quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Grandes Projetos de Energia só dão lucro para alguns

Elaine Tavares, jornalista

A água desceu do céu na cabeça daqueles que se recusam a vê-la encharcando campos produtivos. Dois dias de chuva forte e dois dias de intensos debates, justamente para discutir os destinos das águas e da energia neste país. Foi o Seminário Sobre Grandes Projetos de Energia, promovido pelo Movimento dos Atingidos por Barragens, na cidade de Cerro Negro, em Santa Catarina, lugar onde há mais de 20 anos se luta contra a construção de mais uma hidrelétrica no rio que corta o município. Mais de 400 pessoas participaram, dormindo em acampamentos mal arranjados e enfrentando os temporais. Isso é pouco, diziam, perto do que pode significar em destruição, a sanha construtora de barragens neste país. Daí o fato de ninguém se importar com as intempéries. Discutir o modelo de desenvolvimento lhes parecia mais importante do que clamar contra a chuva e as dificuldades passageiras.

O que são as barragens

Barragens são barreiras artificiais, feitas em cursos de rio para reter grandes quantidades de água. O propósito disso é redirecionar os mananciais, como em casos de enchentes, usar essa água para abastecer algum lugar, ou gerar energia. O uso desse tipo de modificação na natureza não é coisa nova, desde que o homem começou a manipular a natureza elas foram erguidas, principalmente onde havia escassez de água, para que durante as chuvas, o precioso líquido pudesse ser armazenado. Os árabes foram grande manipuladores das águas e as barragens mais antigas foram criadas na região do Oriente Médio e no Egito. Também na Índia antiga já se tem notícias deste tipo de ação para evitar alagamentos dos campos férteis nos períodos de cheia. Em Abya Yala (América Latina) igualmente os maias e os incas usavam esse recurso para armazenar água. Mas, é no período da Revolução Industrial – quando começa a se instalar o sistema capitalista - que este tipo de manipulação da natureza acontece para gerar energia em grande escala, e desde aí o processo avança para a construção de grandes hidrelétricas.

No Brasil

A febre das grandes barragens no Brasil começou nos anos 70, não por acaso, na década do milagre, em pleno regime militar, quando o desenvolvimentismo era a orientação nacional. A idéia era construir usinas hidrelétricas para, com a força das águas, gerar eletricidade para abastecer o parque industrial nacional que começava a se desenvolver. A primeira destas grandes barragens foi paradigmática, desalojando de uma só vez mais de 70 mil pessoas. Era a Barragem de Sobradinho, na Bahia, construída no curso do Rio São Francisco.

Em 1975, a novela da rede Globo, Fogo sobre Terra, escrita por Janete Clair, uma das mais importantes escritoras deste tipo de folhetim, debateu o tema das barragens apontando a construção como a arrancada para o progresso, afinal, nunca se deve esquecer, a empresa dos Marinho nasceu no período militar com o propósito de criar mais-valia ideológica em nível nacional. O enredo mostrava a disputa entre o atraso (quem defendia a cidade) e o progresso (a construção da barragem). Na trama, uma mulher insiste em ficar na terra e a cena em que o lago cresce e alaga tudo é de arrepiar. Apesar da carga dramática do momento, a índia Nara (vivida por Neusa Amaral), a mulher que morre em silencioso protesto é apontada como “a louca”, a que se negou a entrar no tempo do progresso. Já o mocinho, Pedro, que também iria ficar e morrer, é convencido a sair porque sua mulher espera um filho. É a vitória da “racionalidade” e do progresso.

Difícil foi para os brasileiros que sorviam o folhetim com paixão, desvincular a decisão do mocinho de suas próprias vidas. Se ele, que era o mais radical contra a barragem havia capitulado, porque não o resto do Brasil? E foi assim que, com o empurrão ideológico da Globo, a barragem de Sobradinho, em 1977, dois anos depois do fim da novela, criou um lago artificial de 4.214Km2, com capacidade para 37,5 bilhões de metros cúbicos, enterrando quatro cidades: Casa Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado, além de outras dezenas de vilarejos. Sobradinho tem 11 hidrelétricas gerando 13 mil megawatts. Sá e Guarabira cantaram essa destruição na clássica “Sobradinho”, onde dizem: “o sertão vai virar mar, dá no coração, o medo que algum dia o mar também vire sertão...”

