Por Elaine Tavares
Quando Cabral chegou às águas da Bahia, na região sul de Pindorama, onde hoje é Santa Catarina viviam os Guarani, os Kaikang e os Xokleng, sendo que os primeiros vestígios de comunidades humanas nestas paragens datam de 5.500 anos. Para os Xokleng, a terra conhecida chamava-se La Klãnõ, que na sua língua quer dizer “território dos caminhantes do sol”, ou “da gente que vive sob o sol”. Eles são do tronco lingüístico Jê e, segundo estudos feitos pelo antropólogo catarinense Silvio Coelho dos Santos, no passado, viviam divididos em três grandes grupos. Um deles circulava pela região do Vale do Itajaí, outro na cabeceira do Rio Negro , na fronteira com o Paraná, e o terceiro, no sul, próximo a Tubarão. Eram nômades, caminhavam pelo território em busca de caça e pesca e não eram dados as artes agrícolas. Seu centro vivencial se dava em torno da mulher. Ela decidia onde parar, descansar suas tralhas domésticas e fazer o fogo. Ali o grupo então permanecia por alguns dias. Viviam no tempo e só construíam abrigos feitos com ramas de árvores nas épocas de chuva. Seu espaço de andanças na busca da caça cobria desde Curitiba, no Paraná, até a região de Porto Alegre. No litoral viviam os Guarani, e os Kaigang um pouco mais para dentro, no lado oeste. Com estes, os Xokleng vivam de escaramuças.
Por conta da proximidade com o mar os Guarani foram os primeiros a serem encontrados pelos brancos invasores, quando estes começaram a descer a costa. Logo passaram a ser capturados para servir de mão de obra escrava. Mas, por causa da resistência que empreenderam e também das doenças, este povo foi praticamente dizimados. Poucos restaram, fugindo para dentro do continente, outros foram escravizados. Já os Kaigang e os Xokleng só foram vistos bem mais tarde quando os paulistas iniciaram as rotas de comércio com o Rio Grande do Sul tendo os tropeiros como os desbravadores, por volta de 1728, portanto, mais de 200 anos depois da conquista. Mas, eram encontros fortuitos. No geral, quando viam os brancos ocuparem seu território, os Xokleng resistiam bravamente, passando a ser reconhecidos pela sua valentia. A região ocupada por esta etnia era o espaço das araucárias, que, para eles tinha importância fundamental. Toda a base da sua alimentação era o pinhão, e é bem provável que tal qual os Mapuche, da Argentina e Chile, também moradores de terras de aruacária, estes espaços fossem considerados sagrados.
Foi com o surgimento da cidade de Lages, em 1771, que a saga de destruição dos originários tomou mais força. Colonos vindos de São Paulo ou de outras regiões do Brasil montavam fazendas para criação de gado e cercavam as terras. Depois, com a chegada dos imigrantes europeus, no início do século XIX, outros espaços de terra lhes foram tomados, a ponto de uma carta régia de Dom João VI estabelecer o início de uma guerra de extermínio. Os conflitos eram inevitáveis. Uma triste história, pois tanto os Xokleng defendiam suas terras, quanto os imigrantes buscavam o cumprimento de uma promessa de vida melhor. Mas, neste embate, os originários eram os que levavam a pior, uma vez que sequer eram considerados “humanos”. Pejorativamente chamados de “bugres”, os Xokleng passaram a ser caçados como bichos pelos “bugreiros” que os vendiam no mercado de escravos e defendiam as terras dos imigrantes. Naqueles dias, a vida dos Xokleng, que adentravam o mato e observavam, curiosos, a horda dos brancos, entraria num redemoinho sem volta.
Os Xokleng tinham uma longa tradição guerreira, uma vez que viviam de escaramuças com os Kaigang e a presença dos brancos ia, pouco a pouco, inviabilizando a coleta de alimentos. Sem a prática da agricultura, guerrear com os invasores passou a ser vital para os grupos originários. Uma coisa levou a outra, e o governo também decidiu proteger as terras com milícias armadas. Cada vez mais os indígenas ficavam encurralados, uma vez que não tinham para onde fugir. Assim, exército regular e tropas de bugreiros iniciavam a “civilização”, como eles mesmos anunciavam nos jornais da época. E, esta, nada mais era do que o massacre sangrento de famílias inteiras dos Xokleng. Nem mulheres ou crianças eram poupadas. O índio era visto como um simples obstáculo que deveria ser transposto em nome do progresso e da vida feliz das famílias brancas. Ninguém levava em conta que aquela era uma terra que tinha dono.
