Por Elaine Tavares - jornalista
Quando a civilização egípcia florescia no vale do Nilo, há mais de cinco mil anos, nas terras de Abya Yala também existiam povos organizados, com língua própria, deuses e rituais. Eram os homens e mulheres de Tambillo, um grupo de caçadores que vivia na região onde ficam hoje as quebradas (oásis) do deserto de Atacama. Tal e qual este grupo, muito outros já começavam a fincar raízes, buscando fugir das altas temperaturas invernais que chegavam a 20 graus abaixo de zero. Segundo registros do museu criado pelo padre Gustave Le Paige, em San Pedro de Atacama, Chile, estes caçadores, já, naquela época, tinham domesticado animais como a llama e a vicuña, e viviam em comunidade.
Dois mil anos depois, quando lá no oriente os gregos iniciaram a formular filosofias, na mesma região do deserto chileno, vicejaram as gentes de Tulor. Eles eram sedentários, formavam povoações, construíam casas circulares, conheciam os segredos para uma arquitetura no deserto, cultivavam a quínua (espécie de cereal) e rendiam homenagens aos deuses registrando seus rituais mágicos em placas de cerâmica. São deles as primeiras obras de arte rupestre daquela parte do deserto de Atacama. Escavações promovidas pelo padre Le Peige dão conta de que, naqueles dias, os homens deformavam os crânios com almofadas para designar sua identidade e seu status na sociedade. As mulheres usavam adornos de turquesa e malaquita, e fica bem claro que eles tinham toda uma rede de comunicação com outros grupos organizados como, por exemplo, com o povo de Tiahuanaco, que vivia na região próxima de onde hoje é La Paz, Bolívia, a 600 quilômetros dali. São incontáveis os registros destas viagens nas pedras do caminho.
Quando o império Romano chegava ao seu auge, dois mil anos antes do presente, os atacamenhos já haviam também sofisticado seu modo de vida, e isso muito se deve ao contato que tinham com a gente de Tiahuanaco e com os Inkas, que viviam na região onde hoje é o Peru. Naquele período é registrado um grande desenvolvimento cultural e social. A metalurgia fica mais complexa, surge a cestaria decorada e são elaborados artefatos em osso e cerâmica para o uso ritual de inalação de alucinógenos. Peças belíssimas podem ser apreciadas no museu, que não devem em nada as peças da cultura ocidental. A cerâmica também fica mais sofisticada, toda trabalhada com figuras antropomórficas que representam mensagens mágicas e falam da cosmologia daquele povo. Os jarros usados nas cerimônias religiosas trazem enigmáticos rostos humanos e o povo já se expressa numa língua que tomaria conta de toda a região: a kunza.
Durante o período que ficou conhecido no mundo europeu como Idade Média, os povos da região das quebradas do Atacama foram se fortalecendo, criando cidades e produzindo cultura. Por volta do ano mil antes do presente, os atacamenhos formavam uma nação independente, unida na língua e no modo de vida. A relação com os Tiahuanacos e Inkas já havia enriquecido sua cosmologia e eles contavam com todo um arsenal de cantos, danças rituais, textos litúrgicos e música. O uso do instrumento feito de bambu, a quena (uma espécie de flauta, ainda hoje usada), também já era habitual. Seu som primal era um chamado aos deuses, todos praticamente ligados às forças da natureza. O sol, as montanhas, os animais eram reverenciados e muitos são os artefatos que os representam nos rituais. O xamã comandava as cerimônias vestido com uma cabeça de felino, cuja força era muito respeitada.
Na quebrada de Tambores, caminho de saída para o comércio com outros povos, que fica em meio a Cordilheira do Sal, muitos são os petroglifos que revelam o cotidiano e as crenças dos antigos atacamenhos. Antes de saírem pela trilha das llamas em direção a Tiahuanaco e outras regiões, eles desenhavam nas pedras, realizando um ritual mágico de tributo à terra e de despedida do Licancabur, a montanha sagrada que se impõe sobre a paisagem. Contam os mais velhos que quando os viajantes perdiam o contato visual com a montanha era preciso fazer muitos rituais, pois significava que a partir dali estariam sozinhos, sem a sua proteção.
