domingo, 5 de maio de 2019

Para onde irão?



/// Ocupação em Florianópolis luta para impedir despejo ///

Por Míriam Santini de Abreu

Uma fila de gente descia a rua General Rosinha, no Mont Serrat, parte do maciço que corta o centro de Florianópolis de Norte a Sul e para onde, ainda no início do século passado, foram expulsas as populações pobres que viviam nas áreas planas das proximidades. Era noite de quinta-feira. Vinham com instrumentos, palavras de ordem e um grande estandarte amarelo. Ali volta e meia passam procissão e desfiles da escola de samba Copa Lord. Desta vez, não. Eram os moradores da Ocupação Marielle Franco, onde hoje estão 120 famílias. Premidos por uma ordem de despejo prestes a ser executada, eles buscam desesperadamente apoios na cidade. Na quinta, se juntaram ao pessoal da Batalha do Rap, na Praça Tancredo Neves, na frente da Assembleia Legislativa. Nesta sexta (3), caminharam nas ruas do Centro da capital catarinense com faixas coloridas em que ficava sem resposta a pergunta: “Pra onde vamos, senhor juiz?”

Pararam antes no Largo da Catedral, um dos lugares em que os movimentos sociais se encontram, no coração da capital catarinense. Era preciso explicar aos passantes – alguns dirigindo desaforos às famílias – o que significa, de uma hora para outra, deixar de ter onde morar. Falou o Jacir, agarrado ao cachorrinho branco, o Jacir que lá na Ocupação tem uma hortinha e pés de tudo quanto é chá: “Nós temos criança, nós temos cachorro, nós temos gato, nós não pedimos nada, queremos a nossa casa. Eu não quero que derrubem nossa casa. Eu peço, fortaleçam um irmão, fortaleçam as famílias, fortaleçam as crianças”. Falou um gurizinho, o Mateus, sobre a sua tristeza de ver a mãe sempre chorando porque, disse ele, de uma hora para outra não poderá mais deitar a cabeça sobre o travesseiro. Falou a Adriana, que já não sabe o que dizer ao filho de oito anos que pedia, sorrindo, enquanto ela ajudava a pintar as faixas: “Mãe, vem pra sombra, mãe, vem tomar um ar, mãe, relaxa!”.

– Eu não sei o que eu vou dizer pra ele, nenhuma dessas mães aqui sabe. O que dizer a eles quando eles não conseguem vaga em escola porque nós não temos um comprovante de endereço, porque nós não somos vistos como pessoas, aquelas crianças não são vistas. Mas tem uma notícia boa. Porque lá dentro da comunidade Marielle Franco nós somos humanizados e os nossos filhos brincam nas ladeiras abaixo, ladeiras acima, é o espaço que eles têm, é o espaço que eles acreditaram que nós tínhamos conquistado pra eles. Mas querem nos tirar isso, e não é justo. Para onde vamos com nossos filhos?

Pouco antes de Adriana falar, o sino da Catedral havia dobrado para o início da missa. E Adriana então interrompeu o que dizia e conclamou:
– Senhor padre, eu lhe peço, com licença, dá licença. Gente, vamos pedir ajuda para quem for. É a missa.

E foram subindo a escadaria Catedral adentro. Uns paroquianos não gostaram: - Falta de respeito...
Mas o padre, que se preparava para celebrar a missa, não achou. Acompanhou os moradores na volta ao alto da escadaria e lá se soube que ele era um filho da General Rosinha, perto dali nascido, no Mont Serrat, por onde os ocupantes haviam descido para buscar apoios na cidade:

- Eu sou lá do Morro - informou o padre.
E ao final da conversa, arrematou:

– Que vocês continuem se unindo e mostrando força para esse mundo que está aí. Este é o nosso mundo. E cada um de vocês pode lutar por dias melhores.

Era o padre Eugênio Kinceski.

***

Há pelo menos sete ocupações organizadas (fora as espontâneas) na região de Florianópolis em áreas públicas ou em privadas que estavam sem uso. Todas sofrem repressão da Polícia Militar, das prefeituras ou do Judiciário para reintegração de posse. Na parte insular de Florianópolis, por causa do preço dos terrenos, ainda não foi possível construir nenhum empreendimento do Minha Casa Minha Vida para a Faixa 1, que atende famílias de baixa renda. Na parte da capital que fica no continente, foram apenas dois, num total de 156 apartamentos. A maioria está na periferia de Palhoça, onde a terra é mais barata. A lista de pessoas cadastradas à espera de uma habitação de interesse social na capital chega a quase 17 mil, mas os dados são de seis anos atrás. Em contrapartida, Florianópolis tem um dos metros quadrados mais caros do país, como na badalada praia de Jurerê Internacional. Mas muita terra hoje explorada para o turismo foi obtida por fraude.

O livro “O golpe da ‘Reforma Agrária’: fraude bilionária na entrega de terras em Santa Catarina”, de Gert Schinke, através de extensa pesquisa nos arquivos do extinto Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina (IRASC), que funcionou entre as décadas de 1960 e 1970, mostra que, dos cerca de 16 mil títulos de propriedade entregues pelo órgão, em torno de 11.200 poderiam ser considerados no mínimo irregulares pelos critérios que legalmente davam base para reforma agrária. Em vez de serem entregues prioritariamente a camponeses, posseiros e pescadores, como previa a lei, as terras foram concedidas a militares, funcionários públicos, empresários pecuaristas e profissionais liberais.

A Fundação João Pinheiro mostrou, ano passado, que o déficit habitacional (número de famílias que vivem em condições precárias de moradia) aumentou. Em 2015, era 6 milhões e 355 mil. O gasto excessivo com o aluguel passou a representar 50% do déficit habitacional do país. Ou seja, diz o cientista social Fernando Calheiros, em 2015 mais de 3,177 milhões de famílias urbanas com renda de até 3 salários mínimos acabaram comprometendo 30% ou mais da renda familiar mensal somente com o custeio do aluguel.

Isso foi antes que, em 2019, o IBGE anunciasse que o Brasil está com 13,1 milhões de pessoas desempregadas.

No final de senana passado, os moradores estiveram no Encontro Estadual Ocupações Urbanas e, neste sábado, no I Fórum do BRCidades de Santa Catarina, ambos na UFSC, denunciando a falta de interesse da Prefeitura em resolver a situação. A parte pública em que as famílias estão é Zona Especial de Interesse Social, destinada justamente para quem se encontra em situação precária de moradia.

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