Elaine Tavares
Aprendi com meu irmão,
há muitos anos, que não há nada pior no humano do que a hipócrita (por
vezes não intencional) musculação de consciência. E isso é coisa que
acontece muito no meio daqueles que estão no topo ou no meio da pirâmide
social. Olham para o sofrimento dos pobres - a comunidade das vítimas
do sistema - como se fossem coitadinhos, e sentem pena. Podem até chorar
diante de uma foto ou de uma dada situação. E desde sua pena, buscam
ajudar, musculando a consciência. Um quilo de arroz numa campanha para
vítimas da enchente, um agasalho para as entidades filantrópicas, uma
doação ao “criança esperança”. Depois, consciência musculada, voltam a
vida normal, certas de que fizeram tudo que podiam fazer. Arrisco dizer:
isso não é suficiente. Apazigua a consciência, mas não muda as coisas.
Detectei essa reação
nesses dias em que se resolveu prestar atenção ao sofrimento indígena.
Um grupo de índios Guarani, do Mato Grosso do Sul, que desde há 500 anos
vêm observando a estranha mania dos cristãos – seus dominadores - em se
purificar no sacrifício, resolveu expor a chaga aberta do sofrimento de
sua gente numa concreta vivência sacrificial. Ou lhes deixam viver nas
suas terras, ou se matam, em grupo. Ato extremo, sofrimento extremo,
decisão extrema. Então, como que atiçados pelo sempre excitante momento
do sacrifício, as gentes brasileiras decidiram começar a falar do
“absurdo” que é essa desesperada decisão. Assim, terminada a novela das
oito, que segundo algumas vozes “parou o país”, agora as redes sociais e
todos os que têm espaço de voz nos meios começaram a discutir a questão
dos Guarani que estão prometendo se matar. Sinto aí certo cheiro de
musculação de consciência.
O grito dos Guarani de
Mato Grosso do Sul não é o primeiro nem será o último. Desde o momento
em que os povos originários perceberam que a cruz e a espada que
chegavam com os homens do além-mar eram armas de opressão, a luta pela
manutenção do direito de viverem na sua terra, com seus deuses e do seu
jeito, começou. Ao longo dos anos, com a colonização europeia, milhões
de pessoas foram assassinadas, das formas mais cruéis, simplesmente
porque atrapalhavam o caminho para o ouro e as riquezas do novo mundo.
Essa gente desesperada que hoje grita em agonia por um naco de terra
onde descansar a cabeça, é a mesma gente que antes da invasão aqui vivia
em fartura, nas grandes cidades como Tenochtitlán, Cuzco, Tiuahanaco,
maiores e mais populosas que Madrid, Lisboa ou Florença no mesmo tempo.
Eram homens e mulheres que conheciam a astronomia, a matemática, a
hidráulica, a engenharia. Eram os que experienciavam uma forma de vida
comunitária, na qual ninguém passava fome, no mesmo tempo em que na
Europa medieval as pessoas padeciam de fome crônica. E foram eles os
considerados sem alma, os passíveis de todo o tipo de selvageria e
escravidão, porque não falavam a língua espanhola ou portuguesa e
professavam outra fé, na variedade dos deuses.
O grito dos Guarani de
Mato Grosso do Sul é o mesmo grito do cacique da etnia Taíno, Hatuey,
que, em 1511, poucos anos depois da invasão, ao descobrir que o deus
verdadeiros daqueles homens era o ouro, viajou desde o Haiti até a ilha
de Cuba, com 400 guerreiros, para avisar que o que chegava pelo mar era a
destruição. Não foi escutado. Mesmo assim se dispôs a lutar contra os
espanhóis e só parou quando foi capturado e morto na fogueira. Foi
vencido pela força dos arcabuzes, tendo seu povo sido dizimado em
castigo. Esse grito segue aí. Também continuam ressoando os gritos de
Cuauhtemotzin, no México, quando em 1520 igualmente iniciou a
resistência contra os espanhóis que haviam assassinado milhares na
cidadela de Montezuma, e os de Ruminahuia, que na região de Quito também
se levantou em rebelião contra os que queriam destruir seu mundo e o
dos seus. E o que dizer dos Tamoios no Brasil de 1562, que chegaram a
constituir uma confederação para enfrentar a vilania portuguesa?
Pois essa gente tem
gritado, lutado, batalhado, peleado desde os primeiros momentos da
invasão. E, desde sempre esses gritos foram abafados, porque os
indígenas não eram vistos como seres capazes de gerir suas vidas. Eram
homens e mulheres dominados que tinham de se render calados e servis. Só
que nunca foi assim. A batalha pelo continente segue aí, desde então.
Mas, como sempre
acontece, os vencedores impõem suas razões. Os povos indígenas foram
dizimados em nome do progresso e do bem estar dos invasores. Os que
valentemente sobraram acabaram confinados em reservas, ora como bichos
raros, ora como coitadinhos e incapazes. Integrar o índio à sociedade
passou a ser o mantra dos caridosos vencedores. E os que acreditaram no
engodo já viram o que sucedeu. Incorporados a uma sociedade racista,
patriarcal, capitalista, seguem sendo vistos como seres inferiores,
mesmo os que chegaram aos mais altos postos da estrutura social. Índios,
os seres sem alma.
