Por Míriam Santini
de Abreu, jornalista
O cotidiano brasileiro tem mostrado o ódio que os grupos
dominantes têm das ocupações. De todas elas. Se universidades, escolas, Câmaras
de Vereadores, Assembleias Legislativas, praças, ruas ficarem às moscas,
usufruídas apenas pelos poucos à frente do poder instituído, a vida segue na
normalidade anormal do país. Mas ai de quem ousa ocupar em plenitude o espaço
público, as instituições públicas, a rua. Florianópolis dá mostras disso com
frequência. E ninguém expressa mais o ódio por isso gerado que o jornal Notícias do Dia, o ND, a usina ideológica
mais azeitada dos grupos dominantes de Florianópolis.
No capítulo 6 do livro “O segredo da pirâmide: para uma
teoria marxista do jornalismo”, Adelmo Genro Filho afirma que os grandes
jornais burgueses, em períodos de relativa estabilidade política, não são
abertamente propagandísticos ou formalmente opinativos. Eles se referenciam no
jornalismo informativo moderno. Mas, no período atual, não se fareja nada que
aponte qualquer forma de estabilidade, muito menos a política. E aí a imprensa
assume seu lado, tanto no espaço da informação – em que deveria reinar a
“pluralidade de ideias” (como afirma o ND no editorial da edição de comemoração
de seus 13 anos, em 13 de março último) – quanto no de opinião, como o
editorial e as colunas.
Um recente exemplo foi a cobertura das grandes
manifestações de 15 de maio em defesa da educação e contra a reforma da
Previdência, reunindo cerca de 35 mil pessoas nas ruas de Florianópolis. A
magra notícia do ND resumiu-se a afirmações sobre o trânsito “complicado” –
como se não o fosse nos dias sem manifestação – e nas declarações risíveis de
Jair Bolsonaro proferidas nos Estados Unidos. O editorial naquele dia seguiu na
mesma previsível linha.
Ideologia e mentira
O papel a que se presta o ND, de porta-voz da
perversidade, têm aspectos menos previsíveis, e eles aparecem em uma forma
específica de ocupação, aquela por moradia. Um marco disso foi a Ocupação
Amarildo de Souza, alvo da cobertura jornalística dos veículos da capital entre
dezembro de 2013 e julho de 2014. Talvez em nenhuma outra ocasião na história
recente da imprensa da capital tenha havido um fato gerador de tantas notícias,
editoriais, colunas e comentários virulentos quanto aquele. Foram 27 edições em
que o assunto esteve na capa ou na contracapa do ND. Parte da explicação para
isso é a localização inicial da ocupação, na SC-401, a caminho das mais
badaladas praias da Ilha.
Naquela cobertura, funcionaram todos os mecanismos da
ideologia: a inversão de fatos, a sua naturalização, a ocultação do que não
convinha ao expô-los e a apresentação de interesses particulares como se fossem
universais. E apareceu mais: a mentira. O próprio ND, à época, divulgou que o
terreno ocupado pelas famílias, ao contrário do que inicialmente fora
publicizado, não era particular, e sim público em sua quase totalidade. Mas, na
já citada edição comemorativa de 13 anos do jornal, em 13 de março último, o
ND, ao mencionar as ocupações como um dos maiores problemas de Florianópolis,
afirmou, junto ao título “Invasão ilegal e prejudicial”: “Com exclusividade, ND
revelou e depois combateu a ocupação oportunista de área particular no Norte da Ilha”. Não se trata de ideologia ou
manipulação dos fatos, e sim de mentira.
A escalada do jornal contra as ocupações – chamadas por
ele de invasões – recrudesceu em 2018, em especial em junho. Entre os dias 5 e
30 daquele mês, o assunto apareceu em 8 edições, sempre com chamada da capa –
uma delas em manchete – e três editoriais. O alvo, desta vez, foi a Ocupação
Marielle Franco, no alto da Caieira (Maciço do Morro da Cruz), parte dela em
área particular, parte em área pública, em uma Zona Especial de Interesse
Social. As chamadas ZEIS são destinadas justamente para a construção de
moradias para famílias de baixa renda, mas a Prefeitura de Florianópolis até
hoje não conseguiu viabilizar nem um só empreendimento do programa Minha Casa
Minha Vida na Ilha para a chamada faixa 1, a de menor renda.
Em 2019, a escalada virou uma cruzada. Ela começou na
edição de 13 de março e se consolidou na de 23/24 de março, dedicada ao
aniversário de Florianópolis. Com o jornal, o ND distribuiu a tradicional
revista FloripaÉ e um produto novo, o Dossiê ND (na foto), dedicado às
“bandeiras em defesa das causas de Florianópolis”, assim listadas: Invasões /
Mobilidade / Presídio / Turismo / Comcap / Cidade Limpa / Ponta do Coral /
Marina. As denominadas invasões pelo ND mereceram seis páginas do dossiê.