Várias múmias - de gente destes tempos antigos - foram encontradas na região, em excelente estado de conservação e algumas delas podem ser vistas no museu, em toda a sua plenitude. É impressionante a múmia de uma mulher, na qual ainda pode-se observar a pele. Bem no meio do museu - que fica em San Pedro de Atacama - logo à entrada pode-se observar como eram sepultados os mortos. Eles eram vestidos com suas melhores roupas e tinham o corpo amarrado com pedaços de pano. Há registros de que a comunidade os levava em procissão até o local do enterro. O morto era colocado sentado e rodeado de todos os objetos que amava. Depois de coberto pela areia, um pedaço de madeira era cravado para indicar onde estava. Até hoje parte destes costumes sobrevive. No cemitério municipal de San Pedro, são bastante comuns os túmulos feitos de adobe, com os objetos do morto enfeitando a lápide. Tal e qual no Egito, eles acreditavam que, na outra vida, o morto precisaria sentir-se confortável e seguro tendo a sua volta as coisas que amava e precisava no seu cotidiano.
Os espanhóis
Como o povo Likan Antay (que significa atacamenho, na língua kunza) comerciava com os inkas e, nos idos dos 1500 até pagava tributo a eles, tão logo os espanhóis ocuparam aquela parte do Tahuantinsuyo, eles ficaram sabendo que havia um povo estranho destruindo tudo e se prepararam para resistir. Um dos lugares onde fincaram a resistência foi em Pukará Quitor (fortaleza do alto). Este lugar é uma fabulosa fortaleza construída no século 11 da era cristã, para a defesa daquela região. É que naqueles dias também havia muitas lutas pelo poder envolvendo os povos mais distantes. O lugar oferece uma visão fantástica de toda a quebrada. Um dos lados é totalmente inexpugnável e o outro tem um campo de visão imenso, ficando muito fácil perceber qualquer aproximação.
Quando em 1536 os espanhóis Diego Dalmagro Valdívia e Francisco Aguirre realizaram expedições de conquista por aquelas terras, foi ali que os atacamenhos resistiram por mais de 20 anos. Assustados, eles viram chegar o povo Yanaconas - que era inimigo dos inkas e auxiliou os espanhóis na conquista – com uma gente feita de ferro, montada em estranhos animais. Eram os espanhóis vestidos de armadura, cavalgando seus corcéis. Apesar da resistência, os Likan Antay não conseguiram vencer as armas de fogo e acabaram se rendendo em 1557. Naqueles dias, 25 chefes locais foram degolados e tiveram suas cabeças penduradas nos muros para lembrar o que podia acontecer a quem não aceitasse a submissão. Pensavam os espanhóis que era o começo do fim daquele povo. Ledo engano. Apesar de tudo, eles sobreviveram e hoje se erguem, fortes, e recuperam suas velhas tradições. Do alto de Pukará Quitor, quem tiver olhos para ver consegue perceber que a cultura Likan Antay caminha segura na mente e no coração dos homens e mulheres da quebrada.
Nos caminhos dos oásis do deserto de Atacama as gentes seguem rendendo pago aos deuses, cultivando sua cultura solidária, agindo firmemente para mostrar ao mundo que os likan antay existem como etnia e lutando para ter suas reivindicações reconhecidas dentro de um estado pluri-nacional. O Chile, tal qual os demais países da América Latina está vendo as culturas originárias, como a dos atacamenhos e dos mapuches, mais ao sul, recuperando sua dignidade e, sem medo, dizendo a sua palavra. Quinhentos anos de ocupação não lograram apagar a cultura de um povo de pródiga beleza. E é por isso que quando chega o pôr-do-sol, lá no Vale da Lua, se ouve a voz antiga, em língua kunza, a sussurrar: aqui vive o povo likan antay!
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