terça-feira, 15 de março de 2011

Cerca Grande

Cerca Grande

Novela Biguaçuense

Míriam Santini de Abreu

Capítulo 1: Descobri que te amo demais

O bar tinha nome de santo, o que era boa coisa. Ficava perto do Centro e não era preciso dar grandes voltas para chegar ali e tomar o chope das sextas. Mas Cristóvão tinha que correr. As entregas foram muitas naquele dia, estava atrasado, e não via hora de contar aos amigos a novidade. Tomara uma decisão.

Entrou porta adentro esbaforido e, num canto, viu os caras. Parou na frente na mesa, começou a tamborilar com os dedos e sorriu:

- Descobri que te amo demais, descobri em você minha paz, descobri sem querer a vida...

- Verdade!? – emendaram os outros três no coral improvisado, mas para logo sacanear:

- Oh, loco! Viu o Zeca, um passarinho verde ou já chegou bêbado?

Nada daquilo. O caso era outro. Cristóvão decidira se casar. Ou melhor, naquele final de semana ofereceria a Angelis o anel de noivado. Fora uma escolha difícil, não da noiva, mas do anel. Os modelos eram infinitos, assim como os preços. Tinha que levar um barato, para investir um pouco mais no anel de casamento.

No bar, encerrou a breve cantoria e mostrou aos três o pequeno círculo dentro da caixinha vermelha. E os três o olharam com cara de quem via de perto um louco. Ficaram mudos, até o chope esquecido. Binho foi o primeiro a falar:

- Cris, tás doido?

- Doido por quê? – respondeu, com ares de quase-noivo ofendido.

- Cara, isso é coisa das antigas. Olha a tua idade, meu! E tá cheio de gata gostosa por aí, como tu já vai se amarrar assim? Tá ligado? Tem que ver outras paradas. E certeza de dar certo a gente nunca tem, então o melhor é ficar, curtir o momento até que tá bom. Tá sempre chovendo mina gostosa e tu quer noivar?

Os outros dois ficaram quietos, esperando a resposta de Cristóvão. Em duas mesas próximas, os homens também diminuíram a conversa, enquanto deslizavam os dedos no copo úmido de chope. Conheciam o quarteto, como se conhecem, mas só de se ver, os que buscam os mesmos lugares para se distrair um pouco da vida e esquecer o que são.

Cristóvão ainda estava de pé. Havia de repente se lembrado de algo que queria esquecer, mas que volta e meia estourava em sua mente com a mesma pergunta sem resposta: por que havia feito aquilo? E agora o maldito comentário de Binho trazia de novo aquela sensação de carne viva, de culpa.

Tentou se controlar. Sabia que esse tipo de comentário só podia vir de Binho. Ultimamente já o vira com várias gurias, “todas as minhas mulheres”, como ele dizia. Mas nenhuma tinha nome. Ou melhor, tinha, mas Binho quase não ficava tempo suficiente com nenhuma para apresentá-la a Cristóvão. Se apresentava, na semana seguinte já era outra, e o nome da anterior era esquecido. Elas vinham e iam, as gatas e gostosas do amigo.

Binho gargalhava quando relembrava o comentário que uma delas havia feito quando ele a dispensara: “Binho, mulher, pra ti, é como conta de rosário. A tua oração nunca terá fim”. Na hora, ele não entendeu. O que ela quisera dizer com aquilo? Depois, a frase virou motivo de piada e de exemplo das tolices ditas pelas “gatas”.

A sensação de carne viva tinha se tornado mais intensa, e Cristóvão não se sentou. Pegou o copo do Carlos sem pedir, tomou um gole longo, guardou a caixa com o anel na mochila, deu um sorriso sem graça e se despediu:

- Gente, só vim mesmo para contar a novidade.

Ao se voltar para sair, ouviu os três:

- Cris, senta aqui, cara! Volta aqui!

Mas ele não voltou. Manobrou a moto com pouco jeito. Era cedo. Não precisava esperar o sábado. Entrou na BR para fazer o caminho mais rápido até a casa de Angelis. Chegando lá, abriu o portão e bateu. Angelis, que sabia das noitadas no bar nas sextas, não o esperava naquela hora.

- O que foi, amor? – perguntou ela, com cara de preocupada.

Cristóvão mais uma vez tirou a caixa da mochila, abriu-a e beijou longamente a boca de Angelis antes de declarar:

- Quero casar contigo.

Ela nem viu o anel. Olhou para ele, afastou-se e repetiu, séria e distante:

- Casar?

Capítulo 2: Por que Maria não sorri?

