sábado, 29 de novembro de 2008

As chuvas em Santa Catarina

Por Elaine Tavares - jornalista

As chuvas que caem a três meses seguidos em Santa Catarina acabaram se transformando em tragédia. E, no meio da dor de milhares de famílias que perderam pessoas e coisas me vêm a mente o célebre debate entre Voltaire e Rousseau, feito através de escritos, pouco depois do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755. Naquela tragédia européia morreram mais de 100 mil pessoas, a cidade ficou destruída e os grandes pensadores da época – que eram os que formavam opinião, tal qual hoje a mídia - erguiam os braços aos céus dizendo que era uma fatalidade, obra da providência divina. Voltaire ironizava esta idéia de que o terremoto fosse um castigo de deus e colocava a culpa na natureza. Já Rousseau, mostrava as causas sociais do desastre e apontava: “20 mil casas de seis ou sete andares foram construídas. O homem deveria tê-las feito menores e mais dispersas”. Para ele, era a civilização humana a culpada pelos males que se abatiam sobre ela. Rousseau inocentava assim, a deus e a natureza e lembrava que havia sido a idéia insana de muitos lisboetas de protegerem seus pertences que os levara – muitos – à morte.

Pois em Santa Catarina estamos nesse embate. O mundo literalmente desabou sobre nossas cabeças. Na região do vale do Itajaí os morros vieram abaixo, soterrando casas e gentes. As construções humanas se esmigalharam como se fossem folhas de papel, mostrando a fragilidade da raça. Algumas cidades foram inteiramente invadidas pelas águas dos rios e o desespero tomou conta de mais de um milhão de pessoas atingidas pela catástrofe. Como na Lisboa do século 18 não há aqui nada de providência divina. Se deus é bondade, não permitiria tanta dor. Eu que creio num deus minúsculo, que é apenas rede onde descansamos a dor, o eximo deste caso.

A grande mídia exibe os argumentos de Voltaire. A chuva é a grande vilã. Não fosse ela nada teria acontecido. Ninguém fala que a chuva é coisa natural e que desde que o mundo é mundo ela cai, ora mais, ora menos. O que se diz é que os morros caíram por conta dela, que os rios subiram por conta dela e quando, de noite, ela volta, insistente, as gentes a maldizem e a temem.

Eu tendo a fazer uma leitura roussoniana. A chuva é coisa bendita. Ela vem para trazer vida, nunca morte. Se hoje, junto com ela vem a ceifadora, há que se buscar outros culpados. Afinal de contas, porque os rios transbordam? Que fizeram com eles os homens que habitam suas margens? E os morros que desabam, não teriam sido revirados para a plantação de tubos da gigantesca obra do gasoduto, tão denunciada por ambientalistas e estudiosos no início dos anos 90. Pois naqueles dias eram chamados de loucos, os eco-chatos, os anti-progresso, os que impediam o desenvolvimento.

As enchentes e os deslizamentos que cobriram de dor Santa Catarina não são obra do acaso ou da ira de um deus vingativo. Elas são o resultado da incapacidade dos homens em perceber que são parte da natureza, membros vivos da Pachamama, da mãe Gaia. Mas qual, isso é conversa de naturebas, falsos hipppies, inconseqüentes, os que vivem falando de socialismo, cooperação, vida simples e integrada com a natureza. A tragédia que se abate sobre o vale do Itajaí e outras tantas regiões do estado já estava anunciada. Desde sempre.. Vinha sendo prevista por aqueles a quem as pessoas denominam “os arautos da desgraça”. Os que vêem defeito em tudo, que questionam cada obra faraônica, cada plano diretor mal planejado, cada ação irracional do sistema capitalista.

Basta que se dê uma espiada nos relatórios elaborados por estudiosos e ambientalistas, estes que nunca são ouvidos pelos governantes. As obras de prevenção sempre são caras demais e nunca saem do papel. Ás vezes se faz uma concessão aqui ou ali, mas no geral, as grandes saídas são esquecidas nas gavetas, até que venha uma nova tragédia.

Por isso me entristece um pouco ver toda essa comoção que imediatamente toma conta das pessoas em todos os lugares. Os comitês de ajuda, as doações de comida e roupas, as lágrimas de piedade. Não que eu ache que isso não é necessário.. Sim, é. As pessoas precisam comer agora, aqui. Mas o povo de Santa Catarina não precisa só deste breve momento de musculação de consciência que vai durar enquanto a mídia centrar seus holofotes na região. A gente deste estado vai precisar de todo esse povo na hora de empreender a luta por obras de prevenção, na hora em que tiver de abrir mão de algumas benesses do progresso e do desenvolvimento para garantir que coisas assim nunca mais aconteçam.

Cá com meus botões eu temo que tudo isso siga seu ciclo perverso. O mundo todo de olho no estado por um mês ou dois e, depois, o esquecimento. As famílias que perderam gente, acomodam sua dor. Os que perderam coisas, recuperam. E a vida segue, enquanto nos palácios os governantes contratam empreiteiros para a reconstrução. Os mesmos de sempre levarão os lucros. Os que nada têm agradecerão por estarem vivos e os remediados se levantarão outra vez. Até quem venha um ciclone, outra chuva, um tsunami e tudo recomece na roda insana.

Talvez, a grande tragédia não seja a chuva, mas essa absurda incapacidade que grande parte das gentes têm de compreender que as catástrofes são faturas da nossa construção histórica, na nossa forma de organizar a vida, do desejo de dominar a natureza, da nossa ânsia de acumular riqueza. Não é à toa que enquanto o mundo todo ora por nós, o governo do estado trame a aprovação – em caráter de emergência – de um novo código florestal que tem como princípio básico a destruição da natureza. Se efetivamente precisamos de lágrimas e comoção, que seja por isso. E que todos possam se unir na luta contra esse projeto tanto quanto estão mobilizados para a ajuda às vítimas. Como já dizia o velho Marx, é sempre bom que a gente possa ver para além da aparência. Eu, otimista incurável, acredito que Santa Catarina vai lutar.

Um comentário:

Anônimo disse...

oi Elaine, parabéns pela reportagem, eu como ambientalista apoio totalmente esse tipo de jornalismo, concordo com o que você disse e infelizmente a "agua tem que bater na bunda" pro sujeito aprender a nadar.