sábado, 21 de setembro de 2013

“Yo soy Kihili”






Por elaine tavares  - jornalista em Florianópolis

Ali estava ela, no palco, a dizer poesia. Magrinha, roupas coloridas e um chapéu estranho. Parecia mais uma maga, uma sacerdotisa de algum credo antigo. Depois, como se não bastassem os versos falados, cantou, canções camponesas, grito primal. Feiticeira, encantou cada um daqueles que se reuniam no ginásio de esportes da fria Sucre, capital administrativa da Bolívia. Ali estava para discutir os rumos desta Abya Yala rebelde e originária.

Seu nome judeu é Ruth Zafra, mas ela não é mulher para deixar que alguém lhe imponha algo. É fêmea livre. Então, crescida, decidiu seu novo nome, que vem das entranhas da terra ancestral. “Yo soy Kihili Kunturpillku”, repete, orgulhosa de sua descendência autóctone, do povo chimarrón, “que nunca se deixou escravizar”. A idade, não diz, mas garante que é do tempo em que a guerra era nos sopapos. Vive pelos caminhos de “nuestra América”, fazendo poemas, antecipando o tempo novo, que virá.

Kihili não é mulher para ser narrada. Ela se diz a si mesma e são delas as palavras que a contam. Mulher-povo, cantadeira, contadora de histórias, filha dileta de Abya Yala. Uma criatura para ser guardada nas retinas. Magrinha como um bambu. Forte como a tormenta. Kihili.

“Eu creio que nasci no limite de tudo. Nasci na fronteira entre Colômbia e Venezuela e no limite entre o norte de Santander e Guajira. E sempre estive no limite das coisas boas e más. Minha família, já naquela época, coisa impensável, não era católica, nem conservadora, nem liberal. Meu pai era um livre pensador, um socialista, um marxista estruturado, um homem vertical, quando a palavra vertical não era pejorativa. Ele tinha uma máxima filosófica que aplicava o tempo todo: o único objetivo de uma pessoa na vida deve consistir em ser irrepreensível.

Ele dizia, “aos meus filhos educo sem ódio e sem medo”. Então, no dia em que cumpri três anos, ele pôs a mão na minha cabeça e disse à minha mãe: “de amanhã em diante vamos ensiná-la a ler e escrever”. De tal maneira que aos quatro anos eu já escrevia e lia criticamente. Todos os dias fazia 20 linhas sobre o editorial do jornal El Tiempo. E nunca deixei de fazer essa tarefa. Por isso digo com muito prazer, e menos com orgulho, que eu não possuo nada nesta terra que não possa carregar nos meus ombros. Mas ainda assim sinto que sou a mulher mais rica do mundo. Sou opulenta porque a base da minha riqueza é que meus pais jamais me mentiram.

Eu venho de um lugar onde se diz a verdade às crianças desde o momento em que começa a perguntar. Se um garoto está aprendendo a caminhar e cai, todos olham para o outro lado. E se por acaso ele chora porque não olharam para ele, o que está mais perto pergunta:  “Que aconteceu?” A criança chora contando que caiu. Então este adulto responde: “Ah, sim? Então da próxima vez tenha mais cuidado e olhe bem onde vai colocar os pés para não cair outra vez”. É assim que nos educam para a vida. As mães dizem: “Eu cortei o cordão umbilical dos meus filhos na hora em que os pari”. Nenhuma mãe põe seus filhos sob a saia, eles nasceram para a vida, então têm de ser formados para a vida. Têm que aprender, sofrer os golpes, porque a vida não é feita de hem-hem-hem. Por isso sinto pena da geração de hoje em dia. Os pais fazem de tudo porque se sentem culpados e dedicam todo seu tempo a conseguir dinheiro para pagar o psicólogo do filho que tem problemas.