A “pacificação”
No início do século XX, depois que grande parte do território dos Xokleng já estava loteado e um expressivo número de indígenas mortos, em 1914 dá-se o que ficou conhecido na história por “pacificação”. Naqueles dias, a já então República tinha o índio como um “problema nacional” e no começo do século XX Cândido Rondon havia iniciado sua cruzada de integração do indígena à vida brasileira, sempre pela paz. Em 1910 o Estado criara o Serviço de Proteção ao Índio, tendo como lema o axioma de Rondon: morrer se for preciso, matar nunca! Chegava a hora do fim do massacre pelas armas e começava uma proposta de “integração” que, apesar da boa vontade, também confinava o índio e obrigava os povos a assumir uma nova cultura, assim, de chofre, num choque cultural do qual poucos se recuperaram.
Em Santa Catarina a história oficial conta de um jovem idealista, Eduardo Hoerhan, que havia assumido o SPI e buscava um encontro com os Xokleng para acabar de vez com as escaramuças entre indígenas e colonos imigrantes. A proposta era pacificar e aldear os Xokleng para que as comunidades criadas nas terras originárias pudessem produzir e viver em paz. Dos desejos dos índios ninguém quis saber. E assim, contam os livros que depois de algum tempo de “namoro”, com conversas (Eduardo arranhava a língua dos Xokleng) e com a entrega de presentes, ele logrou atrair os indígenas e pelos menos uns 400 deles passaram a freqüentar o chamado “Posto de Atração”. Mas, apesar disso, os “bugreiros” continuaram a atuar na região, afinal, muitos grupos de indígenas ainda vagavam pelas florestas e até os anos 40 ainda se avista um ou outro resistindo ao aldeamento.
Foi no ano de 1918 que Hoerhan chegou a Ibirama com um grupo de 200 Xokleng e foi ali que se demarcou um espaço para que a comunidade passasse a viver. Naqueles dias, conta Silvio Coelho, os chamados “botocudos” eram como bichos no zoológico e de todos os cantos do estado vinha gente para vê-los, acuados e tristes, finalmente pacificados. Assim, de caminhantes sob o sol, nômades e livres, os Xokleng passaram – num átimo - a sedentários e dependentes da boa vontade governamental. Uma mudança brusca demais na cultura e no modo de ser a gerar conseqüências que perduram até hoje. Uma foto, reproduzida no livro de Silvio Coelho “Índios e Brancos no Sul do Brasil – a dramática experiência dos Xokleng”, dos primeiros anos de “pacificação”, é a prova viva do horror vivido pelas gentes Xokleng. Nela, uma mulher abraça uma menina, mas o que toca a alma são os olhos. Os da mulher expressam um profundo sentimento de tristeza e derrota e a menina olha para câmera cheia de terror. Agarradas, as duas se protegem, mas sabem que a vida nunca mais será a mesma. É o fim do seu mundo.
A voz Xokleng
Convidados pelo Grupo Livre de apoio aos Povos Indígenas de Santa Catarina e reunidos em Florianópolis, em dezembro de 2009, os 18 caciques da área Xokleng La Klãnõ, apresentaram outra versão da história, desde as suas memórias mais antigas. Conta o diretor da Escola Bugio, José Cuzung Ndilli, que a chamada “pacificação” não foi conseguida por Eduardo Hoerhan, como diz a versão oficial. “Foram nossos líderes que, em 1909, se juntaram e decidiram que não dava mais para ficar guerreando com aquela gente que chegava. Foram eles que decidiram fazer o contato com os brancos, indo na casa de Hoerhan. Foi nosso povo que decidiu pela paz. A gente confiou nos brancos e é tão rejeitado até hoje”. Naqueles dias, diz ele, dos 400 que fizeram contato, sobraram apenas 120, por conta das doenças que apareceram. “Hoje, passados 70 anos, nós somos dois mil índios e continuamos crescendo. Já acabou a época de acabar. Nós somos um povo difícil de extinguir”.
