Elaine Tavares - jornalista
No Brasil é assim. Alguns logotipos de imprensa só causam exasperação. É o caso dos da Rede Globo e o da RBS. Para a maioria dos militantes da luta popular eles são símbolos da mentira, da opressão e da manipulação. E essa não é uma reputação conseguida ao acaso. O fato é que a nave mãe (Globo) conseguiu impor um jeito de fazer jornalismo que impregna praticamente todas as redes, principalmente as suas filiadas, como é o caso da RBS. Teoricamente poderíamos enquadrá-lo no campo do jornalismo funcionalista, ou seja, aquele que apenas responde as seis perguntas – onde, quem, como, quando, o quê e por que – sem maiores preocupações com a análise ou o contexto da notícia. Mas, para além da prática do chamado jornalismo liberal (o que pretensamente mostra os dois lados), há toda uma tradição de ocultamento e meias verdades que forjam a usina ideológica da elite e da classe média brasileira. A televisão, com a Globo à frente, é uma fábrica de mentiras, na qual os pobre só aparecem como bandidos e os lutadores sociais como baderneiros “terroristas”.
Para os jornalistas que atuam nestas redes fica colocado, então, um grande desafio. Muitos deles – senão a maioria - estão bem integrados ao jeito de fazer jornalismo que consagra cada uma delas. Mas outros há que buscam fugir destas malhas de desinformação e precisam de um longo caminho até serem recebidos com confiança pelos movimentos sociais e pelos moradores das periferias. Não é sem razão que, em campos conflagrados, como é o caso do Rio de Janeiro atualmente, os jornalistas sejam alvos do ódio e da revolta popular. O que parece interessante é que a maioria das redes e dos periódicos, bem como os órgãos de classe dos jornalistas, não se faça perguntas sobre os por quês dos ataques e do ódio. Há notas de repúdio, há declarações e editoriais virulentos, mas nenhuma linha sobre o tipo de jornalismo que se anda fazendo por aí.
Sempre defendi que o jornalismo não se presta a adjetivos, tais como jornalismo policial, econômico, político, etc... O jornalismo é feito de um único pacote: análise do dia, investigação, contexto, impressão de repórter. Pode-se fazer isso nas mais diferentes áreas, mas é sempre o mesmo fazer contextualizado, partindo de uma situação singular e buscando narrar os fatos de maneira a levar ao leitor/espectador/ouvinte a universalidade do fenômeno, para que cada um possa fazer sua interpretação e chegar a suas próprias conclusões. Narrativas abertas, que respeitam a inteligência do receptor, mas que não se furtam a deixar bem claro o ponto de vista a partir do qual o repórter está narrando. Isso é jornalismo, feito de forma honesta e respeitosa.
Mas, o que se vê, cotidianamente nas televisões, o que se lê nos jornais, revistas e páginas da internet, ou o que se ouve no rádio, não merece ser chamado de jornalismo. Costumo chamar a isso de “gosma”, alguma coisa assim como aquela “coisa verde” de um velho filme de Boris Karloff, “A bolha assassina”. Ou seja, um negócio que vai tomando e engolindo tudo e todos, numa gosma informe e mal cheirosa. Com boa vontade poderíamos chamar a esse tipo de informação que campeia pelas redes informativas de “boa propaganda”, porque quase sempre se prestam a incensar pessoas, empresas, autoridades, fontes oficiais, geralmente os ricos e poderosos. Estes são os que têm voz e vez nas emissoras e só o seu ponto de vista é passado com respeito. Os demais, a ralé, a malta, os empobrecidos, estes estão fora, e quando falam são os coitados ou os marginais. Os exemplos são muitos.
A guerra dos madeireiros contra os índios na região Amazônica é legítima porque os empresários são gente trabalhadora que lutou muito para grilar terras. Já os camponeses do MST são terroristas porque querem terra pra plantar e soberania alimentar. Sempre há dois pesos e duas medidas para as lutas. Quem viu a cobertura da recente crise na Argentina envolvendo os ricos fazendeiros que deixaram o país desabastecido e trancaram estradas por três meses, sabe do que falo. Eram trancamentos legítimos, desobediência civil. Mas imaginem se o movimento de tranca-rua fosse levado a cabo por agricultores sem-terra, desalojados pela monocultura da soja? O que a mídia diria? Desobediência civil legítima ou terrorismo? É, assim é a nossa mídia de cada dia. E o que é pior, com os jornalistas cada vez mais enquadrados neste esquema infernal. Poucas vozes se escutam contra essa prática criminosa de encobrir, enganar. A ditadura midiática parece não ter muitos opositores.