Mas eu prefiro falar do que há de bom. Eu cresci com uma disciplina incrível. E só para ilustrar. Houve há pouco tempo um concurso para escolher qual a palavra mais bonita da nossa língua e terminaram declarando como tal um conceito. A palavra mais bonita da nossa língua é “inverosimilitud”. Ah, que palavra! Então eu me criei com uma disciplina inverossímil. Mas a disciplina não era imposta. Meu pai jamais faltou à mesa, e ali se abençoava a comida sempre. Minha mãe era uma mulher muito religiosa, muito protestante, evangélica. Segundo ela, a mulher devia viver com a cabeça baixa, coberta, não falar em voz alta, em público. Bom, eu sou o seu karma.

Ela sofreu muito comigo porque queria que seu primogênito tivesse sido varão. E nasci eu. Por isso meu pai me criou assim. Até os cinco anos já havia escutado e lido os contos para crianças de todas as culturas da terra. Porque nós tínhamos apenas dois pares de sapato, o do aniversário e o do colégio. No natal ganhávamos um jogo e era tudo. Lembro de uma situação em que, aos cinco anos, ganhei uma boneca e minha irmã menor começou a chorar porque a queria. A minha mãe interveio dizendo: ela é pequena, dê-lhe a boneca. Então eu fui até meu pai e disse: Não quero mais ganhar brinquedos a partir de agora, eu quero livros. Então, toda a poupança do ano era para a feira de livros de Bogotá, que apresentava quase 36 hectares de livros.

Assim, minha casa vivia abarrotada de livros. Eu me criei numa biblioteca de 18 mil exemplares. O maior quarto da casa era para a biblioteca e a casa estava cheia de livros por todos os lados. Tínhamos um dicionário ilustrado da Academia Real da Língua feito com tinta chinesa, era gigantesco e pesava muitos quilos. Ele vivia aberto, mas para passar suas folhas tínhamos de lavar as mãos e seca-las com uma toalha branca que ficava ali perto só para esse ritual. Era uma disciplina incrível.

Vou resumir a minha infância. Dos cinco aos seis anos li todos os livros sagrados da terra, versão para crianças, que incluía “As mil e uma noites”, “O anel dos Nibelungos” etc... Dos seis aos sete li toda a novelística. Nunca vou esquecer “A Mãe”, de Máximo Gorki, “Guerra e Paz”, toda a obra de Dostoievski, de Tolstoi. Li todos os grandes, porque meu pai era assim, ele dava o exemplo e eu tinha disciplina, lia e lia e lia. E minha mãe, num determinado momento, começou a dizer que aquilo não era uma virtude e sim um vício e passou a esconder os livros. Dos sete anos aos oito eu já lia Lênin e logo me enfrentei com Freud. Aos nove eu lia Nietzsche e meu pai pediu que eu esperasse um pouco, até os 16 anos, para ler Kant. Mas, eu também lia muita literatura religiosa. E a poesia? Ah, esta, desde o ventre da minha mãe até o dia de hoje. Poesia? Toda a que se me apareça.

Aos sete anos, não sei o que aconteceu, mas eu chorei. E meu pai logo me disse: Imagine que aconteça uma catástrofe, que não haja sobreviventes mais que um grupo de crianças de pouca idade e uns três ou quatro velhos, tu serias capaz de pegar essa gente e ir adiante, e fazer dessa gente um povo de homens e mulheres livres? Imagine você! Isso aos meus sete anos, de maneira que aos dez eu estava preparada para isso. E já havia lido tudo sobre o Yoga, e todos os grandes livros filosóficos e sagrados, toda a lenda e mitologia dos povos. Assim que aos 12 anos, o rio Arauca (a morte) chegou a meu pai e eu fiquei a primogênita de seis irmãos. Assim, aos 13 anos eu era a rádio-jornalista licenciada mais jovem do meu país. Até os dezoito anos levei três salários para casa, fiz o que fariam três homens e levei meus irmãos para frente. Todos eles são doutores, têm mais de um título, carros, casa, fazendas, tratores. A única que não têm nada e é a analfabeta da família, sem títulos, sou eu. É uma glória pra mim dizer isso: Não tenho nada. Jamais tive poupança, conta bancária, nada. O que tenho é a poesia, a música e o que sei dentro de mim”.

Esta é Kihili. Aquela que não tendo nada, tem o mundo, e o amor de todos aqueles que cruzam seu caminho bendito!

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