Há poucos anos o país
acompanhou a polêmica da reserva Raposa Terra do Sol, uma imensidão de
terra indígena que os originários lograram garantir para si. Quem não se
lembra dos ferozes argumentos da distinta sociedade pensante? “Para quê
tanta terra para índios? O que eles vão fazer com isso? Vão destruir
tudo e vender as madeiras.” Esse era o diapasão dos caridosos
brasileiros. E as batalhas pela região do Xingu que estão aí, se
arrastando há anos, sem que ninguém se apiede das almas das gentes que
vão perder seus rios, seus deuses, seu território em nome de uma
barragem para gerar energia aos estrangeiros. E os mesmos piedosos
argumentam que “essa gente” (os índios) é o atraso, a decadência, o
anacrônico, incapaz de ver a importância do progresso que virá com a
devastação da Amazônia.
É que esses índios são
os que, por estarem em grandes grupos e articulados com movimentos
sociais, lutam. Travam a boa batalha contra a destruição do seu modo de
vida. E como valentes guerreiros precisam enfrentar as armas inimigas
que já não são só arcabuzes e cavalos. Vêm acompanhadas da mídia que
fortalece pré-conceitos e visões pré-determinadas do poder. Esses, os
“arruaceiros”, não são dignos de piedade por parte da sociedade que fica
em frente à TV musculando sua consciência.
Então, das entranhas do
cerrado mato-grossense, um pequeno grupo de Guarani-Kaiowá, que luta
desde há anos por demarcação das terras, sofrendo violência, mortes,
assassinatos, desaparição e o sistemático suicídio de seus jovens
guerreiros, resolve usar a última arma que lhe resta: o próprio corpo,
sua humanidade, o corpo coletivo de toda a gente. O drama dessas
famílias vem sendo denunciado ano após ano pelos Cimi, por jornalistas,
por estudiosos, por todos os que se importam, mas nunca tocou o coração
das maiorias. O ataque diário dos fazendeiros, a violência da justiça
local que não os escuta, o preconceito e o ódio dos que vivem na cidade,
picados pela ideia de que os índios só atrapalham o progresso, tudo
isso é tema de debate e denúncia nos fóruns de luta social. Mas, nunca
houve piedade. As terras seguem sendo griladas, roubadas, subtraídas dos
índios. A vida foi se extinguindo, o espaço se apequenando. Foi preciso
um ato extremo, uma decisão de desespero, para que a nação se voltasse
para esses que são os cordeiros de um novo sacrifício. Agora sim é a
hora da compaixão. Os “atrasados” não estão armados, não estão em luta,
não fazem arruaça. Eles desistiram. Não têm mais força. São muito
poucos, estão sozinhos. Eles desistiram. Já não são mais “perigosos”.
São apenas as ovelhas do sacrifício. Eles desistiram. Estão vencidos.
Então, por esses sim, podemos rezar, chorar, nos apiedar. Sepulcros
caiados. Sociedade apodrecida.
Arrisco dizer que os
Guarani-Kaiowá sabem muito bem dessa hipocrisia ocidental, dessa
pantomima que os piedosos gostam de fazer para parecerem bons. Ah, eles
conhecem essa psicologia desde há 500 anos. E, agora, se valem disso
para expor o seu drama e para testar a “bondade” branca. Mas, eles não
estão brincando. Seu grito de agonia ecoa anos a fio. Nada nunca foi
feito. Já basta. Não há sentido viver quando a vida não pode se fazer
real. Diante de uma justiça que protege o rico, o grileiro, o ladrão;
diante de uma sociedade que vê como normal a miséria e o abandono de
famílias inteiras na beira da estrada; diante do opressivo preconceito
que as pessoas da cidade manejam cotidianamente, o que fazer? Se vida
não há, porque preservar um corpo? A lógica da simplicidade.
E os Guarani-Kaiowá
colocam a sociedade brasileira diante de um dilema também. Salvá-los não
basta. Definir uma terra para aquelas famílias não significa o fim do
drama indígena no Brasil. O apressado movimento dos atletas de
consciência em demarcar áreas para essas famílias em particular não
acomodará as tensões que eclodem todos os dias nas áreas permanentemente
em disputa entre indígenas e grileiros ou entre indígenas e Estado. Há
que ultrapassar esse limite da resolução de um drama singular. Há que se
colocar de frente com todos os conflitos. Há que se compreender a
realidade indígena, conhecer seus costumes, seus deuses, seu modo de
organizar a vida. Salvar os Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul não
pode ser só um ato a mais de musculação de consciência, praticado numa
situação específica, com um grupo específico. O drama indígena em
“nuestra américa”, inaugurado com a valentia de Hatuey, atravessando
perigosas ondas do Haiti até Cuba para anunciar a desgraça e conclamar a
união na luta, não se esgota naquele grupo de homens, mulheres e
crianças que hoje assumem a condição de cordeiros de sacrifício. Os
indígenas não precisam de nossa pena, nem da nossa comiseração. Eles só
precisam ser respeitados nos seus direitos e na sua vontade de ser quem
são.
Os Guarani-Kaiowá estão a dar uma lição. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E aprenda!
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