Não era aquela a resposta que Cristóvão esperara. Droga, ele também fizera tudo malfeito. Era para o pedido ser na noite de sábado, na frente do chafariz da Praça, depois de jantarem em uma pizzaria da qual Angelis gostava. Mas o comentário de Binho acordara nele a culpa e havia precipitado tudo. E agora estava ele ali, sem graça, se sentindo ridículo. E ela? Parecia que nem o conhecia.

- Casar, Cristóvão?

Era péssimo aquilo, chamá-lo pelo primeiro nome. Nada de Cris nem de amor.

- Sim, casar. A gente namora há quase dois anos, Angelis.

Foi uma resposta inadequada, porque rancorosa, pensou Cristóvão. Ele sempre a chamava de Géli. Ah, tudo errado...

- Sim, mas a gente não falou a sério sobre isso antes... E agora tu aparece assim, com essa conversa. É que...

- O que foi, Angelis, tu não me ama? – perguntou, sentindo que afundava cada vez mais.

- Não, não é isso. É que eu tinha imaginado tudo diferente. O pedido, o lugar. Não era desse jeito...

Cristóvão sentiu uma raiva súbita. Por que as mulheres eram assim? Sempre com suas historinhas, sempre desejosas de uma coisa nova a cada dia, como se fosse possível a um homem fazer o mundo se dobrar aos desejos delas? Mas aí ouviu ao longe a trovoada e lhe veio à mente o chafariz da Praça. Sentiu-se pior do que já estava. Angelis, tão delicada, o olhava com ar perdido, quase indiferente.

Mas não, nada havia de indiferença em Angelis. O pedido, ela já esperava e queria. Mas duas semanas antes acontecera o fato que tinha feito nascer, no seu desejo, o cenário do pedido, do noivado e do casamento. Ela havia terminado a aula e fora para o Centro para comprar uma apostila. Decidira tentar ingressar no serviço público porque, como professora de contrato temporário, seria difícil sair da casa dos pais. E sabia também que o salário de motoboy de Cristóvão não daria conta de pagar todas as despesas.

Era fim de tarde quando Angelis chegou na Praça Nereu Ramos. O calor era forte, e ela parou ao lado da Igreja Matriz para comprar caldo-de-cana. Ao olhar para cima, inquieta, Angelis notou, lá no alto, o vitral com a imagem de Maria. Já o havia visto, mas do nada lhe veio aquele pensamento, aquela dúvida: por que Maria era retratada sempre assim, com o olhar levemente baixo e resignado? Sim, o filho fora morto na Cruz depois de um imenso suplício. Mas não teria havido gracejos, risos, gargalhadas, instantes felizes em volta de um banquete, ao longo de uma caminhada ou durante um sermão? Por que Maria nunca sorri? E então a imaginou sorrindo, os olhos escuros repletos de alegria, com covinhas nos cantos da boca, porque tanta gente parava para escutar o que dizia o seu bem-amado filho.

Tal pensamento a perturbou. Jogou o copo vazio fora, atravessou a Praça e correu para pegar o seu ônibus. E foi no percurso entre o Centro e o bairro onde morava que decidiu como seria o seu casamento. Ela imaginou o pedido ali, naquela Praça, e a cerimônia naquela Igreja. E assim, sempre que por ali passasse, ou quando tivesse uma briga tola com Cristóvão e aparecessem dúvidas sobre o amor, era de sua Maria que iria lembrar, sorrindo, o sorriso das mulheres que compreendem.

Mas nada disso ela contou a Cristóvão. Iria contar. Só que agora estava ele parado na porta, o olhar perdido, e para ela ficara para trás o cenário do pedido. Ela teria que compreender. Abraçou-o.

- Cris, eu te amo. E coloca logo este anel no meu dedo!

- Géli, desculpa, eu queria....

- Tá tudo bem! Vem, a gente tem que falar com a mãe, porque o pai ainda não chegou!

Este era um detalhe que Cristóvão não havia esquecido, mas todo o ritual para enfrentar o sogro e a sogra havia sido encenado para uma ocasião diferente daquela. O cenário havia mudado, e agora ele estava um tanto apavorado. Mas, afinal, o namoro não fora curto, e a relação com os pais de Angelis era cordial. Ela, que parecia animada agora, agarrou suas mãos e o puxou para dentro de casa. O anúncio para a mãe foi rápido, mas ele não contava com a reação do João, pai de Angelis, que só soube da notícia no dia seguinte.

3 comentários:

elaine tavares disse...

mimi, taí teu futuro... ótimo!!! e que cara de Biguaçu....

Anônimo disse...

Mi, adorei!!!!!!
Juss

Anônimo disse...

wonderful
até debaixo da água

karl