Quando o jornalismo é usado para o crime
Por conta de toda essa prática não causa surpresa nenhuma que as entidades sindicais da categoria dos jornalistas se mantenham silenciosas diante dos fatos abomináveis que aconteceram na Colômbia envolvendo o jornalismo. Nenhuma nota nos jornais, nenhuma fala na CNN. Silêncio reverente. Afinal o que aconteceu foi lá longe, num longínquo país do norte da América do Sul. Mas, o que aconteceu na Colômbia é paradigmático e deve ser debatido à exaustão.
E o que aconteceu? Pois o governo de Álvaro Uribe, durante o comentadíssimo resgate de Ingrid Betancourt, saudado e incensado como um golpe fatal nos “terroristas” das FARC, usou de dois subterfúgios que deveriam ter levantado a ira mundial. No helicóptero que baixou em meio à selva estavam pintados dois logotipos respeitados por todas as gentes desta nossa América profunda: o da Cruz Vermelha e o da Telesur. A Cruz Vermelha, todos sabem, é um símbolo da ajuda humanitária em tempos de guerra. É quem leva esperança de cura para os que estão sob fogo cerrado. Tem lá suas idiossincrasias, mas, enfim, o símbolo desta entidade é reconhecido internacionalmente como uma entidade confiável. Já a Telesur, apesar de jovem, criada há pouco tempo pelo governo venezuelano, se firmou entre os movimentos sociais como uma emissora de televisão que garante o espaço para as vozes marginalizadas pelo sistema. É uma rede latino-americana que se propõe a mostrar a verdadeira cara desta parte do continente, colocada ao lado da comunidade das vítimas.
Pois o uso do logotipo da rede latino-americana não foi debatido por ninguém. Talvez porque pareça incrível aos jornalistas brasileiros uma emissora de televisão ser respeitada, amada e receber a confiança das gentes em luta. O que é normal por aqui é ver os carros das grandes redes sendo apedrejado e os profissionais sendo rechaçados pelos movimentos sociais, porque as gentes sabem que estas emissoras servem ao grande capital, aos poderosos, à elite cortesã das multinacionais e do jeito colonizado de viver.
O presidente Uribe não se constrangeu em confessar que usou os dois logotipos alegando que era necessário para que a operação desse certo. Ou seja, assumiu a ação criminosa e praticamente nenhum órgão de imprensa discutiu esta questão. É que o presidente da Colômbia se encaixa naquilo que Noam Chomsky chama de “vítimas amigas”. Isso significa que quando alguém amigos dos Estados Unidos ou do poder constituído comete algum crime, por ser amigo do “império”, sua ação criminosa fica obscurecida, não é alardeada. A notícia é dada, mas muito sutilmente. E assim foi.
Nem mesmo as entidades dos jornalistas, que se apressaram a gritar contra o governo venezuelano quando este usou do legítimo direito de encerrar a concessão de uma empresa que não cumpria a lei, divulgaram ou soltaram notas de repúdio.
Este pequeno texto procurar abrir a cortina espessa que atravessa o olho da categoria que deveria ser o arauto da verdade. Apesar da penúria das nossas redes de informação, apesar da falta de compromisso público, do descarado posicionamento em favor das elites e dos poderosos, da mentira e do acobertamento, ainda se pode pensar na possibilidade da prática de um jornalismo libertador. Um jornalismo de verdade, capaz de estar ao lado das vítimas do sistema opressor, que possa entregar às gentes em luta o espaço onde se expressar. Esse jornalismo existe e é respeitado. E tão respeitado que foi usado numa ação de guerra. Então por que os jornalistas brasileiros, suas entidades de classe, não falam sobre isso? Por que não informam, não contam a verdade, não denunciam?
Arrisco um palpite. Denunciar esta trama é reconhecer nosso próprio fracasso. Fracasso como jornalistas, incapazes de lutar contra o titã, submetidos a uma razão empresarial, praticando auto-censura, vilipendiando a prática do jornalismo, transformando nosso fazer em propaganda de um mundo falido. A Telesur não é o paraíso do jornalismo, é certo. Mas é uma proposta em construção. O que a torna única é justamente esse compromisso com o outro, a vítima, o sem lugar. É a explicitação de um jornalismo honesto, que se posiciona e deixa claro, ao telespectador, que se posiciona. Não é enganador como o que se pratica por aqui, que se diz imparcial, enquanto só expressa a visão de mudo dos que detém o poder. Termino dizendo o que tenho levado a vida a dizer: o jornalismo é um lindo fazer, capaz da análise, da contextualização, da impressão. Ele não está em crise. Porque o jornalismo não é um ente com vida própria. O que está em crise, ou mal formado, é o jornalista. Estes homens e mulheres jornalistas são os que precisam mudar para que nós, no Brasil, possamos avançar para uma verdadeira soberania comunicacional.
