Míriam Santini de Abreu
O mundo, o tempo, nos engolfam de diferentes formas, mais ou menos cruéis, muitas vezes, e sorte ainda pior parece destinada às crianças. Em janeiro, num pequeno município da Paraíba, um menino de nove anos foi assassinado com um tiro na nuca quando retirava mangas de uma propriedade. Esse “retirava mangas de uma propriedade” é de um texto jornalístico de um portal de notícias. É uma paráfrase inquietante, porque carrega sentidos que se perdem se o modo de dizer fosse outro, como “pegava manga numa árvore”. “Retirar” tem uma formalidade que não combina com o gesto de um menino que, numa mangueira, se lambuzava de suco de fruta. E propriedade remete à idéia do privado, o que já provoca um efeito de sentido perigoso, como se valessem, para o menino, as mesmas leis que regem o direito à propriedade privada e as punições à sua violação. Neste caso, a morte.
É assim a crueldade desse tempo com as crianças. As pobres padecem de um limitado espaço, porque cada vez mais há menos lugares para o lazer gratuito e seguro, e de ilimitado tempo, mal-preenchido com o acesso a uma educação formal precária e incapaz de fazer o mundo delas se iluminar. As de classe média têm espaço mais amplo, dilatado pelo poder de compra, ainda que rodeado por cimento e segurança, como os condomínios fechados e os shoppings, tudo bem distante da idéia do espaço público da rua, que era para nós, quando pequenos, motivo de fascínio. Dizíamos: - Mãe, vô pra rua! Tanto espaço, porém, não tem, contrapartida no tempo, porque esses meninos e meninas preenchem os dias com as intermináveis aulas de inglês, espanhol, balé, natação, horário para arrumar o aparelho dos dentes, fazer terapia e o que mais o dinheiro puder pagar. E são cuidadosamente vigiados por celular, câmeras e até GPS, como li em recente reportagem.
O menino que chupava manga é mais uma vítima disso, dum mundo e dum tempo cada vez mais incapazes de não ver como transgressão o gesto inesperado, que sai das normas, que foge das regras. No prédio onde moro, as reuniões de condomínio sempre trazem um tema para discussão: o barulho das crianças. Para muitos, é intolerável que elas façam brincadeiras fora do tal pátio de esportes, uma cinzenta área que lhes foi destinada para viver a infância. Ali devem ficar. E em breve será votada a possibilidade de que se multem as que ficarem com suas algazarras fora do espaço onde elas são “condominialmente” aceitas.
Há uma menina que volta e meia caminha de uma ponta a outra do conjunto de prédios, sozinha, e pára quem vê com a mesma pergunta:
- Tu tem gato ou cachorro?
E se lhe pedem o porquê da curiosidade, ela responde que quer alguém para brincar.
O mundo que essas crianças compartilham parece ser cada vez mais intolerável, com seus ruídos e inquietações para as quais não se aplicam nossas respostas. Que se enquadrem rapidamente. Fiquem no pátio de esportes e jamais, em momento algum, se atrevam a desejar mangas.
Um comentário:
Ô MI, olha a sinergia.. escrevi um texto sobre o barulho das crianças do campeche... lá ainda há vida na infãncia.. que bênção!!!!
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