quarta-feira, 5 de março de 2008

Enxoval

Míriam Santini de Abreu
Eu devia ter uns 15 anos quando descobri que minha mãe fazia, às escondidas, o meu enxoval. Delicados conjuntos para enfeite em crochê, toalhas, colchas, lençóis, tudo bordado com ponto cruz colorido e miúdo, lá estavam, na prateleira mais alta do guarda-roupa dela, escondidos. Ah, que berros eu dei naquele dia! Fiz um inflamado discurso contra o que, naquela época, o enxoval significava para mim: casamento formal e filhos. E eu, eu só pensava em ser jornalista.
A mãe, como sempre, fez cara de paisagem, e não deu a mínima para as minhas reclamações. Anos a fio, continuou a comprar conjuntos, toalhas, tecidos de lençóis, e a costurar e pregar, nas barras, peças bordadas naquele caprichado ponto cruz que ela até hoje tem disposição para fazer.
Quando finalmente pude morar num local onde valia a pena colocar adornos tão bonitos, humildemente pedi o enxoval. Olha me olhou com aquela expressão de triunfo e disse que eu deveria, sim, levar o que quisesse, mas aos poucos. E assim é, até hoje.
Toda vez que vou para casa, vasculho o guarda-roupa dela para escolher peças do enxoval. Algumas sequer existem para venda, feitas a mão, com modelos de umas antigas revistas de ponto cruz que a mãe guarda até hoje. Muitas das peças em crochê foram feitas por tias já falecidas ou mulheres conhecidas sobre as quais não se ouviu mais falar.
Se a mãe inventa de dar alguma peça de presente para amigas e parentes, eu faço um berreiro, em atitude quase infantil:
- É meeeeeuuuuuu! É tudo meu!
Pensei nisso a propósito do Dia Internacional da Mulher. Naquela época, o enxoval significava tudo o que eu não desejava para mim, o modelo contra o qual eu me rebelava. Hoje, significa o que é: peças delicadas feitas pela minha mãe. O sentido mudou porque, afinal, eu me tornei o que desejava ser: uma mulher capaz de tomar decisões.

5 comentários:

Samuel Frison disse...

Mimi: que beleza de texto! Parabéns! E viva o enxoval!!! As mães são sábias.

Anônimo disse...

Enxoval, medito profundamente nesta palavra antiga, tão antiga que só pode ter sido criada num dia de chuva e neve lá fora.

Karl

elaine tavares disse...

maravilhoso... como diz o samuel, as mães são sábias e a gente aprende a ver o invisível...

Anônimo disse...

Miri que lindo texto tenho certeza que está usando tudo com muito amor .Beijos Laura

Anônimo disse...

Mimi. Tive uma boa ideia após ler teu texto. Vou atacar teu enxoval enquanto é tempo. Cesoca.