Na edição de 27 de março, o ND abriu uma série de
reportagens – dos dias 27 a 29 - sobre as chamadas invasões irregulares “e as
soluções para que Florianópolis não vire um novo Rio de Janeiro”.
Cruzada contra
ocupações
A referência a uma cruzada do jornal contra as ocupações
não é aleatória. No editorial da edição de 17 de maio – depois de mais uma
série de matérias sobre o tema –, aparece o seguinte trecho: “Aos moldes da
força-tarefa que resolveu o problema de boa parte dos imóveis abandonados na
Capital, o grupo formado para atuar contra as invasões e ocupações ilegais de
terrenos públicos e particulares é um passo importante nessa verdadeira cruzada
de Florianópolis contra a favelização e domínio do crime organizado”.
Outro trecho afirma que os “invasores” “abrem uma chaga
na cidade”: “Estamos a um passo de perder o controle dessas áreas e à mercê de
verdadeiras tragédias sempre que o volume de chuva é um pouco maior, já que a
cobertura verde dos morros está dando espaço às casas que surgem por lá do dia
para a noite”.
A força-tarefa a que o editorial se refere tem a ver com
a notícia publicada na mesma edição, sobre a iniciativa do Ministério Público
de Santa Catarina (MPSC) de instaurar inquérito civil e buscar soluções contra
as ocupações. Esse é o aspecto menos previsível da previsível cobertura
ideológica do ND: o jornal – acompanhado por todos os demais veículos do grupo
RIC, impele a tomada de providências, mas os convidados a protagonizá-la têm
endereço certo. Quem foi convidado para a primeira reunião da força-tarefa do
MPSC? A prefeitura e os empresários.
A notícia de 17 de maio não registra todos os nomes e
entidades dos participantes daquela primeira reunião, mas menciona três: a
organização FloripAmanhã e o Conselho de Segurança do Centro. E informa ainda
que para a próxima, no final de maio, serão convidadas secretarias municipais,
a organização FloripAmanhã, o movimento Floripa Sustentável e a Câmara de
Dirigentes Lojistas. Os três últimos representam todos os setores do
empresariado de Florianópolis.
No dia 15 de abril de 2019, o movimento Floripa
Sustentável apresentou um manifesto, divulgado pelo jornal e intitulado
“Manifesto em favor de Florianópolis”, “(...) para levantar a discussão em
torno da inclusão social como eixo de desenvolvimento da cidade” tendo como
lema “Prosperidade com Inclusão Social”. O manifesto afirma que o Movimento tem
quatro pilares: o desenvolvimento econômico, a inclusão social, a preservação
ambiental e o planejamento urbano. Cabe destacar quais seriam as ações
consideradas urgentes sugeridas pelo movimento Floripa Sustentável para a
cidade e extraídas do manifesto:
*Alterar o plano diretor para elevar o gabarito atual de
4 andares vigente na Ilha, com exceção do Centro, para 10 ou mais andares, de
acordo com as características de cada região
*Construção de 4 mil residências por ano, não excluindo
aquela parcela da população que se afavela nos morros, nas restingas, nos
mangues e nas dunas, num processo que à jusante, aparece a criminalidade, o
tráfico de drogas e a insegurança em toda a cidade
*Criação de centralidade (bairros que podem viver quase
por conta própria para aliviar o trânsito entre as regiões e o Centro).
*Disciplinar a entrada de imigrantes sem condições.
*Multiplicar as iniciativas visando motivar crianças e
adolescentes moradoras em áreas precárias para o esporte, as música, o
artesanato, etc.
*Multiplicar as ações sociais nas favelas
No manifesto, as ações sociais nas favelas não são
explicitadas, nem esclarecida a fonte de recursos para a construção de 4 mil
residências por ano. Apesar de a inclusão social ser tomada como eixo de
desenvolvimento da cidade, do ponto de vista dos impactos no espaço urbano o
que interessa são os demais itens: construir prédios com mais andares no
centro, criar centralidades nos bairros, acessíveis a quem pode pagar muito
para morar nos melhores localizados e, sobretudo, disciplinar a entrada de
imigrantes sem condições.
Será, portanto, nestas bases a contribuição do
empresariado – aparentemente, até agora, a contribuição majoritária – para a
força-tarefa do Ministério Público de Santa Catarina. Isso em um contexto no
qual a cidade irregular alcança quase 85% do território da Ilha, inclusive a
porção mínima e precariamente urbanizada. A população de estratos sociais de 0
a 3 salários mínimos perfaz quase 40% da população e não chega a representar
15% do território ocupado irregularmente. O restante é de outros estratos
sociais e, principalmente, dos setores imobiliários especulativos, que têm objetivos
claros de obtenção de renda e não de uso habitacional familiar. A moradia é condição mínima para uma vida digna em um cenário no qual estão sendo destruídos todos os avanços alcançados desde a Constituição Federal de 1988.
