Por Rafiqa Salam
Palestina, novembro 2010
Depois de uma estada sob o sol escaldante em Ramallah, decidi ir para Saffa. Fugi do calor, mas não do inferno da ocupação.
Pior que os buracos das estradas em que podemos trafegar com a nossa placa verde, é ver de longe as autopistas israelenses, feito tapetes serpenteando as terras palestinas.
Cheguei em Saffa e o calor que me cercou foram os abraços fraternais dos palestinos que já tinham morado no Brasil! Isso mesmo, em Saffa, metade dos palestinos de lá já viveu no Brasil!
Muitas conversas e saudade de outros ares mais tranquilos, pois não deu para deixar de ver dois carros do exército israelense passarem nas ruas da tranquila Saffa só para marcar presença...
Como pode alguém que já morou no Brasil, que não enfrentou problemas com documentação e permanência, que pode escolher ter brasileiros como vizinhos, que conheceu e conviveu com o jeito alegre dos brasileiros, resolver voltar para a Palestina? Entre um café e outro chá, perguntei.
Eles olharam para mim e responderam: “Você quer respostas em palavras? Você com suas perguntas para entender o que o coração decide e não as palavras...”
Mas como aprendi com eles a ser persistente, repeti e emergiram doces palavras: “Meu pai fez tudo pela Palestina, fora daqui e aqui dentro. Nós trabalhamos juntos, lembra? Com todas aquelas dificuldades, defendíamos a Palestina livre e contávamos com a maravilhosa solidariedade do povo brasileiro. Mas sabíamos que um dia retornaríamos para cá, era o que meu pai queria. Ele chegou primeiro, em 1999, e eu vim logo depois, minha mãe ainda ficou no Brasil e estava fazendo a documentação para vir. Tanta vida, tanta luta, voltamos para cá, mas quando minha mãe conseguiu vir, meu pai já havia morrido... Então fiquei, casei, tenho três filhos, e essa é a minha casa, essa é a minha terra, esse é o meu país, daqui eu não saio e daqui ninguém me tira.” Fiquei emocionada, todo grande pai tem um grande filho. Tive o prazer de conhecer o pai dele no Brasil, sua família e seu filho, que hoje, um pouco antes da nossa conversa, recebeu, depois de nove anos, meus sentimentos pela morte de seu pai. Trabalhamos juntos na defesa da causa palestina em Porto Alegre, no final da década de 80, e depois em Santa Catarina, nos anos 90, até que em 1999, sempre firme, como tudo o que fez na vida, retornou para sua terra. Seu filho, logo depois, chegou e juntos conheceram o que sobrou da Palestina, como se fosse uma despedida, sem saber que logo a morte seria o que o afastaria de ver sua Palestina livre. E eu sentada ali, na frente daquele homem, hoje com 38 anos, com os filhos pulando em seu colo, sua esposa servindo chá, sua mãe lembrando de sua filha que ainda está no Brasil... Parecia, por um segundo, uma vida tranquila... até ele trazer uma foto... A casa do pai, a casa que foi de toda a família, hoje não existe mais... Só a foto. Mas antes que eu falasse qualquer coisa, ele, com orgulho, disse que aquela nova casa em que estávamos havia sido construída por ele! Falou-me de seu trabalho também, como pedreiro em Mevo Horon, em Israel, nem me arrisquei a perguntar o salário!
Mas uma questão me incomodava, então questionei por que ele quis voltar, se no Brasil eles tinham uma boa vida? A resposta não foi em palavras, pois vi em seus olhos o que o coração havia decidido: “Meu pai foi um grande militante, como um comandante na América Latina, e nos criou amando a nossa bandeira. Sempre quis voltar, para morar e morrer no país dele. Ele queria sua família reunida na Palestina. Nasci no Brasil, amo os brasileiros, mas eu sigo o desejo de meu pai. Hoje, eu continuo a fazer o trabalho que realizávamos, vou sempre continuar a lutar pela Palestina livre, mas escolhi o mais difícil: morar aqui e constituir uma família. Para mim, o cotidiano é revolucionário, educar meus filhos transmitindo o amor à terra que recebi é revolucionário e é muito difícil frente às privações que passamos... mas é lindo, fixar raízes, não tem nada no mundo que me faça sair daqui. Se eu sair daqui, minha casa vira um assentamento judaico. Posso retornar ao Brasil, para visitar, mas minha casa é aqui. Em respeito ao meu pai e a todos que permaneceram aqui, fico, para preparar a Palestina para os que virão!”
Depois de escutar esse canto que veio de dentro do coração, enxuguei minhas lágrimas e percebi que o calor de Ramallah não era nada, então voltei e vi que era suportável. Agora sei o que significa ficar na Palestina!
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