No Brasil é assim. Alguns logotipos de imprensa só causam exasperação. É o caso dos da Rede Globo e o da RBS. Para a maioria dos militantes da luta popular eles são símbolos da mentira, da opressão e da manipulação. E essa não é uma reputação conseguida ao acaso. O fato é que a nave mãe (Globo) conseguiu impor um jeito de fazer jornalismo que impregna praticamente todas as redes, principalmente as suas filiadas, como é o caso da RBS. Teoricamente poderíamos enquadrá-lo no campo do jornalismo funcionalista, ou seja, aquele que apenas responde as seis perguntas – onde, quem, como, quando, o quê e por que – sem maiores preocupações com a análise ou o contexto da notícia. Mas, para além da prática do chamado jornalismo liberal (o que pretensamente mostra os dois lados), há toda uma tradição de ocultamento e meias verdades que forjam a usina ideológica da elite e da classe média brasileira. A televisão, com a Globo à frente, é uma fábrica de mentiras, na qual os pobre só aparecem como bandidos e os lutadores sociais como baderneiros “terroristas”.
Para os jornalistas que atuam nestas redes fica colocado, então, um grande desafio. Muitos deles – senão a maioria - estão bem integrados ao jeito de fazer jornalismo que consagra cada uma delas. Mas outros há que buscam fugir destas malhas de desinformação e precisam de um longo caminho até serem recebidos com confiança pelos movimentos sociais e pelos moradores das periferias. Não é sem razão que, em campos conflagrados, como é o caso do Rio de Janeiro atualmente, os jornalistas sejam alvos do ódio e da revolta popular. O que parece interessante é que a maioria das redes e dos periódicos, bem como os órgãos de classe dos jornalistas, não se faça perguntas sobre os por quês dos ataques e do ódio. Há notas de repúdio, há declarações e editoriais virulentos, mas nenhuma linha sobre o tipo de jornalismo que se anda fazendo por aí.
Sempre defendi que o jornalismo não se presta a adjetivos, tais como jornalismo policial, econômico, político, etc... O jornalismo é feito de um único pacote: análise do dia, investigação, contexto, impressão de repórter. Pode-se fazer isso nas mais diferentes áreas, mas é sempre o mesmo fazer contextualizado, partindo de uma situação singular e buscando narrar os fatos de maneira a levar ao leitor/espectador/ouvinte a universalidade do fenômeno, para que cada um possa fazer sua interpretação e chegar a suas próprias conclusões. Narrativas abertas, que respeitam a inteligência do receptor, mas que não se furtam a deixar bem claro o ponto de vista a partir do qual o repórter está narrando. Isso é jornalismo, feito de forma honesta e respeitosa.
Mas, o que se vê, cotidianamente nas televisões, o que se lê nos jornais, revistas e páginas da internet, ou o que se ouve no rádio, não merece ser chamado de jornalismo. Costumo chamar a isso de “gosma”, alguma coisa assim como aquela “coisa verde” de um velho filme de Boris Karloff, “A bolha assassina”. Ou seja, um negócio que vai tomando e engolindo tudo e todos, numa gosma informe e mal cheirosa. Com boa vontade poderíamos chamar a esse tipo de informação que campeia pelas redes informativas de “boa propaganda”, porque quase sempre se prestam a incensar pessoas, empresas, autoridades, fontes oficiais, geralmente os ricos e poderosos. Estes são os que têm voz e vez nas emissoras e só o seu ponto de vista é passado com respeito. Os demais, a ralé, a malta, os empobrecidos, estes estão fora, e quando falam são os coitados ou os marginais. Os exemplos são muitos.
A guerra dos madeireiros contra os índios na região Amazônica é legítima porque os empresários são gente trabalhadora que lutou muito para grilar terras. Já os camponeses do MST são terroristas porque querem terra pra plantar e soberania alimentar. Sempre há dois pesos e duas medidas para as lutas. Quem viu a cobertura da recente crise na Argentina envolvendo os ricos fazendeiros que deixaram o país desabastecido e trancaram estradas por três meses, sabe do que falo. Eram trancamentos legítimos, desobediência civil. Mas imaginem se o movimento de tranca-rua fosse levado a cabo por agricultores sem-terra, desalojados pela monocultura da soja? O que a mídia diria? Desobediência civil legítima ou terrorismo? É, assim é a nossa mídia de cada dia. E o que é pior, com os jornalistas cada vez mais enquadrados neste esquema infernal. Poucas vozes se escutam contra essa prática criminosa de encobrir, enganar. A ditadura midiática parece não ter muitos opositores.
