Míriam Santini de Abreu
- Mini-conto sonhado -
Chove há milênios. Nada mais sei do sol, de sua substância. Sou um ser da chuva, a ela me submeto. E então, na quinta de novembro, a lua engravidou. E eu... agora inevitável filha da chuva, fui semeada também pela lua cheia. Encharcaram-me as duas. A roupa pesou, o espírito pesou, e deixei tudo pelo caminho.
Não só eu. Estávamos, T. e P., numa taberna de esquina, a chuva inflexível lá fora, a lua parindo estranhos desejos. Os três assim, assim... num quê fazer. Famintos, sentados com os cotovelos apoiados no balcão, nosso pedido soou estranho, e R., ex-dono da taberna – que ele vendeu, certamente também grávido de estranhos desejos – serviu-nos o que quis. Vieram acompanhamentos e três bifes gigantescos, um pouco sangrentos, macios. Mulheres acostumam-se com carne a sangrar.
P. confessa que está farto da Babilônia. Quer se entregar ao mar e aos peixes. Quer pescar. Já é um pescador de homens, respondemos, mas ele insiste em jogar o anzol em águas menos traiçoeiras. T. então sonda-lhe a sorte, as cartas sobre o balcão gasto, e pressente um jardim de delícias. T. é uma maga poderosa, digo a P. E fica ele, com aquele sorriso de sabedorias antigas, enquanto T. embaralha as cartas.
R. espia o gesto e, rápido, recolhe os pratos para dar lugar aos nossos feitiços: - Ella es una bruja! – exclama.
Saímos de lá, daquela taberna tomada por um espírito medievo, e fomos à vida, tomando caminhos molhados. Cruzo numa esquina com um homem que segura uma gaiola coberta por panos brancos. Noutra me invade um cheiro de jasmim, e, espio, por trás de uma cerca, o arbusto repleto de fragrâncias.
A lua encharca-me hora a hora. Na sexta, danço madrugada adentro; no sábado, subo a correnteza com um salmão; no domingo, assassino uma filha. Eu barbarizo na lua cheia. Cibeli Cambuci escreveu isso: “Todos nós queremos um Deus imigrante em nosso corpo”. Esse Deus que imigra entrou em mim rugindo, sedento de águas não-bebidas em desertos secos, encharcando-se da água da chuva que desce sem parar dos meus cântaros. Como negar-lhe a saciedade?
- Mini-conto sonhado -
Chove há milênios. Nada mais sei do sol, de sua substância. Sou um ser da chuva, a ela me submeto. E então, na quinta de novembro, a lua engravidou. E eu... agora inevitável filha da chuva, fui semeada também pela lua cheia. Encharcaram-me as duas. A roupa pesou, o espírito pesou, e deixei tudo pelo caminho.
Não só eu. Estávamos, T. e P., numa taberna de esquina, a chuva inflexível lá fora, a lua parindo estranhos desejos. Os três assim, assim... num quê fazer. Famintos, sentados com os cotovelos apoiados no balcão, nosso pedido soou estranho, e R., ex-dono da taberna – que ele vendeu, certamente também grávido de estranhos desejos – serviu-nos o que quis. Vieram acompanhamentos e três bifes gigantescos, um pouco sangrentos, macios. Mulheres acostumam-se com carne a sangrar.
P. confessa que está farto da Babilônia. Quer se entregar ao mar e aos peixes. Quer pescar. Já é um pescador de homens, respondemos, mas ele insiste em jogar o anzol em águas menos traiçoeiras. T. então sonda-lhe a sorte, as cartas sobre o balcão gasto, e pressente um jardim de delícias. T. é uma maga poderosa, digo a P. E fica ele, com aquele sorriso de sabedorias antigas, enquanto T. embaralha as cartas.
R. espia o gesto e, rápido, recolhe os pratos para dar lugar aos nossos feitiços: - Ella es una bruja! – exclama.
Saímos de lá, daquela taberna tomada por um espírito medievo, e fomos à vida, tomando caminhos molhados. Cruzo numa esquina com um homem que segura uma gaiola coberta por panos brancos. Noutra me invade um cheiro de jasmim, e, espio, por trás de uma cerca, o arbusto repleto de fragrâncias.
A lua encharca-me hora a hora. Na sexta, danço madrugada adentro; no sábado, subo a correnteza com um salmão; no domingo, assassino uma filha. Eu barbarizo na lua cheia. Cibeli Cambuci escreveu isso: “Todos nós queremos um Deus imigrante em nosso corpo”. Esse Deus que imigra entrou em mim rugindo, sedento de águas não-bebidas em desertos secos, encharcando-se da água da chuva que desce sem parar dos meus cântaros. Como negar-lhe a saciedade?
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