Coletivo Anarquista Bandeira Negra divulga documento sobre caso de violência contra a mulher dentro de suas fileiras.
O caso de violência de gênero com o qual tivemos que lidar foi acompanhado de muitas discussões, internas e externas, e em aprendizados importantes para nossa militância. Não existem respostas prontas, mas compartilhamos algumas reflexões e avaliações.
1) O peso da cultura que cria relações de poder entre os gêneros não pode nunca ser subestimado, pois perpassa todas as relações sociais e, entre elas, os processos de organização e luta dos oprimidos. Por isso, nenhum dos homens está imune a exercer posturas machistas, assim como ninguém está imune de reproduzir opressões.
2) Isso exige organização das(os) oprimidas(os) para lutar contra o silenciamento, a dominação e a violência que as opressões produzem. Porém, exige também a identificação dos privilégios que essas opressões trazem aos homens, assim como também aos brancos, aos heterossexuais, etc. A reprodução desses privilégios acontece, em grande parte, de forma inconsciente, naturalizada, e por isso é necessário esse esforço de identificação e reflexão.
3) Também por isso, a questão das opressões deve ser parte constituinte de todas as lutas sociais que construímos, tarefa de todo e toda militante. É no seio dos movimentos populares que queremos forjar novas relações sociais de liberdade e igualdade, um processo que tem local inequívoco junto à nossa classe e suas lutas, além de acontecer em nossa vida cotidiana.
4) Consideramos que os comportamentos anti-sociais (como a violência e o machismo) não vêm determinados pela natureza, mas são construídos pela relação com a sociedade. No entanto, avaliamos que manter a possibilidade da volta do militante foi um erro, porque não temos estrutura pra lidar com o acompanhamento, avaliar efetivamente sua mudança de comportamento e garantir espaços políticos abertos e confortáveis a todas e todos, particularmente a vítima. Ainda assim, estivemos de forma inequívoca ao lado da vítima e sem menosprezar a gravidade do ocorrido.
Núcleo Florianópolis – Coletivo Anarquista Bandeira Negra
No início do mês de junho de 2013, recebemos a informação de que o militante Leandro Bó, da Frente Comunitária da nossa organização, havia agredido a companheira com quem morava e ainda mantém um relacionamento. Além disso, outros comportamentos violentos eram recorrentes, como humilhação e coerção psicológica, que nos foram relatados pela própria companheira, que atua junto a nossa militância nos movimentos sociais, além dos vínculos de amizade que temos.
Para nós, essa foi uma quebra de confiança completa e uma atitude em total desacordo com nossos princípios. Defendemos que a luta contra o machismo e o patriarcado são centrais, assim como todas as opressões, e que um caso de violência de gênero é inaceitável vindo de quem quer que seja. Vindo de alguém que se considera anarquista, é absurdo e incoerente.
Nós nos posicionamos, desde então, em completa solidariedade à companheira, que buscamos auxiliar nesse momento difícil. Ajudamos sua mudança da casa, oferecendo outro lugar para que morasse.
Sugerimos que ela denunciasse a história e nos dispusemos a ajudar nessa tarefa, porque entendemos que o silêncio só favorece o agressor, assim como já nos posicionamos em outros casos de violência machista. No entanto, respeitamos seu pedido de sigilo e, por isso, a história não foi tornada pública naquele momento.
Quanto ao militante, ele foi imediatamente afastado da organização, tanto externa quanto internamente. Por ter reconhecido o grave erro cometido e alegado disposição para mudar seu comportamento, estipulamos uma série de exigências necessárias para reavaliarmos posteriormente a retomada (ou não) de sua atuação em nossos espaços: 1) nunca mais agredir ou ter posturas violentas em um relacionamento, 2) procurar ajuda psicológica para seu comportamento agressivo, 3) procurar também um grupo de reflexão para agressores, para discutir e refletir sobre suas posturas, 4) se manter afastado da militância, 5) ler e pesquisar sobre feminismo e violência de gênero, para produzir um material de síntese sobre o tema, 6) fazer repasses periódicos à nossa organização sobre o cumprimento dessas exigências, para avaliação coletiva.
Esses passos não foram cumpridos e o militante reincidiu na agressão. Por isso, julgamos que é necessário nos posicionarmos publicamente, o que fizemos discutindo novamente junto à companheira.
Entendemos que essas eram exigências mínimas para começarmos a lidar com seriedade com o problema da violência de gênero, que não é uma falha individual de uma ou outra pessoa, mas uma questão social, amplamente difundida e sustentada na cultura machista que vivemos. Buscamos dar uma resposta mais efetiva que uma mera expulsão, que apenas lavaria nossas mãos, isolando o ex-militante das discussões feministas e libertárias onde ele precisa estar inserido, agora mais do que nunca. Ao mesmo tempo, buscamos não expôr nenhum(a) companheiro(a) a atuar politicamente ao seu lado sem estar ciente da situação.
Soluções punitivas, mas que não tratam da origem dos problemas, são a prática que o Estado já oferece hoje. Para construir uma sociedade libertária e feminista, precisaremos construir métodos que sejam feministas e libertários para tratar dos problemas sociais, incluindo aí a violência de gênero. É uma tarefa muito árdua, na qual temos mais dúvidas do que respostas, mas que julgamos necessária.
Por isso, precisamos continuamente debater as questões de gênero e reavaliar nossas posturas políticas, incluindo aí todas as relações sociais. Pois dentro de um sistema onde a violência estrutural é uma característica central as relações sociais também estão marcadas pela opressão. Vemos cotidianamente as lutas feministas serem secundarizadas nos movimentos sociais e organizações de esquerda, inclusive nos meios libertários, e precisamos estar dispostos a enfrentar essa situação. Não queremos com essa nota nos isentar de quaisquer avaliações ou críticas, mas sim dar visibilidade a essa questão e fortalecer a discussão de gênero dentro dos espaços políticos que participamos.
Lançamos esta nota não apenas para tornar público uma violência de gênero, mas porque queremos construir juntos os mecanismos de uma justiça revolucionária libertária – pois a liberdade só se constrói com liberdade.
Assim como o socialismo será libertário ou não será socialismo, a revolução será feminista ou não será!
Núcleo Florianópolis – Coletivo Anarquista Bandeira Negra
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