Quando o jornalismo é usado para o crime
Por conta de toda essa prática não causa surpresa nenhuma que as entidades sindicais da categoria dos jornalistas se mantenham silenciosas diante dos fatos abomináveis que aconteceram na Colômbia envolvendo o jornalismo. Nenhuma nota nos jornais, nenhuma fala na CNN. Silêncio reverente. Afinal o que aconteceu foi lá longe, num longínquo país do norte da América do Sul. Mas, o que aconteceu na Colômbia é paradigmático e deve ser debatido à exaustão.
E o que aconteceu? Pois o governo de Álvaro Uribe, durante o comentadíssimo resgate de Ingrid Betancourt, saudado e incensado como um golpe fatal nos “terroristas” das FARC, usou de dois subterfúgios que deveriam ter levantado a ira mundial. No helicóptero que baixou em meio à selva estavam pintados dois logotipos respeitados por todas as gentes desta nossa América profunda: o da Cruz Vermelha e o da Telesur. A Cruz Vermelha, todos sabem, é um símbolo da ajuda humanitária em tempos de guerra. É quem leva esperança de cura para os que estão sob fogo cerrado. Tem lá suas idiossincrasias, mas, enfim, o símbolo desta entidade é reconhecido internacionalmente como uma entidade confiável. Já a Telesur, apesar de jovem, criada há pouco tempo pelo governo venezuelano, se firmou entre os movimentos sociais como uma emissora de televisão que garante o espaço para as vozes marginalizadas pelo sistema. É uma rede latino-americana que se propõe a mostrar a verdadeira cara desta parte do continente, colocada ao lado da comunidade das vítimas.
Pois o uso do logotipo da rede latino-americana não foi debatido por ninguém. Talvez porque pareça incrível aos jornalistas brasileiros uma emissora de televisão ser respeitada, amada e receber a confiança das gentes em luta. O que é normal por aqui é ver os carros das grandes redes sendo apedrejado e os profissionais sendo rechaçados pelos movimentos sociais, porque as gentes sabem que estas emissoras servem ao grande capital, aos poderosos, à elite cortesã das multinacionais e do jeito colonizado de viver.
O presidente Uribe não se constrangeu em confessar que usou os dois logotipos alegando que era necessário para que a operação desse certo. Ou seja, assumiu a ação criminosa e praticamente nenhum órgão de imprensa discutiu esta questão. É que o presidente da Colômbia se encaixa naquilo que Noam Chomsky chama de “vítimas amigas”. Isso significa que quando alguém amigos dos Estados Unidos ou do poder constituído comete algum crime, por ser amigo do “império”, sua ação criminosa fica obscurecida, não é alardeada. A notícia é dada, mas muito sutilmente. E assim foi.
Nem mesmo as entidades dos jornalistas, que se apressaram a gritar contra o governo venezuelano quando este usou do legítimo direito de encerrar a concessão de uma empresa que não cumpria a lei, divulgaram ou soltaram notas de repúdio.
Este pequeno texto procurar abrir a cortina espessa que atravessa o olho da categoria que deveria ser o arauto da verdade. Apesar da penúria das nossas redes de informação, apesar da falta de compromisso público, do descarado posicionamento em favor das elites e dos poderosos, da mentira e do acobertamento, ainda se pode pensar na possibilidade da prática de um jornalismo libertador. Um jornalismo de verdade, capaz de estar ao lado das vítimas do sistema opressor, que possa entregar às gentes em luta o espaço onde se expressar. Esse jornalismo existe e é respeitado. E tão respeitado que foi usado numa ação de guerra. Então por que os jornalistas brasileiros, suas entidades de classe, não falam sobre isso? Por que não informam, não contam a verdade, não denunciam?
Arrisco um palpite. Denunciar esta trama é reconhecer nosso próprio fracasso. Fracasso como jornalistas, incapazes de lutar contra o titã, submetidos a uma razão empresarial, praticando auto-censura, vilipendiando a prática do jornalismo, transformando nosso fazer em propaganda de um mundo falido. A Telesur não é o paraíso do jornalismo, é certo. Mas é uma proposta em construção. O que a torna única é justamente esse compromisso com o outro, a vítima, o sem lugar. É a explicitação de um jornalismo honesto, que se posiciona e deixa claro, ao telespectador, que se posiciona. Não é enganador como o que se pratica por aqui, que se diz imparcial, enquanto só expressa a visão de mudo dos que detém o poder. Termino dizendo o que tenho levado a vida a dizer: o jornalismo é um lindo fazer, capaz da análise, da contextualização, da impressão. Ele não está em crise. Porque o jornalismo não é um ente com vida própria. O que está em crise, ou mal formado, é o jornalista. Estes homens e mulheres jornalistas são os que precisam mudar para que nós, no Brasil, possamos avançar para uma verdadeira soberania comunicacional.
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