Natureza como álibi
O frequente receio do ND de que Florianópolis vire o Rio
de Janeiro é por demais conveniente. Para compreender isso, há que ler o artigo
de Rose Compans intitulado “A cidade contra a favela”, no qual a autora mostra
a apropriação do discurso da preservação ambiental para a retomada da discussão
sobre remoções de favelas no Rio de Janeiro, medida rechaçada no processo de
redemocratização do país.
Cita-se um trecho do resumo do artigo: “Depois da favela
como foco de epidemias e antro de marginais, a mais nova representação social
que vem sendo construída apresenta-a como fator de degradação ambiental.
Auxiliada pelo saber técnico-científico que demonstra empiricamente os danos ao
meio ambiente causados pelas ocupações irregulares, observa-se a constituição
de um movimento conservador que busca pressionar os poderes públicos a
reprimi-las, sobretudo nas áreas mais valorizadas da cidade”. Subjacente a essa
representação da favela como elemento de degradação ambiental, mostra o artigo,
está o pressuposto de que o pobre desmata e o rico preserva.
A autora analisa a campanha promovida, em 2005, pelo jornal
O Globo, intitulada “Ilegal. E daí?”,
que teve como consequência uma ação movida pelo Ministério Público Estadual
solicitando à Prefeitura a remoção de 13 áreas favelizadas. Ou seja, aqui como
lá, o jornal começa a “cruzada”, omite a opinião de quem olha os fatos por
outro prisma e toma o objetivo – terminar com as ocupações – como de interesse
de toda a cidade, seja da forma que for. Do mesmo modo, legitima tal interesse
pelo combate ao crime organizado, mote frequente do ND, e para evitar danos ao
meio ambiente e tragédias por deslizamento em áreas de risco.
Não há, porém, levantamentos atualizados sobre onde são
exatamente essas áreas, se coincidem com as das ocupações que o jornal combate
e o risco efetivo para os moradores. A preocupação com danos ao meio ambiente
não pode ser levada a sério vinda do ND, que sempre se posicionou a favor dos
interesses do empresariado e considera tais preocupações um “entrave”, como
mostrou em série divulgada em 2015 e na recente posição a favor da manutenção
dos beach clubs. Do ponto de vista do empresariado, ainda menos.
Empreendimentos como o Costão Golf, por exemplo, da mesma propriedade do
badalado Costão do Santinho, provocaram mudanças oportunistas de legislação
para saírem do papel. Mais: o Costão Golf ganhou uma lei só para ele, a Lei
Complementar 133/2003, que permitia até mesmo a instalação de um teleférico de
integração do Costão Golf Club ao Costão do Santinho sobre as dunas dos
Ingleses e Santinho.
À parte o que a ideologia do ND encobre, está o fato motivador,
reluzente, cristalino, desta cruzada contra as ocupações: proteger a
propriedade privada e tomar para uso privado o que, na Ilha, ainda é público.
Isso é dito pelo próprio jornal, no editorial da edição de 9 de maio: “A pressão da sociedade precisa ser
permanente, até que a propriedade privada seja respeitada e a urbanização da
cidade seja plena, evitando que áreas de interesse social ou preservação
permanente sejam ocupadas irregularmente”. O jornal ignora até mesmo um pequeníssimo avanço sob o capitalismo, a função social da propriedade e da cidade previstas na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade, de 2001.
Sim. É disso que se trata. Mesmo nas áreas de interesse
social, será o empresariado a ditar o que é ou não regular. O poder público –
como historicamente ocorre na Ilha – irá direcionar os investimentos públicos
em áreas e em obras decididas pelos grupos dominantes, processo amplamente
mostrada no livro da professora e pesquisadora Maria Inês Sugai intitulado “Segregação silenciosa:
investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de
Florianópolis” (Editora da UFSC, 2015).
A charge abaixo, também na edição de 17 de maio, foi
publicada à guisa de elogio à força-tarefa do MPSC. Mas ela expressa,
perversamente, a relação de força entre seres humanos transformados em coisas.
Dentro da retroescavadeira – com seu olho de ódio –, a força-tarefa dos grupos
dominantes da cidade e seu discurso de defesa da natureza e da inclusão social;
dentro do casebre minúsculo, em fuga, as pessoas que podem ser jogadas na rua
pela incapacidade de pagar – e bem – para morar na Ilha da Magia. A charge
evoca casas marcadas para desaparecer e lembra a atuação da Polícia Militar em
uma ação violenta na Ocupação Marielle Franco, quando, em meio ao terror dos
moradores, algumas casas foram marcadas com a letra “D”.
A essa perversidade de que o ND é porta-voz, movida pelo ódio,
há que se contrapor outro ódio, do tipo tão bem descrito pelo poeta Cruz e
Sousa em seu poema “Ódio Sagrado”:
Ó meu ódio, meu lábaro bendito,
Da minh'alma agitado no infinito,
Através de outros lábaros sagrados.
Ódio são, ódio bom! sê meu escudo
Contra os vilões do Amor, que infamam tudo,
Das sete torres dos mortais Pecados!
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