Ndilli diz que atualmente os Xokleng ainda sofrem com a perseguição e o preconceito. Isso sem falar na falta de respeito do governo para com eles, como ficou claro na construção da Barragem Norte, em José Boiteaux, nos anos 70, que alagou terra e desalojou várias famílias, diminuindo ainda mais o território. “A gente sabe que as lideranças da época aceitaram a barragem, mas como foi o processo? O branco sempre quis ser superior ai índio e não leva em conta as nossas necessidades. Ele sabe que a terra é nossa, mas tem essa ganância”. Há pouco tempo, em 1991, os Xokleng chegaram a tomar o canteiro de obras da barragem exigindo o cumprimento das promessas, que não saíram do papel. “Tem muita gente sem casa, não há um estudo de impacto ambiental da barragem e nós queremos ver. Porque se o verde da bandeira ainda está aí, intacto, é porque nós protegemos. O que é história de progresso para o branco, pra nós é sofrimento”.
O professor Ndilli insiste que os Xokleng vão seguir lutando pelos seus direitos, pelo cumprimento das leis, embora saiba que para o governo seria bom o índio não ter história nenhuma. “Eles gostariam de ter uma borracha gigante que apagasse tudo, mas não vai ser assim. Em 2014 serão os 100 anos do contato. Que vamos fazer, festa ou o quê?”
Livai Paté, que é representante dos Xokleng no Conselho de Saúde, diz que não gosta de lamentar o passado, mas que sempre é bom lembrar para que as coisas não aconteçam de novo. “Nós também queremos viver, ter nosso direito, nossas terras, educação, saúde. E há que respeitar nossa forma de viver, de praticar a medicina. Essas terras eram nossas, e agora temos de ficar confinados em lugares ruins. A terra onde estamos é uma pirambeira, as melhores foram tiradas de nós. A gente não pode aceitar”.
Vomble Paté é representante da área de Palmeira e reclama da falta de interesse por parte das pessoas brancas, com relação aos problemas indígenas. “De cada 10, dois se interessam. A gente vem aqui na universidade e não aparece estudante. Mas nós queremos dizer a nossa versão da história. Esse Eduardo (Hoerhan, o pacificador) não significa nada pra nós. Ele matou um companheiro que foi buscar nosso direito. E essa matança continua. Antes eles matavam com arma de fogo, agora matam com a caneta”.
A vida em movimento
Enoke Popó é cacique na aldeia Figueira. Ele conta que os Xokleng se dividiam em vários grupos e tinham como modo de vida a coleta e a caminhada pelo território. O pinhão era o alimento principal. Durante a época da colheita eles juntavam tudo o que dava, para poder durar até a próxima. Depois, coziam e armazenavam embaixo da terra, enrolado em folhas, o que garantia a sua perenidade. O local mais abundante era a Serra da Abelha, onde é hoje o município de Vítor Meireles. “Os mais velhos sempre sabiam onde era o melhor lugar pra acampar. A gente circulava por um território de mais de 34 mil hectares e agora estamos confinados num espaço de 14 mil. Hoje estamos aí na luta para ampliar esse território. O branco fala que a gente não precisa disso tudo. Mas essa terra é nossa. É um direito nosso e queremos manter”.
Enoke lembra que não foi fácil para o Xokleng sair da vida nômade para a sedentária, como também foi difícil aprender a arte da agricultura. E quando eles conseguem, vem o governo e tira a terra, como foi na época da construção da barragem. As melhores foram alagadas e eles tiveram de ir para as regiões de rocha. Não é sem razão que eles procurem se manter mais com o artesanato do que com o plantio de alimentos. Sem a tradição ancestral e sem terras, fica quase impossível virar agricultor. Já a coleta do pinhão também é cada vez menor porque a região está tomada pelo pinus, sendo a araucária um ente em extinção.
“A gente tem de viver dependendo do governo e este ano eles mandaram apenas uma cesta básica por família. Uma, de 26 kg de alimento. E o resto do ano? Como faz? É por isso que os jovens estão saindo, vão trabalhar de empregado nas fazendas, na cidade, e aí perdem o costume”.
