Elaine Tavares
Neste dia 30 de outubro dois comediantes convocaram uma das maiores manifestações dos últimos tempos, como milhares de pessoas no centro de Washington exigindo “sensatez” diante de uma conjuntura eleitoral marcada pelo tom extremista da direita e um debate midiático que quase chega as raias da loucura.
Nesta manifestação sem precedente, com uma mensagem tão séria que só poderia ser emitida pelo humor, o comediante Jon Stewart, âncora do noticiário satírico/fictício The Daily Show, e seu sócio Stephen Colbert, âncora do The Colbert Report, também uma sátira dos programas de comentaristas de direita, fizeram troça do discurso político que invadiu a conjuntura eleitoral, sobretudo o que promove o temor dos cidadãos.
No ato, chamado de “Restaurar a Sensatez e o Temor”, teve um toque tradicionalmente liberal – de buscar a calma e a tolerância – e, às vezes, a mensagem era tão simples como se fosse um convite aos bons modos. Mas as críticas emitidas por meio do humor, a ironia e a sátira acabaram por ser muito radicais para desnudar a retórica do temor, racismo, homofobia e xenofobia que tem contaminado o debate político e mediático no país.
Um dos cartazes que levava um participante dizia algo como “quando os políticos são palhaços, os comediantes são os únicos sérios”. De acordo com os cálculos extra-oficiais, participaram mais de 200 mil pessoas, o dobro da massiva manifestação convocada pelos conservadores há alguns meses, e também bem maior do que a realizada pelo Partido Democrata (com sindicatos, grupo de direitos civis, igrejas liberais) há algumas semanas.
Que uma manifestação destas dimensões tenha sido convocada por dois comediantes já é algo que expressa uma enorme ausência de confiança popular em todas as instituições políticas, midiáticas e sociais estadunidenses. E tampouco são quaisquer comediantes os que chamaram o ato, o que provou ser um fenômeno de grande influência nacional. A revista Time, em uma pesquisa pela internet , informou que Stewart é agora a figura do mundo da notícia que mais goza de credibilidade e confiança junto ao público.
O programa de Stewart, transmitido pelo cabo, é a principal fonte de informação política para o segmento mais cobiçado pela televisão, os jovens entre 18 e 34 anos. O público para seu noticiário fictício alcança quase duas milhões de pessoas por noite (os noticiários das TV abertas alcançam entre 5 e 7 milhões).
Ao final, Stewart, já falando em tom sério, explicou a razão pela qual estava promovendo o ato. “Estamos em tempos difíceis, mas não apocalípticos”, e agregou que do jeito como as coisas estão se rompeu o debate entre a discordância e a inimizade. “A imprensa é nosso sistema imunológico. Se ela reage exageradamente a tudo, nós ficamos cada vez mais doentes”, indicou ao criticar a torrente de notícias sobre as divisões, as ameaças, as catástrofes e as brigas que se mostram nas 24 horas do dia. “Se tudo se amplifica, nada se ouve”, continuou, falando de um ciclo midiático que promove um “pânico perpétuo” .
Stewart salientou que a maioria dos estadunidenses pode sim encontrar uma maneira de conviver com as pessoas, a pesar das diferenças, e assim conseguir “sair da obscuridade”. Ele elogiou os participantes e afirmou que ainda que a sensatez seja interpretada por cada pessoa segundo seus princípios, ao “ver todos vocês aqui hoje e notar o tipo de pessoas que vocês são, já se restaurou a minha sensatez”.
Colbert, que todas as noites faz piada das diatribes dos comentaristas direitistas, ao disfarçar-se como um deles na manifestação, e assim realizar uma crítica brilhante, dizia tal quais os representantes da direita raivosa: “é necessário manter vivo o temor”. Com argumentos e imagens projetadas de comentaristas e jornalistas semeando o terror, desde a ameaça muçulmana e os imigrantes até a histeria com os furações, os vírus, as abelhas insistiu que os estadunidenses jamais poderiam conviver em paz porque se odeiam entre si. As três horas que durou o ato transcorreram assim, com discursos e músicas.
Stewart convidou Yusuf Islam (Cat Stevens) para interpretar sua famosa canção dos anos 70, “Trem da paz”. Colbert, ainda interpretando um jornalista de direita, interrompeu a canção e declarou que jamais subiria nesse trem e convidou nada menos do que o metaleiro Ozzy Osbourne, que cantou a música “trem louco”, que fala de um trem que está descarrilando. Stewart o interrompeu e assim se fizeram em turnos as duas canções, até que ao final, os dois músicos, fartos da interrupção, se abraçaram e saíram do palco. Nesse momento, o lendário grupos dos anos 60 e 70, os O’Jays entraram em cena para interpretar a música “trem do amor”. Também passaram pelo palco outros músicos como Tony Bennett, Kid Rock, Sheryl Crow, Mavis Staples, Jeff Tweedy e The Roots. Colbert e Stewart também fizeram um esquete oferecendo medalhas, o primeiro aos representantes do terror e o segundo aos da paz.
O âncora do The Colbert Report, ao informar a audiência de que vários meios, entre eles o New York Times e ABC News, haviam proibido os seus funcionários de participar da manifestação por “temor”, ofereceu uma medalha a uma garotinha de sete anos por sua valentia em participar. Stewart, por sua vez, deu uma medalha de “sensatez” ao lançador venezuelano Armando Galárraga, quem se manteve sereno quando um juiz cometeu um erro e não permitiu que ele jogasse uma partida desejada. O jogador, desde a Venezuela, onde estava, agradeceu via satélite, a condecoração.
Fazendo piada sobre como este ato iria aparecer nos grandes meios, Stewart afirmou: “não importa o que dizemos ou fazemos aqui, e sim como isso é dito na imprensa”. Neste momento, dois “repórteres” começam a falar sobre o ato da forma como a imprensa oficial falaria. O povo ri.
Depois, o ator Sam Waterston leu um poema, supostamente escrito por Colbert, que era uma ode ao terror. Em seus versos ele glorifica o crime, as drogas, a segurança, os aiatolás, o antraz e o “pânicos aos hispânicos”, os terroristas, os mafiosos, sempre com a pergunta: e podes estar seguro?
Ao final Stewart assinalou que os que ali estavam, estavam por sensatez, e não pelo temor. Assim, em meio a tanto ruído de políticos e dos meios de comunicação sobre as incontáveis ameaças dentro e fora do país, acusações de traição e outros absurdos disfarçados em discursos nos programas de rádio e TV, que são a experiência cotidiana do país, milhares de pessoas que vieram de vários pontos dos EUA para a manifestação, além dos outros tantos milhões que a viram pela TV, fecharam o ato dando uma resposta firme contra a ode ao terror e pela sensatez.
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