Itaipu

No ano seguinte ao alagamento de Sobradinho começa a construção da Usina de Itaipu, no Rio Paraná, e é anunciada a construção das usinas de Machadinho e Ita, no rio Uruguai. Tudo apontava para um vertiginoso crescimento econômico no Brasil e as empresas estrangeiras de construção faziam fila para abocanhar o filé. Itaipu foi o mega projeto dos militares, levantada em parceria com Paraguai, e que tem a maior capacidade de geração de energia do mundo. Instalada bem na fronteira com o Paraguai ela fornece 90% da energia usada por aquele país e 19% da que é consumida no Brasil. Mas, como o Paraguai usa bem menos do que é o seu direito no acordo, o Brasil compra o que sobra e o fazia por um preço bem abaixo do mercado, pelo menos até agora, quando o presidente Fernando Lugo decidiu virar o jogo e o governo Lula teve de re-negociar, passando a pagar o preço justo.

Itaipu, tal qual Sobradinho, levou mais de uma década para ficar pronta. Cerca de 40 mil pessoas trabalharam ali, e para sua construção foram usados doze milhões de metros cúbicos de concreto (o que equivale a fazer 250 estádios do Maracanã) e outro tanto de ferro com o qual poderiam construir 380 torres como a famosa torre Eiffel, de Paris. Mas, o “crime perfeito”, como chamou o cantador popular mineiro Luiz Café, foi a destruição das Sete Quedas. Quando as eclusas da barragem foram fechadas, uma área de 1.500 quilômetros de terras produtivas e florestas foi inundada, levando de roldão as quedas que eram uma das mais belas formações naturais do planeta. “Vejo as águas correndo, os bichos morrendo, seus gritos de angustia e de dor. Vejo um lago sem leito, um crime perfeito, sem fé, sentimento ou amor”, lamentou Luis Café, numa canção que embalou o protesto das vidas da juventude sertaneja, no norte de Minas, naquele início dos anos 80. Hoje, a usina segue produzindo energia, e produzindo demais, como ficou comprovado no último apagão, provocado por excesso de geração.

As gentes

Mas, enquanto o Brasil ia “pra frente” nos anos do “milagre”, matando gente crítica nos porões, industrializando o país e modernizando a geração de energia, as gentes que viviam nas regiões atingidas pelas barragens passaram a viver seus dias de terror e abandono. Mais de um milhão de seres humanos perderam suas casas, terras e até as suas memórias. Grande parte das pessoas, como é comum no Brasil, não tinham posse das terras ou viviam de aluguel e, por isso, não tiveram qualquer apoio do governo. Apenas quem tem a escritura que prova a posse da terra ou da casa é quem recebe um imóvel quando desalojado para outros lugares. A solução, na maioria dos casos foi a migração para cidades próximas ou distantes, mas sempre na condição de um desterrado, sem qualquer possibilidade de melhora de vida. É aí que nasce o Movimento dos Atingidos por Barragens, para organizar essa gente toda. Segundo dados do MAB, mais de 70% das famílias atingidas seguem abandonadas pelo poder público. É bom lembrar que o governo não tem um órgão oficial para cuidar dos problemas dos desalojados, quem resolve isso é a própria empresa responsável pela construção das barragens. Agora, alguém aí acredita que uma empresa multinacional, dirigida desde o estrangeiro, possa se importar com a vida das gentes daqui? A resposta é um sonoro não!

Cada lugar onde foi fincada uma grande barragem, hoje são mais de 600 no Brasil (duas mil se consideramos as barragens menores), deixou um rastro de destruição, seja ambiental ou humana. Daí a luta, que começou primeiro pela garantia das indenizações justas e pelo reassentamento. Mas, depois, com a compreensão do que significam as barragens e o conseqüente não barateamento da energia, o movimento passou a lutar contra o modelo energético como um todo. Essa articulação começou em 1989, no Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens, no qual foi feito um levantamento global das lutas e experiências dos atingidos em todo o país. Dois anos depois, em 1991, eles fazem o I Congresso dos Atingidos de todo o Brasil, quando se decide que o MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens - deve ser um movimento nacional, popular e autônomo, e que deve organizar e articular as ações contra as barragens a partir das realidades locais. Desde então, a cada três anos, o MAB realiza congresso e redefine suas metas.

No ano de 1997, foi realizado o 1º Encontro Internacional dos Povos Atingidos por Barragens, com a participação de mais de 20 países, porque afinal, essa lógica desenvolvimentista - típica do sistema capitalista periférico - e de construções de grandes usinas existe em toda a América Latina, além da Ásia, África e Europa. Desde então, o movimento vem realizando debates e lutas em todo o país, buscando construir um projeto popular de modelo energético, que fuja desta proposta predadora.