Sobre a religiosidade Enoke conta que quase todo o povo Xokleng é evangélico. E Silvio Coelho mostra, no seu livro sobre os Xokleng, como esta igreja acabou sendo responsável pela retirada de muitos dos indígenas do vício do álcool que havia sido contrabandeado para as aldeias para que o branco melhor dominasse. Por outro lado, as velhas tradições, uma vez que não são mais vividas, acabam se perdendo da memória. “A gente conta para as crianças dos deuses antigos, da chuva, do trovão, do relâmpago. O povo antigo se amparava nas forças da natureza. Mas é só uma lembrança que a gente passa no dia do índio. Sobrevivem alguns rituais que a gente faz nos casamento e batismos. Alguma coisa fica. Agora, a língua não. A língua a gente preserva”.
Os Xokleng vivem na região de Ibirama, em Santa Catarina, numa terra de 14 mil quilômetros quadrados. São 18 aldeias que perfazem o território La Klãnõ, com 88 famílias e duas mil almas. Cada área tem um cacique que é eleito pelos membros da aldeia e cumpre um mandato de três anos. “É bom, porque a gente fica perto. Se o cacique não cumpre o que prometeu, o povo cobra na hora”.
Sobre os movimentos de povos originários na América Latina os Xokleng sabem muito pouco. Os brancos que convivem com eles não levam estas informações. “Só no Brasil são 250 povos, com línguas diferentes. A gente tinha de ter uma língua índia pra se comunicar, talvez aí a gente pudesse entender as outras lutas. Nós, aqui, planejamos nossa idéia na nossa língua, mas depois temos de falar em português. Isso é ruim”.
E assim segue este povo que ainda não consegue se sentir em casa, apesar de estar no seu território. Sem terra boa, sem araucária, sem pinhão, sem os direitos básicos respeitados eles fazem o que sempre fizeram: lutam. Pode ser devagar, pode ser isolado, pode ser difícil. Mas é como eles sabem fazer. O povo caminhante do sol conseguiu vencer os bugreiros, a invasão, o medo, a dor. Saíram de 120 almas em 1920 para os dois mil que são hoje. Parece pouco, mas não é. Não para uma gente que já sofreu tanto e que vive abandonada na “Europa do sul”. Mas, naquele silencioso jeito de ser, eles vão gestando o amanhã esperado. Que ninguém se engane, o valente povo Xokleng, que dominou as florestas de Santa Catarina, segue em pé, e avança!...
“Já acabou a época de acabar”: avança o valente povo Xokleng
Por elaine Tavares - jornalista
Quando Cabral chegou às águas da Bahia, na região sul de Pindorama, onde hoje é Santa Catarina viviam os Guarani, os Kaikang e os Xokleng, sendo que os primeiros vestígios de comunidades humanas nestas paragens datam de 5.500 anos. Para os Xokleng, a terra conhecida chamava-se La Klãnõ, que na sua língua quer dizer “território dos caminhantes do sol”, ou “da gente que vive sob o sol”. Eles são do tronco lingüístico Jê e, segundo estudos feitos pelo antropólogo catarinense Silvio Coelho dos Santos, no passado, viviam divididos em três grandes grupos. Um deles circulava pela região do Vale do Itajaí, outro na cabeceira do Rio Negro , na fronteira com o Paraná, e o terceiro, no sul, próximo a Tubarão. Eram nômades, caminhavam pelo território em busca de caça e pesca e não eram dados as artes agrícolas. Seu centro vivencial se dava em torno da mulher. Ela decidia onde parar, descansar suas tralhas domésticas e fazer o fogo. Ali o grupo então permanecia por alguns dias. Viviam no tempo e só construíam abrigos feitos com ramas de árvores nas épocas de chuva. Seu espaço de andanças na busca da caça cobria desde Curitiba, no Paraná, até a região de Porto Alegre. No litoral viviam os Guarani, e os Kaigang um pouco mais para dentro, no lado oeste. Com estes, os Xokleng vivam de escaramuças.
