Foto: Rubens Lopes
Elaine Tavares
A Câmara de Vereadores de Florianópolis mostrou nesse dia 26
de novembro, a quem realmente representa na cidade. Burlando regimento interno,
Estatuto da Cidade e até a Constituição, os vereadores iniciaram a votação de
um Plano Diretor alterado por quase 700 novas emendas - que não passaram por
avaliação do Instituto de Planejamento Urbano -
abrindo caminho para mais uma onda de especulação imobiliária,
crescimento desenfreado, destruição e lucros exorbitantes para um determinado
setor: o da construção civil.
Florianópolis é, basicamente, uma ilha (97% do seu
território). Isso, por si só já delimita muita coisa. Tem um espaço que não
pode se expandir, determinado pela capacidade de água, energia e mobilidade.
Com um total de 436
quilômetros quadrados - entre ilha e continente - possui
hoje quase 500 mil habitantes, embora pelo corredor metropolitano circulem mais
de um milhão de pessoas. Assim como está, já enfrenta gargalos complicados,
como é o caso da mobilidade urbana. Feita de ruas estreitas e mal planejadas, vivencia todos os dias,
engarrafamentos homéricos. Sair da ilha para o continente depois das cinco da
tarde requer paciência de Jó. Passar de um bairro do sul para o leste ou norte,
de ônibus, pode levar mais de três horas, embora as distâncias não sejam
grandes. No verão, época de temporada de praia, a população triplica e podem
ser contabilizadas mais de um milhão de pessoas só na ilha, aprofundando o
caos. Falta de água e luz são constantes nessa época, mostrando a completa
falta de estrutura para tanto adensamento populacional.
Por oferecer mais de 42 das mais belas praias do estado de
Santa Catarina, a chamada "ilha da magia" é um dos destinos
turísticos mais procurados por gaúchos, paulistas e visitantes de todo o mundo.
Não é sem razão que o metro quadrado na ilha é o terceiro maior do país - custa R $6.620,00 - ficando atrás apenas de
Santos e São Paulo (dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas/ FIPE).
E, por conta do crescimento que se deslocou para o sul, é no bairro do Campeche
que os imóveis estão custando mais caro hoje em dia, rivalizando apenas com o
centro da cidade. Um terreno simples de 360 metros quadrados,
sem escritura pública, não sai por menos de 100 mil reais. O preço médio de um
imóvel na ilha está em 700 mil reais.
Esses mínimos dados já conseguem iluminar o que está em
disputa na batalha do Plano Diretor. Longe de preocuparem-se com o bem-viver ou
a qualidade de vida da população, os vereadores - com raras exceções - estão a
serviço das construtoras que veem na cidade um filão ainda bastante gordo de
crescimento, por conta da proposta de verticalização que está dada no Plano que
começou a ser votado nessa terça-feira. Assim, o que está em tela é um dos mais
rentáveis balcões de negócio imobiliário do país. Vejam que não é pouca coisa.
Conforme manda o Estatuto da Cidade, o processo de
construção do Plano Diretor participativo começou durante a gestão de Dário
Berguer, há sete anos. Mas, ao contrário do que dizem os vereadores da
situação, não foi algo que teve fluxo contínuo. Todo o trabalho foi marcado por
conflitos e interrompido diversas vezes, obrigando a população a se mobilizar e
lutar de forma acirrada para fazer valer seus direitos. De qualquer forma,
premido pelas gentes, o plano foi se fazendo até 2010, quando o então prefeito
Berguer suspendeu tudo e encaminhou para um empresa fazer a versão final.
Segundo ele, ela apenas sistematizaria o que foi construídos pela população,
mas não foi isso que aconteceu. A empresa incluiu mudanças que beneficiavam a
lógica do lucro da construção civil.
Para que a população tenha uma ideia, o plano destinava
áreas que tinham sido definidas como de lazer para construção de prédios,
aumentava o gabarito dos prédios (número de andares possíveis de serem
construídos), priorizava grandes empreendimentos e basicamente não respeitava a
vontade da população. Grandes batalhas foram travadas e a população conseguiu
barrar. Com a eleição do novo prefeito no ano passado, a discussão recomeçou.
