Conto
Gilberto Motta
1
Catarina chegava sempre com o bordão da esperança, "Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no teu pé...". Mulher de corpo mínimo, cabelos loiros de tintura barata, seios e pés enormes. Os pés de Catarina eram inacreditáveis. Catarina era uma anã ao contrário: pequena no tamanho, imensa de coração. Vivia ali pelos lados do mercado público e nunca se soube sobre a sua origem.
O negro Adilson saíra de Laguna para ganhar a Capital. Desembarcou na ilha como quem desaba de um viaduto. Era engraxate, e dos bons. O sucesso passaria pelo velho mercado. Alguns dias e já era reconhecido pelo brilho nos sapatos dos figurões no Box 32. O tempo -feito a cobra da maçã-, tecia a sua rede e o destino do negro e da anã.
A anã chegava cedo para vender seus bilhetes. Entre uma venda e outra, tecia a suas histórias. Aquela, do ex-garçom do Bar do Gaúcho que a pedira em casamento. A outra, do velho turco anotador do jogo do bicho, que lhe prometera filhos casa na Lagoa. Há também a lenda do emérito desembargador que, entre um gim e outro, escrevia poesias eróticas e sonhava delírios com a anã. De fato, Catarina provocava fascínios, estranhamentos e insólitas paixões. Adilson era um belo negro. Rapazola ainda, mas pulou cedo dos sapatos brilhantes para o brilho do crack e da malandragem. Subiu o morro da Prainha e se vendeu aos dragões. Logo, o negro lindo estava um trapo.
2
Naquela noite, Catarina sonhou que acertara na loteria, arranjara um amor e sumira para São Paulo. Acordou na mesma hora, acendeu as velhas no pequeno altar dedicado a Nossa Senhora do Desterro, produziu a detalhada maquiagem, baforou nos cabelos o laquê barato e partiu para o mercadão. Adilson fumou crack a noite inteira. Acordou com tiros no morro; pegou a caixa e desceu para a cidade. Antes do meio dia os dois se encontraram pela primeira vez. "Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no pé...", disse a anã para o negro. "Quanto é a tira, bonequinha?", respondeu Adilson. "Pra você? Só cinco pilas!". Devolveu Catarina com voz sensual. Adilson juntou os trocados e comprou o bilhete da cobra. Era sábado e o mercado público estava em chamas. Até o vento sul abrira um precedente e não soprara na ilha naquele dia. Estranhamente a cidade estava em paz. Os corações de Adilson e Catarina, não. Ao cair da tarde, o primeiro beijo. No início da noite, as carícias mais íntimas. Nas primeiras horas da madrugada, o sexo "com beijo na boca", embaixo da ponte Hercílio Luz. E veio o silêncio.
O corpo miúdo de Catarina foi encontrado no início da tarde em um bebedouro abandonado sob a ponte. As pedras foram insuficientes para ocultá-lo e os pés da anã serviram de faróis para a localização. O negro engraxate se escondeu por uma semana até ser preso. Dias depois, foi assassinado, por espancamento, em uma das celas da cadeia pública. “Justiça de marginal...Ninguém assume a autoria”, diria o delegado na TV.
3
Dizem que, ainda hoje, nas manhãs dos sábados de vento sul, na Ilha da Magia, o vulto da anã Catarina pode ser visto negociando seus bilhetes pelas ruas estreitas do centro; os pés enormes, desproporcionais, pisando delicadamente as pedras do vão central do velho mercado.
***
Gilberto Motta
1
Catarina chegava sempre com o bordão da esperança, "Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no teu pé...". Mulher de corpo mínimo, cabelos loiros de tintura barata, seios e pés enormes. Os pés de Catarina eram inacreditáveis. Catarina era uma anã ao contrário: pequena no tamanho, imensa de coração. Vivia ali pelos lados do mercado público e nunca se soube sobre a sua origem.
O negro Adilson saíra de Laguna para ganhar a Capital. Desembarcou na ilha como quem desaba de um viaduto. Era engraxate, e dos bons. O sucesso passaria pelo velho mercado. Alguns dias e já era reconhecido pelo brilho nos sapatos dos figurões no Box 32. O tempo -feito a cobra da maçã-, tecia a sua rede e o destino do negro e da anã.
A anã chegava cedo para vender seus bilhetes. Entre uma venda e outra, tecia a suas histórias. Aquela, do ex-garçom do Bar do Gaúcho que a pedira em casamento. A outra, do velho turco anotador do jogo do bicho, que lhe prometera filhos casa na Lagoa. Há também a lenda do emérito desembargador que, entre um gim e outro, escrevia poesias eróticas e sonhava delírios com a anã. De fato, Catarina provocava fascínios, estranhamentos e insólitas paixões. Adilson era um belo negro. Rapazola ainda, mas pulou cedo dos sapatos brilhantes para o brilho do crack e da malandragem. Subiu o morro da Prainha e se vendeu aos dragões. Logo, o negro lindo estava um trapo.
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Naquela noite, Catarina sonhou que acertara na loteria, arranjara um amor e sumira para São Paulo. Acordou na mesma hora, acendeu as velhas no pequeno altar dedicado a Nossa Senhora do Desterro, produziu a detalhada maquiagem, baforou nos cabelos o laquê barato e partiu para o mercadão. Adilson fumou crack a noite inteira. Acordou com tiros no morro; pegou a caixa e desceu para a cidade. Antes do meio dia os dois se encontraram pela primeira vez. "Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no pé...", disse a anã para o negro. "Quanto é a tira, bonequinha?", respondeu Adilson. "Pra você? Só cinco pilas!". Devolveu Catarina com voz sensual. Adilson juntou os trocados e comprou o bilhete da cobra. Era sábado e o mercado público estava em chamas. Até o vento sul abrira um precedente e não soprara na ilha naquele dia. Estranhamente a cidade estava em paz. Os corações de Adilson e Catarina, não. Ao cair da tarde, o primeiro beijo. No início da noite, as carícias mais íntimas. Nas primeiras horas da madrugada, o sexo "com beijo na boca", embaixo da ponte Hercílio Luz. E veio o silêncio.
O corpo miúdo de Catarina foi encontrado no início da tarde em um bebedouro abandonado sob a ponte. As pedras foram insuficientes para ocultá-lo e os pés da anã serviram de faróis para a localização. O negro engraxate se escondeu por uma semana até ser preso. Dias depois, foi assassinado, por espancamento, em uma das celas da cadeia pública. “Justiça de marginal...Ninguém assume a autoria”, diria o delegado na TV.
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Dizem que, ainda hoje, nas manhãs dos sábados de vento sul, na Ilha da Magia, o vulto da anã Catarina pode ser visto negociando seus bilhetes pelas ruas estreitas do centro; os pés enormes, desproporcionais, pisando delicadamente as pedras do vão central do velho mercado.
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Um comentário:
Ah Gilberto que linda recuperação da história daquela mulher que víamos todos os dias e que se foi de uma forma tão brutal....Lindo, lindo, lindo...
Obrigada por esse presente.
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