segunda-feira, 22 de junho de 2009

A tecnociência é política

Míriam Santini de Abreu

Leio que o presidente Lula defendeu hoje que a discussão sobre a preservação ambiental não seja tratada de forma “ideológica”. Isso foi durante discurso no lançamento do Plano Agrícola e Pecuário 2009/10. O ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, por sua vez, avaliou que sua pasta adota uma postura “técnica” sobre a discussão ambiental, e disse ele que o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, ainda tem um viés “ideológico”. "Eu acho que temos divergências. Seria importante que a gente harmonizasse essas divergências, mas acho que ele (Minc) continua um pouco no viés ideológico e eu procuro discutir a questão no viés técnico e científico", disse Stephanes.
Ora pois... A tecnociência, ao contrário do faz-de-conta da afirmação de Stephanes, não é neutra, porque é política. O pensamento do geógrafo Milton Santos é perfeito para explicar isso, e pode ser conferido em
http://blog.controversia.com.br/2008/08/02/entrevista-milton-santos/

Em certo trecho diz Milton:

A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista. Para entender esse processo, como qualquer momento da história, há dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das técnicas e o estado da política.
Há uma tendência em separar uma coisa da outra. Daí muitas interpretações da história a partir das técnicas. E, por outro lado, interpretações da história a partir da política. Na realidade, nunca houve na história humana separação entre as duas coisas. As técnicas são oferecidas como um sistema, utilizado através do trabalho e das formas de escolha dos momentos e dos lugares de uso das técnicas, das combinações entre elas. É isso que fez a história.
Chegamos ao fim do século XX e o homem, por intermédio dos avanços da ciência, produz um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da informação. Elas passam a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando a presença planetária desse novo sistema técnico.
Só que a globalização não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas. Ela é também o resultado dos processos políticos que conhecemos. Com freqüência ouvimos a pergunta: “mas não tem alguma coisa de bom na globalização?” ou “será que é tudo ruim?”. A discussão não é essa. A discussão é: há um conjunto, um sistema de técnicas baseado na ciência, e há uma forma de utilizar esse sistema presidida por essa mula-sem-cabeça chamada mercado global. Um mercado global utilizando esse sistema de técnicas avançadas, repito, presididas pelas técnicas da informação, resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro. E quando digo uso político, digo uso econômico e cultural, porque neste fim de século tudo se tornou político; a economia é feita a partir da política, a cultura é base para a política e resulta da política. Esse é o debate central, o único que nos permite ter a esperança de utilizar o sistema técnico contemporâneo a partir de outro paradigma.

Pena não ter sido, o ministro Stephanes, interrogado pelos jornalistas sobre as implicações de sua afirmação. Fazem-se de tolos, os ministros...

No site que indico acima, há outro trecho da entrevista de Milton Santos que também coloca em evidência alguns aspectos do discurso do ministro do STF Gilmar Mendes ao considerar desnecessário o diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista:

Pergunta a Milton: O senhor tem falado em globalitarismo. Poderia nos explicar esse conceito?
Resposta: Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político.
Esse globalitarismo também se manifesta nas próprias idéias que estão atrás de tudo. E, o que é mais grave, atrás da própria produção e difusão das idéias, do ensino e da pesquisa. Todos obedecem, de alguma maneira, aos parâmetros estabelecidos. Se estes não são respeitados, os transgressores são marginalizados, considerados residuais, desnecessários ou não-relevantes. É o chamado pensamento único. Algumas vozes críticas podem se manifestar, uma ou duas pessoas têm permissão para falar o que quiserem, para legitimar o discurso da democracia. Só que a estrutura do processo de produção das idéias se opõe e hostiliza essa produção de idéias autônoma e, por conseguinte, de alternativas.
É uma forma de totalitarismo muito forte, insidiosa, porque se baseia em idéias que aparecem como centrais à própria idéia da democracia – liberdade de opinião, de imprensa, tolerância – utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, do que são os países, os lugares. Eu chamo isso de tirania da informação, que, associada à tirania do dinheiro, resulta no globalitarismo.

Pergunta a Milton: Essa tirania da informação se opõe, portanto, à produção de um conhecimento que poderia gerar uma alternativa distinta do mercado à organização desse meio técnico-político?
Resposta: Creio que sim. Na medida em que o mundo se globaliza, eu apenas posso entendê-lo como um todo. E cada coisa a partir do mundo. Se me retiram a possibilidade de compreender o mundo como ele é, se me bombardeiam todos os dias com informações que não são corretas, estão me tirando a possibilidade de entender não só o mundo como a mim mesmo.
Isso é terrível, porque mata a possibilidade de desenvolvimento de alternativas. Esse mundo globalizado produz uma racionalidade determinante, mas que vai, pouco a pouco, deixando de ser dominante. É uma racionalidade que comanda os grandes negócios, que são cada vez menos numerosos mas cada vez mais abrangentes. Esses grandes negócios são de interesse direto de um número cada vez menor de pessoas, embora a maior parte da humanidade seja concernida por eles. Mas não pode se interessar por eles já que, embora sofra suas conseqüências, não tem condições de interferir.
Mas pouco a pouco essa realidade é desvendada pelas pessoas e pelos países mais pobres. Essa é uma contradição maior. Nós abandonamos as teorias de desenvolvimento, o terceiro-mundismo, que era a nossa bandeira dos anos 50 e 60. A noção política de Terceiro Mundo foi produzida em grande medida graças à existência da União Soviética; se ela não existisse, não haveria essa idéia política.
Todavia, graças à globalização está surgindo uma coisa muito mais forte: hoje é a história da maioria da humanidade que conduz à consciência da existência dessa tercermundização (que de alguma forma inclui também uma parte da população dos países ricos). Há uma formidável contradição em busca dos seus intérpretes, em busca de um discurso mais planetário e também nacional e local. Esse discurso é dificultado por esse pensamento único, mas ele pode se fazer.
Há algo de extraordinário nesse momento da história, que é essa produção limitada da racionalidade capitalista extrema e uma produção ilimitada do que seria a “irracionalidade”. A racionalidade é resultado de um controle férreo, mas esse controle joga fora do trabalho que admite controle um grande número de pessoas. Se o trabalho é o lugar da descoberta da situação de cada um, o trabalho no fim do século revela uma possibilidade de fugir ao controle.
A exclusão e as formas de trabalho relativas à exclusão, que chamo de “circuito inferior” – num livro que nunca conseguiu ter voga no Brasil, mas que é muito usado na África e na Ásia, O espaço dividido –, é exatamente uma discussão dessa contradição dentro do sistema capitalista, entre uma visão do trabalho por cima e uma visão do trabalho por baixo. Essa obra tem vinte anos, mas já indicava essa tendência.
O trabalho que é feito pelos pobres, pelos “marginalizados”, é portador da liberdade. Diferente do nosso trabalho, que é portador de uma necessidade de enquadramento de cima para baixo, do qual vem nosso sucesso. Esta produção limitada de racionalidade é a mesma produção de menor número de empregos e de atividades ligadas a essa racionalidade. Enquanto que eles chamam de “irracionalidade” outras formas de racionalidade, que criam outras formas de trabalho, essas sim portadoras do novo.

Um comentário:

Paula Scheidt disse...

Oi Mirian, muito bem colocadas estas palavras de Milton Santos. Precisamos ler mais e aprender com que já há muito tempo explica o nosso mundo analisando as causas dos conflitos, não tentando buscar uma explicação no conflito em si.
E ele, Milton, é uma excelente referência sempre.