Por conta da proximidade com o mar os Guarani foram os primeiros a serem encontrados pelos brancos invasores, quando estes começaram a descer a costa. Logo passaram a ser capturados para servir de mão de obra escrava. Mas, por causa da resistência que empreenderam e também das doenças, este povo foi praticamente dizimados. Poucos restaram, fugindo para dentro do continente, outros foram escravizados. Já os Kaigang e os Xokleng só foram vistos bem mais tarde quando os paulistas iniciaram as rotas de comércio com o Rio Grande do Sul tendo os tropeiros como os desbravadores, por volta de 1728, portanto, mais de 200 anos depois da conquista. Mas, eram encontros fortuitos. No geral, quando viam os brancos ocuparem seu território, os Xokleng resistiam bravamente, passando a ser reconhecidos pela sua valentia. A região ocupada por esta etnia era o espaço das araucárias, que, para eles tinha importância fundamental. Toda a base da sua alimentação era o pinhão, e é bem provável que tal qual os Mapuche, da Argentina e Chile, também moradores de terras de aruacária, estes espaços fossem considerados sagrados.
Foi com o surgimento da cidade de Lages, em 1771, que a saga de destruição dos originários tomou mais força. Colonos vindos de São Paulo ou de outras regiões do Brasil montavam fazendas para criação de gado e cercavam as terras. Depois, com a chegada dos imigrantes europeus, no início do século XIX, outros espaços de terra lhes foram tomados, a ponto de uma carta régia de Dom João VI estabelecer o início de uma guerra de extermínio. Os conflitos eram inevitáveis. Uma triste história, pois tanto os Xokleng defendiam suas terras, quanto os imigrantes buscavam o cumprimento de uma promessa de vida melhor. Mas, neste embate, os originários eram os que levavam a pior, uma vez que sequer eram considerados “humanos”. Pejorativamente chamados de “bugres”, os Xokleng passaram a ser caçados como bichos pelos “bugreiros” que os vendiam no mercado de escravos e defendiam as terras dos imigrantes. Naqueles dias, a vida dos Xokleng, que adentravam o mato e observavam, curiosos, a horda dos brancos, entraria num redemoinho sem volta.
Os Xokleng tinham uma longa tradição guerreira, uma vez que viviam de escaramuças com os Kaigang e a presença dos brancos ia, pouco a pouco, inviabilizando a coleta de alimentos. Sem a prática da agricultura, guerrear com os invasores passou a ser vital para os grupos originários. Uma coisa levou a outra, e o governo também decidiu proteger as terras com milícias armadas. Cada vez mais os indígenas ficavam encurralados, uma vez que não tinham para onde fugir. Assim, exército regular e tropas de bugreiros iniciavam a “civilização”, como eles mesmos anunciavam nos jornais da época. E, esta, nada mais era do que o massacre sangrento de famílias inteiras dos Xokleng. Nem mulheres ou crianças eram poupadas. O índio era visto como um simples obstáculo que deveria ser transposto em nome do progresso e da vida feliz das famílias brancas. Ninguém levava em conta que aquela era uma terra que tinha dono.
A “pacificação”
No início do século XX, depois que grande parte do território dos Xokleng já estava loteado e um expressivo número de indígenas mortos, em 1914 dá-se o que ficou conhecido na história por “pacificação”. Naqueles dias, a já então República tinha o índio como um “problema nacional” e no começo do século XX Cândido Rondon havia iniciado sua cruzada de integração do indígena à vida brasileira, sempre pela paz. Em 1910 o Estado criara o Serviço de Proteção ao Índio, tendo como lema o axioma de Rondon: morrer se for preciso, matar nunca! Chegava a hora do fim do massacre pelas armas e começava uma proposta de “integração” que, apesar da boa vontade, também confinava o índio e obrigava os povos a assumir uma nova cultura, assim, de chofre, num choque cultural do qual poucos se recuperaram.
Em Santa Catarina a história oficial conta de um jovem idealista, Eduardo Hoerhan, que havia assumido o SPI e buscava um encontro com os Xokleng para acabar de vez com as escaramuças entre indígenas e colonos imigrantes. A proposta era pacificar e aldear os Xokleng para que as comunidades criadas nas terras originárias pudessem produzir e viver em paz. Dos desejos dos índios ninguém quis saber. E assim, contam os livros que depois de algum tempo de “namoro”, com conversas (Eduardo arranhava a língua dos Xokleng) e com a entrega de presentes, ele logrou atrair os indígenas e pelos menos uns 400 deles passaram a freqüentar o chamado “Posto de Atração”. Mas, apesar disso, os “bugreiros” continuaram a atuar na região, afinal, muitos grupos de indígenas ainda vagavam pelas florestas e até os anos 40 ainda se avista um ou outro resistindo ao aldeamento.
