Por Marcela Cornelli
As mobilizações que seguem no País desde junho trouxeram à tona a discussão sobre a desmilitarização das polícias. A repressão à manifestação do Movimento Passe Livre em São Paulo em junho repercutiu em todo o País, sensibilizando a sociedade, e desencadeou as lutas nas ruas com o lema “Não é só por 20 centavos”. Por outro lado, movimentos sociais ligados ao movimento negro e às Mães de Maio, entre outros, principalmente no Rio de Janeiro, gritavam “Na favela as balas não são de borracha”, chamando a atenção para as chacinas e mortes de jovens negros e pobres nos morros pela polícia.
Vista por muitos como herança da ditadura militar no País, a Polícia Militar como está estruturada hoje existe como força auxiliar às Forças Armadas, tem treinamento militar e identifica o “inimigo” como pobre, negro e favelado. Além disso, é submetida à Justiça Militar e não ao julgamento pela Justiça comum. A desmilitarização vem ganhando espaço na sociedade e até mesmo entre os Praças. Estes também são prejudicados em seus direitos trabalhistas e de organização sindical pela militarização das polícias. Até o Corpo de Bombeiros é militarizado no Brasil. Também heranças da ditadura temos a Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (Rota) e o Batalhão de Choque. Em países como os Estados Unidos e Inglaterra as polícias são 100% civis. A desmilitarização, que não significa acabar com a polícia armada e de farda, pode não ser a única solução para a atuação violenta das PMs que acabam servindo como braço direito do sistema capitalista, tomando partido contra aos trabalhadores na luta de classes, mas é um debate que merece toda a atenção por parte do movimento sindical e dos partidos de esquerda. Afinal cada vez mais os movimentos sindical e social são criminalizados nas ruas.
“Eu sou favorável à desmilitarização. Não vejo justificativa lógica para um sistema militar em uma instituição que presta um serviço de natureza civil, de segurança pública. O militarismo nas polícias serve a interesses de pequenos grupos, elitistas, e prejudica a prestação de um serviço público de qualidade por estas instituições, uma vez que retira dos policiais e bombeiros alguns direitos civis e políticos, como liberdade de expressão, filiação partidária e sindical, entre outros”, defende o soldado da PM, especialista em segurança pública e coordenador de imprensa da Associação de Praças do Estado de Santa Catarina (Aprasc), Everson Henning.
Everson que é também jornalista e mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal em Santa Catarina (Ufsc), conta que a Aprasc já fez campanha com o slogan “Desmilitarização Já!”, em 2009 e 2010. Ele lembra que, na época, aconteciam os debates da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública e os Praças enfrentavam um duro embate com o Governo Estadual e com o comando da PM. “Sofremos duros golpes na Justiça Militar e na Corregedoria da PM, resultando na exclusão de 22 Praças e em milhares de processos administrativos e judiciais contra os diretores e apoiadores da Aprasc. Mas a campanha foi efêmera, talvez mais como resposta às agressões que estávamos sofrendo. Nunca fizemos um debate amplo com a categoria e acreditamos que o assunto divide muito a opinião dos Praças”, ponderou.
O soldado explica que desmilitarização não significa retirar a farda, nem acabar com o serviço de natureza ostensiva, a hierarquia e a disciplina. “No caso específico das PMs e Bombeiros, desmilitarizar passa pela alteração da Constituição Federal, retirando a vinculação dessas corporações com as Forças Armadas, fim das Justiças Militares Estaduais e substituição dos regulamentos disciplinares por códigos de ética”, diz.
Desmilitarizar resolve o problema da repressão?
Para Everson , o ideário militar, de “combater o inimigo” contribui para a atuação mais violenta da PM nas manifestações populares e a herança da ditadura militar de 1964 também deve ser considerada, pois naquele período a PM foi utilizada para combater o povo que se manifestava exigindo democracia. “Mas não podemos ter uma visão ingênua de que somente a desmilitarização será capaz de produzir uma Polícia Cidadã, até porque vemos diariamente casos de abusos, torturas e repressões por parte de policiais civis, agentes penitenciários e outros agentes do Estado que não são militares. A desmilitarização é um começo, necessário, para a construção dessa Polícia Cidadã, mais próxima do povo e com os esforços mais voltados à segurança pública de fato e não à manutenção da ‘ordem’”, defende. Para o dirigente da Aprasc, a desmilitarização só vai regularizar o que já acontece na prática. Desde meados da década de 1990, os Praças das PMs e Bombeiros estão se manifestando nas ruas, organizando paralisações e movimentos. “Nossa categoria perdeu o medo e a manutenção das restrições atuaisdo sistema militar só vai contribuir para acirrar ainda mais as contradições internas das instituições e causar conflitos cada vez mais graves.
Desmilitarizar é uma necessidade de o próprio Estado manter a ‘ordem’ e evitar que o barril de pólvora dos quartéis exploda de vez. Os praças não aceitam mais o tratamento que recebiam no século passado, os gritos por liberdade e dignidade já ultrapassaram os muros dos quartéis e não vamos mais retroceder, mesmo com prisões, ameaças e processos a nossa luta vai continuar”. Everson fala que na sociedade civil a recepção desta discussão tem sido boa, desde as camadas mais populares até as camadas médias, acadêmicos, intelectuais e militantes. “Ainda enfrentamos resistência nos quartéis e inclusive entre os Praças, que, paradoxalmente, são as primeiras e maiores vítimas. Parece contraditório, mas é preciso entender que muitos policiais e bombeiros militares foram treinados sob o ideário militar. Além disso, entra também uma questão de corporativismo, ou seja, desmilitarizar significa acabar com a instituição e acabar inclusive com a própria condição de “praça”. É uma mudança muito grande.
Acredito que por isso causa essas reações negativas em alguns companheiros de caserna”. Tramitam hoje no Congresso Nacional propostas de emendas constitucionais que tratam da desmilitarização. “A PEC 102 do senador Blairo Maggi abre um caminho importante, mas para ocorrer a desmilitarização de fato é necessário um projeto de lei que seja bem explícito no que diz respeito ao fim das justiças militares estaduais e também ao fim da vinculação com as Forças Arma-das. O texto da PEC 102 apenas ‘faculta à União e aos Estados a adoção de polícia única’. Ou seja, a PEC 102 pode, mas não necessariamente vai levar à desmilitarização”, opina o soldado.
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