quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A chuva das flores

Por Rubens Lopes

Ao Seo Zézinho, construtor de jardins...

23 de setembro de 2010. Primavera

Sempre que chega a primavera sou tomado pela nostalgia. Lá em Minas Gerais eu trabalhava numa floricultura como entregador e era a estação das flores. Então, aconteceu um fato me marcou, acredito que por toda vida. Foi a chuva das flores, bonito nome não? Mas é simples assim: Quando termina o inverno e a grama já está seca e as folhas já voaram no ar como cartas, ela vem. Primeiro, como uma chuva torrencial e as plantas parecem dizer o que o avô do Rubem Alves, outro mineiro, contemplava: "Vejam como estão agradecidas!".

Essa chuva tem um poder sobre mim. Fico a pensar nos dias em que levava flores em uma bicicleta cargueira pelas ruas de Sant`Ana do Alegre. Uma mão com a flor e a outra com a direção, e seguia sem titubear pelos morros e "banguelas". O entregador de flores tem uma sorte grande. Ele é o que apanha o primeiro sorriso no instante da surpresa transfigurada num gesto de amor. Ou talvez isso só passasse pela minha cabeça, daí a nostalgia. Pois acontece que têm pessoas que apenas cumprem com sua obrigação, como os carteiros de hoje em dia, que na maioria das vezes entregam contas (ou "cheque especial", diria minha vó) cartões de crédito, planos de saúde, etc... O milagre é quando vem uma carta no meio de tanta publicidade. As cartas levam palavras como gotas de chuvas para as plantas. Ah, se as pessoas soubessem o quanto precisamos delas: as palavras.

Tempos sombrios, diriam os mais antigos, em que a obrigação do serviço nos priva de descobrirmos as verdadeiras relações humanas no trabalho. No sistema capitalista, que visa o lucro, as coisas funcionam assim. Eu trabalho como entregador. Tenho muitas entregas para fazer, então, quanto mais rápido eu as fizer, mais tempo terei para outras funções, o que para o neoliberalismo, outro comparsa do capitalismo, é uma mão na roda. Como eu sou um guri com muito "sebo nas canelas" vou que é uma bala. E assim cumpro minha obrigação, embora a patroa lembre a toda hora:"se demoras, têm outros tantos na espera para ocupar teu lugar".

Acontece que um dia me deparei com uma situação que me fez pensar. Tinha eu um jardim para fazer. É que eu, além de entregador de flores, aprendi o oficio de jardineiro, do qual me orgulho muito! E lá fui eu na cargueira, com tesoura, podão, enxada, rastelo e outros apetrechos de jardinagem. A dona da floricultura disse que teria uma pessoa a me ajudar no trabalho. Ao chegar a casa vi uma bicicleta preta, marca monark, escorada no meio-fio. E, sentado na calçada estava um senhor bastante curioso. Hoje, ele me lembraria àqueles cubanos que passeiam pelo Malecon com a camisa estampada usando uma boina e fumando um charuto.

Mas, vamos ao acontecido. Ele seria a pessoa a me ajudar no jardim. Ao me apresentar descobri seu nome, Seo Zézinho. Na garupa da bicicleta, trazia uma tesoura já envernizada pelo suor. Contanto sobre seu trabalho disse, com a dignidade que as pessoas simples têm, que era jardineiro há quarenta anos e que já plantara muitas árvores na vida. Entramos na casa para fazer o jardim, uma casa luxuosa, dessas que aparecem em revistas de decoração. O lote continha uma infinidade de tapetinhos de grama, algumas fênix fazendo a decoração, ráfias, e outras plantas de sombra e sol.

Então começamos a aparar a grama e o Seo Zézinho num compasso que lembrava um samba lento ia com sua tesoura. O meio-dia já se aproximava e a barriga começava a roncar. Trabalho braçal deixa o cabra com uma fome de ontem. Perguntei onde morava o Seo Zézinho que respondeu, na calma mineira: na Água Limpa. Este é um dos bairros que fica no morro da cidade, sé que se pode existir morro numa cidade do interior de Minas. Mas, é que por lá moram as pessoas simples e trabalhadoras que vivem às margens da sociedade.

De onde estávamos trabalhando até a casa do Seo Zézinho dava mais ou menos meia hora de ida e vinda, e como tínhamos uma hora de almoço ele tinha que fazer o ?quilo? (o descanso depois do almoço) pedalando. Deve ser por isso que ele era tão magrinho. Uma hora da tarde e estava lá o Seo Zézinho, pontual como esses relógios de igreja. Recomeçávamos a labuta aparando grama na rapidez em que as vacas pastam no campo. Foi assim durante três dias, os que trabalhamos juntos. Na paciência e determinação por cumprir sua profissão de jardineiro Seo Zézinho me ensinou uma lição muito importante: que mesmo nesses tempos sombrios a dignidade do homem brota como os calos nas mãos.

Simón Rodriguez dizia sobra a importância da educação que se aprende trabalhando na terra. O sistema capitalista impera e como o império há de ruir e com ele toda a estrutura que o sustenta, chegará o tempo em que as lanças se transformarão em arados e a terra será trabalhada por mãos que cultivam e zelam pela vida boa e bonita para todos, a Eko Porã dos Guarani, como diz a profecia.

Toda vez que a chuva das flores vem, minha dignidade se renova no solo fértil da esperança de que encontraremos a terra sem males. E sigo lutando e construindo jardins, assim como o Seo Zézinho.


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