E, para surpresa de todos, o Núcleo Gestor Municipal - formado por
representações populares dos três distritos de Florianópolis - foi destituído
pelo novo prefeito. Assim, outra proposta de Plano Diretor, remexida pela nova
administração foi apresentada à Câmara. Segundo a lei, qualquer alteração ao
Plano teria que passar por novas audiências públicas nos distritos, mas isso
não aconteceu. A prefeitura realizou apenas duas audiência, muito mal
convocadas. Ainda assim, nas falas dos movimentos sociais e dos envolvidos na
discussão desde 2006, ficou claro que havia muitas mudanças e elas precisavam
ser melhor discutidas. Fazendo-se de surdo aos reclamos da população o prefeito
César Souza entregou, no dia seguinte à audiência, o projeto prontinho para a
Câmara. A casa legislativa aprovou o documento que tinha sido acrescido de
quase setecentas emendas, em prazo recorde, sendo que três comissões votaram o
plano em um único dia. Ora, é humanamente impossível analisar o conteúdo de 700
emendas em um dia.
A farsa da votação
Apesar dos reiterados pedidos dos vereadores Lino Peres (PT)
e Afrânio Boppré (PSOL) para que o documento fosse melhor analisado, com mais
tempo para o estudo das emendas, a maioria dos vereadores "patrolou"
o processo que foi levado para a votação no dia 19 de novembro, às quatro horas
da tarde, horário propício para o esvaziamento de povo. Afinal, as pessoas
trabalham. Pois a Justiça expediu uma liminar suspendendo a votação, por
entender que todo o rito estava comprometido. Se emendas novas foram feitas,
novas audiências deveriam ser efetuadas e o plano re-analisado pelo IPUF (órgão
de planejamento da cidade). Vitória da população que conseguiu mais tempo para
discutir e conhecer o conteúdo das propostas. Mas, o sonho durou pouco. Dias
depois, uma instância superior da Justiça cassou a limitar e o processo
recomeçou, indo à votação nessa terça (26).
De novo, a Câmara chamou a sessão para o horário da tarde,
juntando, à discussão do plano, uma homenagem à APAE, o que fez com que o
plenário lotasse com os "homenageados", impedindo as pessoas de
entrar. Com isso, armavam o circo de desinformação e desestruturação da
organização das comunidades. Por duas horas, as pessoas ficaram no sol,
esperando que a porta fosse liberada. A entrada só foi possível às cinco horas
e até as sete da noite nada acontecia. No plenário, os vereadores esperavam
pelo presidente da casa que, segundo informações dadas pelos vereadores Lino e
Afrânio, estava em reunião com o prefeito. Mostrando completo desprezo pelas
pessoas que ali estavam lutando pela cidade, os "nobres edis" se
divertiam no facebook ou observando sites como o Voice Brasil. Nenhuma
informação era passada. O que era a conversa do presidente da casa com o
prefeito? Por que acontecia naquele momento? O que tramavam? Cabia ao povo
supor que estava sendo articulado um acordo, possivelmente com a participação
do empresariado da construção civil. Afinal, nas centenas de emendas estavam
aquelas que aprovavam novos gabaritos (permitindo mais andares em vários
bairros) e grandes empreendimentos.
Quando faltavam poucos minutos para as sete, o presidente
chegou e se fez o quorum. A sessão começou. Várias falas - do vereador Lino,
Afrânio e Matheus (do PC do B, que estreava no plenário) pediam o adiamento da
sessão para que fossem cumpridos os ritos legais desse tipo de processo. O
presidente César Faria negava, e seguia patrolando. O vereador Matheus (que é advogado) lembrou
aos colegas que até a Constituição estava sendo rasgada e que todo aquele
trabalho poderia ser barrado pela Justiça, como aconteceu na cidade de Itajaí,
na qual o plano foi votado e depois suspenso por não ter seguido a lei. Mas,
havia uma muralha constituída pela maioria que, inclusive, fazia depoimentos na
tribuna, ofendendo e tripudiando das pessoas que ali estavam se manifestando. "Podem
vaiar, vocês são uma meia dúzia", provocava o vereador Deglaber Goulart
(PMDB).
