quarta-feira, 31 de julho de 2013

Estatuto do nascituro: retrocesso e intransigência


Texto: Clarissa Peixoto
Foto: Marcela Cornelli

Ativistas tomaram as ruas brasileiras, nessa temporada de agitação popular em que vive o Brasil, contra o projeto de lei (PL) 478/07, batizado como Estatuto do Nascituro. A matéria, de autoria dos deputados Luiz Bassuma e Miguel Martini, versa sobre os direitos do embrião humano. Em junho, o PL recebeu parecer favorável da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara Federal. Em breve, estará em pauta na Comissão de Constituição e Justiça.

O projeto apresenta retrocesso à integralidade da saúde da mulher. Constitui vida social a um conjunto de células em detrimento da redução de direitos das mulheres, conquistados através da organização e da luta de movimentos e entidades. Segundo a proposta do famigerado Estatuto do Nascituro, os direitos do embrião se sobrepõem aos da gestante, impedindo que ela interrompa a gravidez em qualquer circunstância – ou, pelo menos, abrindo precedente para que ela não a faça. No Brasil do século XXI, o aborto é permitido em três casos: gravidez resultante de violência sexual, gestação de fetos anencéfalos ou em casos de riscos à vida da gestante. O Estatuto do Nascituro retroage nesses direitos quando abre precedente, através de justificativas legais, para a punição de quem realiza o procedimento inclusive nesses casos. Ou seja, o Estatuto do Nascituro não altera o Código Penal, mas subsidia interpretações sobre a prática da interrupção da gravidez, impedindo mulheres de realizá-la, amparada no direito do embrião humano de sobreviver.

Esse projeto de lei sedimenta, tanto do ponto de vista da estrutura jurídica quanto do ponto de vista sócio-cultural, as ideias mais conservadoras de propriedade sobre o ser humano. Para além disso, tenta impor uma ideia de "início da vida" calcada em preceitos que não partem de um entendimento que contempla o conjunto da sociedade, advindo de uma perspectiva que ultrapassa os limites da laicidade do Estado, pilar fundamental para a vida coletiva, mesmo que sob os auspícios do ainda conservador Estado Democrático de Direito.

Segundo esse PL, vítimas de violência sexual devem levar até o fim a gravidez. O projeto prevê subsídio, intitulado pelos movimentos como ‘bolsa estupro’, através da garantia ao feto de uma pensão até completar 18 anos de idade. De acordo com o texto, “identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, será este responsável por pensão alimentícia nos termos da lei”. O Estado brasileiro, ao promover essa possibilidade, legitima o crime de estupro, criando mecanismos que obrigam a mulher manter a gravidez resultante de violência sexual e permitindo ao 'bandido' o status de pai. 

Embora o texto não especifique, mulheres que tenham sofrido abortos espontâneos, cerca de 25% das gestações, podem ser culpadas pelo fato, afinal uma lei que coíbe todo o tipo de interrupção da gravidez abre precedente para acusação e investigação. Em El Salvador, país que aplica pena absoluta à prática, mulheres que sofreram abortos espontâneos foram condenadas. É importante lembrar que a Organização das Nações Unidas (ONU) recomendou ao Brasil reformas na legislação sobre o aborto, preocupada com o alto índice de mortalidade materna devido à prática clandestina.

O PL também vai de encontro à Lei de Biossegurança e às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) ao incluir no conceito de nascituro “os seres humanos concebidos ainda que ‘in vitro’, mesmo antes da transferência para o útero”. Em 2008, o STF decidiu que a pesquisa com células-tronco embrionárias não viola o direito à vida e ainda permite estudos que garantam o direito à saúde. 

Opiniões divergentes balizam o debate sobre o tema. De um lado, visões fundamentalistas exigem que o Estado seja porta-voz de posições constituídas a partir das crenças de determinados grupos. Por outro, não havendo um entendimento científico sobre o início da vida, o Estado deve respeitar o direito à saúde e a escolha das mulheres. A luta contra o Estatuto do Nascituro toma contornos para além da defesa dos direitos da mulher. Ao aprová-lo, o Estado brasileiro parte de princípios de cunho religioso e misógino, abrindo precedente para que outras liberdades humanas sejam atacadas. A defesa do Estado laico e dos direitos das mulheres é imprescindível para a garantia dos direitos humanos em toda a sua universalidade.

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