sensação de desamparo. Também, para esses momentos, é preciso buscar respostas.
A minha é a certeza de saber que escolhemos uma profissão privilegiada. Todos os dias, saímos de casa para interpretar o mundo, por força de ser humano e de ser jornalista. E todos os dias eu saio de casa sabendo disso, mas sabendo de um pouco mais:
Como dizia Paulo Freire, tudo na História é possibilidade, nada está determinado. Então, ser jornalista é sair de casa sabendo que o nosso trabalho tem um propósito: é mostrar essas possibilidades que nascem, que se constroem dia a dia em todos os lugares nesse tempo que nos é dado viver.
E do que nos serviria falar sobre essas possibilidades de construção da História? Bem, mais uma vez só posso dar a minha resposta, e para ela uso uma frase de Dom Hélder Câmara, que costumava dizer: “Deus deu ao ser humano o poder e a responsabilidade de não se conformar com o sofrimento e com a dor do inocente, mas de combater o mal e a injustiça. Esta é a tarefa de todos nós”.
E os jornalistas, ah, o que são esses jornalistas que sabem deixar a letra rolar, enroscar-se com outra, deslizar o sentido, confundir... como disse mesmo Elaine Tavares... desalojar! Ai, um jornalismo que desaloja... que faz um ponderado sentir-se sem chão, um insolente tremer, um sábio perder a compreensão.
Oriana Fallaci, que neste dia 15 faz três anos que partiu, também me desalojava. Era à procura dela que eu me estendia sobre as mesas da hemeroteca da Unisinos, em São Leopoldo, deslizando os dedos sobre os velhos exemplares da revista Realidade, que publicava textos da atrevida italiana. Na época da faculdade não havia a “Estante Virtual”, e andei meses atrás de um livro dela, “Um homem”. Encontrei-o sem querer numa banca na Feira do Livro em Porto Alegre. Puro Serendipity. Como jornalista e escritora, Fallaci é deleite de fera.
Marcos Faerman também me desaloja. Revivem indefinidamente as pessoas que ele entrevistou para reportagens que não canso de ler. Os trindadeiros de Paraty que perderam as terras. Os homens e as águas envenenadas de Alagados. Kosak, o europeu enfeitiçado pelas sombras mortas dos índios xetás.
Eni Orlandi, em seus livros, costuma dizer que somos condenados, desde que nascemos, a interpretar. Precisamos dar um sentido ao mundo, dar um sentido às coisas que acontecem nele.
Assim, pode-se dizer que o jornalista é uma espécie de interpretador profissional, porque seu trabalho é produzir discursos sobre o mundo e fazê-los circular em diferentes meios.
Todos os dias, lemos textos e ouvimos jornalistas que nos trazem notícias de fatos próximos e distantes, e essas notícias são interpretações. Por isso é impossível falar em jornalismo isento.
Ficar isento é renunciar à interpretação. Isso é uma impossibilidade para o ser humano, porque parar de interpretar significa deixar de perceber o mundo, significa morrer.
Quando falamos de um jornalismo feito a partir do Brasil, da América Latina, renunciar à interpretação, ser isento, significa não só a morte individual, mas também a morte coletiva. E por quê?
Porque há, disponíveis, milhões de discursos sobre o mundo, mas poucos são capazes de ajudar a maioria das pessoas a compreendê-lo. E como mudar algo se não o compreendermos?
A questão é que abandonar a idéia da isenção também nos faz sair de uma certa zona de conforto, porque somos obrigados, diante dos fatos, diante da realidade, a fazer escolhas, como seres humanos e como jornalistas. “Ouça sempre o outro lado”, nos dizem. Mas há vários outros lados, há múltiplas versões. Qual levar em conta? A partir da qual, das quais, interpretar?
Essa pergunta transpira em cada pauta, em cada reportagem. E a resposta define o caminho jornalístico de cada um, e por isso a importância da leitura, da análise, da observação das coisas e das pessoas.
Nada disso impede as dúvidas, as inquietações terríveis, a sensação de desamparo. Também, para esses momentos, é preciso buscar respostas.
A minha é a certeza de saber que escolhemos uma profissão privilegiada. Todos os dias, saímos de casa para interpretar o mundo, por força de ser humano e de ser jornalista. E todos os dias eu saio de casa sabendo disso, mas sabendo de um pouco mais:
Como dizia Paulo Freire, tudo na História é possibilidade, nada está determinado. Então, ser jornalista é sair de casa sabendo que o nosso trabalho tem um propósito: é mostrar essas possibilidades que nascem, que se constroem dia a dia em todos os lugares nesse tempo que nos é dado viver.
E do que nos serviria falar sobre essas possibilidades de construção da História? Bem, mais uma vez só posso dar a minha resposta, e para ela uso uma frase de Dom Hélder Câmara, que costumava dizer: “Deus deu ao ser humano o poder e a responsabilidade de não se conformar com o sofrimento e com a dor do inocente, mas de combater o mal e a injustiça. Esta é a tarefa de todos nós”.
Um comentário:
uau..isso ficou lindo... nada como um ódio são a nos corroer a veia...
et
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