quarta-feira, 20 de abril de 2011

A pequena marca da loucura

Míriam Santini de Abreu

Não sei se é coisa do ofício ou se é do humano. Eu, galé no mar, onde navegam tantas outras, sinto com freqüência o pulsar dos remadores. Se estão famintos, saciados, cansados, bem dispostos. Sinto quando alguém ergue um muro invisível em volta de si, tensa a musculatura, embaçados os olhos. E se muro há, respeito e me mantenho longe. Mas os que amo são aqueles que, remando na galé do corpo, roçam em mim a alma. Duas galés que se tocam, e os remadores dentro de cada uma farejam águas, temperos, suores em comum. E mais: farejam no outro "a pequena marca da loucura". E quando estão em terra, galés e remadores, os vejo sorrir, lavar peixes na madrugada, lançando um ou outro aos telhados, onde aves os levarão de volta às águas. Não sei o que instiga o farejar, não sei porque galés passam, tantas, e mal as diviso no horizonte. Não sei porque, num vespertino ou num matutino, uma certa galé um dia sai do nevoeiro leve e choca-se com a minha. Mas não adernam. Se enlaçam, duas galés no mesmo tempo, no mesmo espaço, a balançar nas mesmas águas, com remadores a farejar, um no outro, suas pequenas marcas de loucura. Na verdade, sei. Mas não compreendo, e nem quero compreender. Se a gente compreende demais, fica com pudor de farejar. Com pudor de viver.

http://www.youtube.com/watch?v=OlnJL4Mv1vM&feature=player_embedded

2 comentários:

Samuel Frison disse...

Amei, lembrei-me da Clarice, "viver ultrapassa qualquer entendimento". Celebremos as pequenas loucuras que nos fazem tão singulares. Beijos. Sá.

Sílvia Sales disse...

Bom demaissssssss!
beijocas.