quinta-feira, 23 de junho de 2011

Mulheres que príncipes não amam ou Quem é a ave de rapina?



Míriam Santini de Abreu

Moro sozinha em uma kitinete, quase não tenho eletrodomésticos, mas gasto uns 50,00 de luz por mês. Tudo por causa do chuveiro. Por causa da água. Porque encostar-me nos azulejos e deixar a água correr tépida ao longo do corpo é um alívio, uma sensação que me recupera do que me devasta. Vi neste final de semana "Cisne Negro", devastador. Que seja no balé, uma arte clássica, restrita aos bem-nascidos, o modo de representar o que a realidade do mundo faz com os seres, é algo inquietante. Se o compositor russo Tchaikovsky faz de Odile e Odette dois seres/cisnes distintos, no filme eles são seres/cisnes num corpo só, num espírito só, dividido, atormentado. O príncipe Siegfried ama Odette, e com seu amor pode quebrar o feitiço que a faz ser mulher/cisne. Mas Odile o engana, e é com ela que o príncipe dança para quebrar o encanto. Odette, a princesa dos cisnes, o perdoa, mas o mago, a ave de rapina que controla o lago e os cisnes, inunda o lago e o príncipe some nas profundezas onde navegam as aves. Odette prefere a morte a suportar essa dor.
No filme, a protagonista Nina, interpretada por Natalie Portman, deve interpretar os dois cisnes. Meiga menina, como a chama sua mãe - mulher a amargar uma vida de frustração, - a jovem bailarina, fragmentada, vê na morte, como Odette, o fim da dor. Diz, em em sua última frase, que sentiu a perfeição, tão cobrada por seu mentor, que montava o espetáculo. A meiga menina, o cisne/mulher Odette, experimenta plenamente, no corpo e no espírito, a malícia sedutora de Odile, que tão desesperadamente busca experimentar, não pela técnica, mas pelo espírito.
Faz-me lembrar de uma reportagem que li sobre o genial bailarino russo Vaslav Nijinsky, que pouco antes dos 30 anos foi diagnosticado como esquizofrênico e passou o resto da vida em clínicas: "Sou espírito num corpo cujo nome é Nijinsky".
A doce Nina experimentou em si o cisne branco e o cisne negro. Se, no balé clássico, é o cisne branco que prefere a morte à dor, no filme, dividida entre os dois, Nina mata ambos, porque é no papel de ambos que experimenta a dor.
Li sobre as naus dos loucos na idade média - http://www.rolim.com.br/ensaio2.htm - e vi a pintura "Nau dos Insensatos", de Bosch, acima - http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Jheronimus_Bosch_011.jpg - onde, no alto da ávore, parece estar a figura da ave da rapina que controla o lago dos cisnes. A ave, na peça, sabia: os príncipes amam Odettes ou desejam Odiles, com quem dançam, talvez, mas só talvez, enganados. Mas princípes não amam cisnes que carregam, em si, Odette e Odile. Esses cisnes não são frágeis como Odette, nem feiticeiras como Odile. São ambas. Nina, a Odette/Odile, nunca encontrou um príncipe na sua vida, totalmente entregue ao balé, e não se permitia nem o prazer físico. Foi ao fundir os cisnes, num delírio triste, que encontrou a perfeição que procurava. E a morte.
Mas e se Odette e Odile forem mesmo um único cisne, que toma formas diferentes enquanto desliza nas águas, então não há o que as divida: são o Algo Único, multifacetado, do que é o Humano. O que as faz divididas é a ave de rapina, que controla e dispõe sobre a vida no lago. Mas quem é a ave de rapina?

Um comentário:

Anônimo disse...

Oportuna crítica de Cisne Negro. Daquele duplo, ser dividido, animal desperto que nos faz acossados de nós mesmo.