Foi no ano de 1918 que Hoerhan chegou a Ibirama com um grupo de 200 Xokleng e foi ali que se demarcou um espaço para que a comunidade passasse a viver. Naqueles dias, conta Silvio Coelho, os chamados “botocudos” eram como bichos no zoológico e de todos os cantos do estado vinha gente para vê-los, acuados e tristes, finalmente pacificados. Assim, de caminhantes sob o sol, nômades e livres, os Xokleng passaram – num átimo - a sedentários e dependentes da boa vontade governamental. Uma mudança brusca demais na cultura e no modo de ser a gerar conseqüências que perduram até hoje. Uma foto, reproduzida no livro de Silvio Coelho “Índios e Brancos no Sul do Brasil – a dramática experiência dos Xokleng”, dos primeiros anos de “pacificação”, é a prova viva do horror vivido pelas gentes Xokleng. Nela, uma mulher abraça uma menina, mas o que toca a alma são os olhos. Os da mulher expressam um profundo sentimento de tristeza e derrota e a menina olha para câmera cheia de terror. Agarradas, as duas se protegem, mas sabem que a vida nunca mais será a mesma. É o fim do seu mundo.
A voz Xokleng
Convidados pelo Grupo Livre de apoio aos Povos Indígenas de Santa Catarina e reunidos em Florianópolis, em dezembro de 2009, os 18 caciques da área Xokleng La Klãnõ, apresentaram outra versão da história, desde as suas memórias mais antigas. Conta o diretor da Escola Bugio, José Cuzung Ndilli, que a chamada “pacificação” não foi conseguida por Eduardo Hoerhan, como diz a versão oficial. “Foram nossos líderes que, em 1909, se juntaram e decidiram que não dava mais para ficar guerreando com aquela gente que chegava. Foram eles que decidiram fazer o contato com os brancos, indo na casa de Hoerhan. Foi nosso povo que decidiu pela paz. A gente confiou nos brancos e é tão rejeitado até hoje”. Naqueles dias, diz ele, dos 400 que fizeram contato, sobraram apenas 120, por conta das doenças que apareceram. “Hoje, passados 70 anos, nós somos dois mil índios e continuamos crescendo. Já acabou a época de acabar. Nós somos um povo difícil de extinguir”.
Ndilli diz que atualmente os Xokleng ainda sofrem com a perseguição e o preconceito. Isso sem falar na falta de respeito do governo para com eles, como ficou claro na construção da Barragem Norte, em José Boiteaux, nos anos 70, que alagou terra e desalojou várias famílias, diminuindo ainda mais o território. “A gente sabe que as lideranças da época aceitaram a barragem, mas como foi o processo? O branco sempre quis ser superior ai índio e não leva em conta as nossas necessidades. Ele sabe que a terra é nossa, mas tem essa ganância”. Há pouco tempo, em 1991, os Xokleng chegaram a tomar o canteiro de obras da barragem exigindo o cumprimento das promessas, que não saíram do papel. “Tem muita gente sem casa, não há um estudo de impacto ambiental da barragem e nós queremos ver. Porque se o verde da bandeira ainda está aí, intacto, é porque nós protegemos. O que é história de progresso para o branco, pra nós é sofrimento”.
O professor Ndilli insiste que os Xokleng vão seguir lutando pelos seus direitos, pelo cumprimento das leis, embora saiba que para o governo seria bom o índio não ter história nenhuma. “Eles gostariam de ter uma borracha gigante que apagasse tudo, mas não vai ser assim. Em 2014 serão os 100 anos do contato. Que vamos fazer, festa ou o quê?”