Mas, o ato mais grave e escandaloso foi protagonizado pelo
vereador Celso Sandrini, também do PMDB. Enquanto estava na tribuna, a
população no plenário se manifestava chamando-o de vendido. Ele se irritou com
uma moça que estava bem na frente, no vidro, e a ela se dirigiu, ameaçando:
"Quero ver se tu me diz isso lá fora". Levou vaia. Ainda muito
irritado ele saiu do plenário e veio para onde estava a moça, junto ao povo, em
clara intimidação e pronto a agredi-la. Ela foi protegida pelas pessoas e
alguns rapazes seguraram o vereador. Nessa hora, um segurança da casa,
acompanhado de guardas municipais, chegou empurrando todo mundo, como se o
agredido fosse o vereador. Tiraram-no da plateia e ele voltou ao plenário como
se nada tivesse feito. Ou seja, ele quase agrediu fisicamente uma moça e ainda
foi protegido pela guarda. Lá dentro, ninguém se pronunciou contra aquele
flagrante ato de falta de decoro parlamentar. Podia cair uma bomba ali que nada
pararia a sessão e a entrega da cidade aos abutres da construção.
Assim, protegidos da população os vereadores foram votando
as emendas em bloco, mostrando que estavam firmes na defesa da destruição da
cidade. Na primeira emenda já derrubaram um dos bastiões da luta popular em
Florianópolis: a Ponta do Coral, espaço pequeno de terra que tem na Beira-Mar
(uma das principais avenidas). Ali, a população decidiu que quer um parque, mas
os vereadores abriram uma mudança de zoneamento para permitir a construção de
hotél, além de uma marina, para o atracamento de navios de cruzeiro. Era como
um recado bem claro aos militantes sociais que ali estavam: "vocês
perderam. Está tudo dominado". O envolvimento dos vereadores com o cartel
da construção era tão flagrante que os relatores dos pareceres se recusaram a
apresentá-los em plenário, levando à suspeita de que tinham completo
desconhecimento do documento que, em última instância, eles deveriam ter
escrito.
A sessão terminou minutos antes da meia-noite e hoje deve
continuar. Alterações significativas na vida da cidade estão sendo feitas, sem
que as pessoas sequer tenham tido tempo de saber. Bairros como o Estreito, Saco
dos Limões e Pântano do Sul, por
exemplo, tiveram gabaritos aumentados, sofrerão vertiginosa verticalização.
Áreas de lazer foram sacrificadas ao capital. Tudo está sendo preparado para
mais uma onda de construções. A maioria dos vereadores se recusou a discutir
questões como a mobilidade, a capacidade
energética. Em nome do discurso fácil do "progresso", os legisladores
estão atendendo interesses que passam longe dos interesses das gentes que vivem
na cidade. Todo o desenho do plano está calcado na construção de novos prédios
e grandes projetos turísticos. Isso significa dinheiro demais, a considerar que
um apartamento numa praia qualquer pode custar até um milhão de reais.
Então, a briga que se trava na Câmara vai muito além do
debate sobre qual o projeto de cidade que se pode querer. A única coisa que
interessa ali é dinheiro. Business. Negócio. Plata. Boró.
Entre os militantes sociais que acompanharam a farsa, o
sentimento era de revolta. Jeffrey Hoff, morador da Lagoa da Conceição e um
histórico lutador nessa batalha pelo Plano Diretor Popular, estava desolado,
mas ainda acredita que o processo possa ser revisto pela Justiça. "Há
muitas irregularidades e ainda não foi julgado o mérito da ação que deu a
liminar para suspender. Tenho esperanças que a gente ainda vá discutir esse
plano como tem de ser". Gert Shinke e Raquel Macruz, do Movimento Saneamento Alternativo,
protestaram com o bom humor de sempre, distribuindo senhas às pessoas
garantindo a elas uma "alteração de zoneamento, fazendo alusão à rifa que
estava acontecendo dentro do Plenário. "São vendilhões e vão responder por
isso".
E assim terminou essa primeira sessão, melancolicamente. A
cidade loteada, entregue à especulação. Mas, entre as pessoas que caminhavam
par ao terminal de ônibus, ia também a esperança, renitente, afinal, a luta não
para. Muita água ainda vai rolar.
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