O Brasil é uma das nações do mundo que mais tem construído barragens, e tem alta dependência da hidroeletricidade, uma vez que 80% da energia elétrica vem destas represas. O que move esta loucura de construção de barragens é, obviamente, o interesse econômico de grandes empresas, muitas delas visceralmente ligadas a governos por “doações” milionárias as suas campanhas. Segundo membros do MAB, vários destes novos empreendimentos que hoje estão sendo erguidos no Brasil já mostraram problemas de legalidade, como é o caso da usina de Barra Grande, no Rio Pelotas, cujos estudos de impacto foram fraudulentos, uma vez que não informaram a inundação de florestas primárias. Também a hidrelétrica Estreito, no rio Tocantins chegou ao absurdo de divulgar que a inundação "ajudaria" os botos da região ameaçados, pois teriam sua mobilidade restringida e o manejo facilitado.

Apesar de todos os protestos, documentos comprobatórios das irregularidades e mobilizações, o governo brasileiro segue comprometido com essa via de desenvolvimento, ignorando olimpicamente as alternativas propostas por pesquisadores, estudiosos e população. Faz ouvidos moucos para problemas como a perda de terras produtivas, expulsões e deslocamentos de milhares de pessoas, destruições de espécies animais e vegetais, alteração dos regimes hídricos, rebaixamento dos lençóis freáticos, alterações geográficas, mutações dos ecossistemas, entre outros. Surdo aos clamores das gentes, o governo ainda faz estudos para a construção de novas barragens até 2030, afinal, ainda há muitos abutres estrangeiros querendo meter a mão nos grandes rios brasileiros e, neste setor, o que importa são os ganhos de produção e não a vida das pessoas ou a natureza.

Ao construírem uma barragem ou hidrelétrica para abastecimento de água, as multinacionais dominam o lago e recebem a concessão por 30 anos, com renovação para mais 30, isso sem contar o que ganham com a geração e distribuição de energia. Esta, no Brasil, é bastante nova, deve ter uns cem anos apenas. Segundo o MAB, até 1970 quando houve uma crise energética, o Brasil tinha 7.000 megawatts de energia instalada, hoje são mais de 90.000 megawatts. Isso significa que esta expansão foi coisa pensada. Com medo de ficarem sem energia, os países do capitalismo central transferiram para o chamado terceiro mundo as indústrias eletro-intensivas, que consumiam muita luz, como a do alumínio, por exemplo, que, para produzir uma tonelada do produto, gasta o que usa uma família durante nove anos. E, não bastasse isso, comeram o dinheiro público, apresentando-se para a construção das usinas, cuja verba vem dos empréstimos tomados do Banco Mundial. Plano perfeito: o governo se endivida, o povo paga a conta e os empresários enchem as burras.

Outra forma de lucrarem com o Brasil são os contratos firmados para a compra de energia. Uma empresa estadunidense, a Alcoa, paga apenas 12 dólares, em contrato que vale por 20 anos, quando o custo da produção é de 20 dólares. Ou seja, na prática o governo está subsidiando a vida destes empresários em mais de 5 bilhões de dólares, enquanto o povo paga a taxa de luz mais alta do mundo, conforme denuncia o MAB. Além da Alcoa, também se beneficiam nesta festa de dinheiro público a General Eletric (EUA), a Tractebel (França/Bélgica) e a Votorantin (Brasil). Então, o que fica claro é que sempre que se ouve o discurso de que a construção de barragens vai trazer o progresso, é bom que as pessoas tenham bem claro para quem. Certamente não tem sido para o povo brasileiro, uma vez que o nosso país é campeão mundial em desigualdade social.

Talvez por isso que estas empresas invistam tanto nas promessas de vida melhor quando visitam as famílias que serão atingidas. Elas criam ONGs que ajudam os empobrecidos, financiam rádios para repassar suas mentiras, constroem igrejas, fóruns, carros de polícia, instalam armazéns com coisas nunca vistas, visitam cada família e a enchem de falsas promessas. Tudo isso para dividir o movimento de resistência.