Livai Paté, que é representante dos Xokleng no Conselho de Saúde, diz que não gosta de lamentar o passado, mas que sempre é bom lembrar para que as coisas não aconteçam de novo. “Nós também queremos viver, ter nosso direito, nossas terras, educação, saúde. E há que respeitar nossa forma de viver, de praticar a medicina. Essas terras eram nossas, e agora temos de ficar confinados em lugares ruins. A terra onde estamos é uma pirambeira, as melhores foram tiradas de nós. A gente não pode aceitar”.
Vomble Paté é representante da área de Palmeira e reclama da falta de interesse por parte das pessoas brancas, com relação aos problemas indígenas. “De cada 10, dois se interessam. A gente vem aqui na universidade e não aparece estudante. Mas nós queremos dizer a nossa versão da história. Esse Eduardo (Hoerhan, o pacificador) não significa nada pra nós. Ele matou um companheiro que foi buscar nosso direito. E essa matança continua. Antes eles matavam com arma de fogo, agora matam com a caneta”.
A vida em movimento
Enoke Popó é cacique na aldeia Figueira. Ele conta que os Xokleng se dividiam em vários grupos e tinham como modo de vida a coleta e a caminhada pelo território. O pinhão era o alimento principal. Durante a época da colheita eles juntavam tudo o que dava, para poder durar até a próxima. Depois, coziam e armazenavam embaixo da terra, enrolado em folhas, o que garantia a sua perenidade. O local mais abundante era a Serra da Abelha, onde é hoje o município de Vítor Meireles. “Os mais velhos sempre sabiam onde era o melhor lugar pra acampar. A gente circulava por um território de mais de 34 mil hectares e agora estamos confinados num espaço de 14 mil. Hoje estamos aí na luta para ampliar esse território. O branco fala que a gente não precisa disso tudo. Mas essa terra é nossa. É um direito nosso e queremos manter”.
Enoke lembra que não foi fácil para o Xokleng sair da vida nômade para a sedentária, como também foi difícil aprender a arte da agricultura. E quando eles conseguem, vem o governo e tira a terra, como foi na época da construção da barragem. As melhores foram alagadas e eles tiveram de ir para as regiões de rocha. Não é sem razão que eles procurem se manter mais com o artesanato do que com o plantio de alimentos. Sem a tradição ancestral e sem terras, fica quase impossível virar agricultor. Já a coleta do pinhão também é cada vez menor porque a região está tomada pelo pinus, sendo a araucária um ente em extinção.
“A gente tem de viver dependendo do governo e este ano eles mandaram apenas uma cesta básica por família. Uma, de 26 kg de alimento. E o resto do ano? Como faz? É por isso que os jovens estão saindo, vão trabalhar de empregado nas fazendas, na cidade, e aí perdem o costume”.
Sobre a religiosidade Enoke conta que quase todo o povo Xokleng é evangélico. E Silvio Coelho mostra, no seu livro sobre os Xokleng, como esta igreja acabou sendo responsável pela retirada de muitos dos indígenas do vício do álcool que havia sido contrabandeado para as aldeias para que o branco melhor dominasse. Por outro lado, as velhas tradições, uma vez que não são mais vividas, acabam se perdendo da memória. “A gente conta para as crianças dos deuses antigos, da chuva, do trovão, do relâmpago. O povo antigo se amparava nas forças da natureza. Mas é só uma lembrança que a gente passa no dia do índio. Sobrevivem alguns rituais que a gente faz nos casamento e batismos. Alguma coisa fica. Agora, a língua não. A língua a gente preserva”.
Os Xokleng vivem na região de Ibirama, em Santa Catarina, numa terra de 14 mil quilômetros quadrados. São 18 aldeias que perfazem o território La Klãnõ, com 88 famílias e duas mil almas. Cada área tem um cacique que é eleito pelos membros da aldeia e cumpre um mandato de três anos. “É bom, porque a gente fica perto. Se o cacique não cumpre o que prometeu, o povo cobra na hora”.
Sobre os movimentos de povos originários na América Latina os Xokleng sabem muito pouco. Os brancos que convivem com eles não levam estas informações. “Só no Brasil são 250 povos, com línguas diferentes. A gente tinha de ter uma língua índia pra se comunicar, talvez aí a gente pudesse entender as outras lutas. Nós, aqui, planejamos nossa idéia na nossa língua, mas depois temos de falar em português. Isso é ruim”.
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