O seminário em Santa Catarina

Agora mesmo existe uma proposta de construir uma hidrelétrica na Amazônia, é a Belo Monte, para onde deve escorrer mais uma quantidade fantástica de dinheiro público, possivelmente captado em bancos internacionais, gerando novas dívidas para o povo pagar. E quem seriam os beneficiados com a energia gerada lá, a custa da destruição da floresta, dos bichos e de mais gente desterrada? O povo? Não! Conforme dados divulgados pelo MAB são a Companhia Vale do Rio Doce, que agora é do Citicorp, dos EUA, o B. H. Billington, da Inglaterra, grande produtora de alumínio, e a Votorantim.

Fora essa gigante de Belo Monte ainda existem outros tantos projetos de médio porte em vários outros rios do Brasil. Tudo em nome do “desenvolvimento e progresso”, o que, na prática, significa desenvolvimento e progresso apenas para os grandes capitalistas. Por conta de todos esses elementos, os participantes do seminário de Cerro Negro chegaram à seguinte conclusão: a promessa de desenvolvimento para as gentes não se cumpre. Até porque, durante o encontro, faltou energia três vezes, e eles estavam cercados por barragens. “Vê, não garante o serviço”, afirma Marinho, dirigente do Sindicato dos Eletricitários de Florianópolis. Outro dado importante levantado pelos participantes é quanto ao retorno que estas barragens dão aos municípios. Segundo dados do próprio município de Cerro Negro, eles ganham de royalties por conta da barragem apenas um milhão de reais, enquanto que a agricultura familiar rende aos cofres públicos mais de 10 milhões. Onde está a vantagem, então? A Usina de Paiquerê, no Rio Canoas, destruiu 180 mil pés de araucária, árvore nobre, mãe do pinhão, e em extinção. Como isso pode ser possível?

Outro ponto que deve ser levado para novas discussões diz respeito ao “S” do BNDS (Banco Nacional de Desenvolvimento Social). Este banco, que financia as transnacionais com o dinheiro do trabalhador, através do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), jamais se preocupou com o social, mas tem isso incorporado ao nome. Então, o povo vai atrás do “S”.

Outra mentira das empresas é de que as barragens geram emprego e renda. Hum...pra quem? A Alcoa tem 22 trabalhadores, com apenas seis atuando na usina. Toda a renda da empresa vai para o exterior. Já a Tractebel enviou no último ano quase dois bilhões para fora do país. O lucro é de quem? Na verdade, o modelo de desenvolvimento proposto para os países periféricos é o de geração de riqueza para os países centrais, exatamente como na época da conquista. É da natureza do sistema capitalista este tipo de modelo. Para que o centro siga rico, é necessário que a periferia se mantenha subdesenvolvida, com algumas ilhas de desenvolvimento aos moldes do sistema, apenas para manter azeitada a máquina. É o desenvolvimento do subdesenvolvimento, como já mostrou Günder Frank.

A pergunta que fica é: mas então esse povo é conta a geração de energia? Não, não é. Mas existem outras formas de gerá-la e eles tem as propostas, os pesquisadores, os técnicos. Tudo está aí. Só que não interessa ao centro que a periferia se independentize, coisa que a elite lacaia de cada país se ocupa em garantir. Que o diga Bautista Vidal, cientista brasileiro que vive gritando seus projetos sobre a biomassa, energia limpa e inesgotável gerada pelo sol, rios e matas, sem ser levado em conta pelos governantes.

E outra. Esse povo é contra o desenvolvimento? Sim, se for o desenvolvimento capitalista predador que suga tudo para os países centrais. A proposta que saiu do seminário é a da luta por outro jeito de organizar a vida que envolva não só a energia, mas tudo. Coisa difícil, é certo. Mas não impossível. Experiências de desenvolvimento endógeno, aliadas a políticas de estado voltadas para a maioria da população, com participação direta e respeito pelo saber popular, podem ocasionar aquilo que Samir Amin chama de “desconexão”, que seria a construção efetiva de outro modelo de sustentação da vida fora do sistema capitalista. Nunca é demais lembrar que este sistema que hoje é hegemônico no mundo não existiu desde sempre. Ele tem pouco mais de 300 anos e já mostra o quanto seu poder de destruição é alto. Quem consegue ter uma visão totalizante do mundo vê que mudar o modelo de organização da vida já deixou de ser uma proposta que se expressa só no campo da política. O que está em jogo é a vida humana mesma. As mudanças climáticas, a camada de ozônio, o degelo e o aumento dos oceanos, frutos da predação capitalista, apontam para uma só direção, parafraseando Simón Rodríguez, o grande mestre de Bolívar: “Ou inventamos, ou estamos perdidos”.

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