segunda-feira, 28 de março de 2011

Mover-se em Florianópolis não é para qualquer um

Elaine Tavares

Florianópolis completou 285 anos no dia 23 de março e muito pouco há para a maioria da população comemorar. Cada dia que passa a cidade vai se perdendo cada vez mais das gentes. No governo de Dário Berguer, atual prefeito, foi decidido fazer um Plano Diretor Participativo e as pessoas, nos bairros, chamadas a pensar e planejar a cidade a partir de seus pontos de vista e necessidades. Foram quatro anos de reuniões, debates, oficinas, encontros e audiências públicas. Algumas comunidades mais, outras menos, mas todas elas foram constituindo seu projeto de bairro e de cidade. Tudo caminhava para um feliz final quando o prefeito decidiu suspender tudo. E aquilo que havia sido construído coletivamente pelas forças em movimento na cidade, foi entregue a uma empresa privada. Outro plano surgiu, sem a cara e sem as demandas do povo. Um plano artificial, sem participação comunitária. Por isso, no dia da audiência pública, em 18 de março de 2010, que iria referendar o plano da prefeitura, as comunidades se uniram e barraram o processo. Agora, passado um ano desta vitória histórica, o plano diretor de Florianópolis ainda não foi votado pela Câmara.

Mas, isso não significa que o governo municipal não esteja agindo. Na prática está movendo o plano pensado pela empresa privada, segundo os interesses dos grandes empresários. Não é sem razão que os órgãos “competentes” seguem liberando licenças para construções e a cidade continua sendo planejada sem levar em conta o que foi construído pelas comunidades.

Exemplos desta ação do governo no sentido dos interesses dos grandes empreendimentos podem ser vistos no Campeche e no Pântano do Sul onde pululam construções de condomínios por toda a parte. Obras sem licença ambiental, fora dos padrões da lei vigente, verdadeiras bombas destruidoras do ambiente e da qualidade de vida. Há cerca de duas semanas a comunidade do Campeche, por exemplo, conseguiu, com a ação da polícia ambiental, fechar várias bombas que drenavam água do lençol freático sem qualquer licença, num condomínio que planejava garagens subterrâneas, burlando visivelmente a lei. Ainda assim, só depois de três meses de intensa luta as bombas foram desativadas. Agora, a empresa tirou os trabalhadores do local e água está afetando as casas vizinhas. Uma irresponsabilidade total que se faz sem qualquer punição.

Outro exemplo foi a realização de um mega-show com o músico estadunidense Ben Harper, planejado sem qualquer licença, em áreas de proteção ambiental. Apenas a denúncia insistente da comunidade fez com que alguns mecanismos de proteção do ambiente fossem efetivados. Mesmo assim, as licenças ambientais foram dadas em tempo recorde, totalmente fora dos prazos, mostrando que o governo municipal se rende completamente aos interesses dos megaempreendimentos. O show era promovido pela AMBEV e a prefeitura, dois dias antes, se responsabilizou por tudo. Coisa que seria impensável se o evento fosse uma quermesse comunitária.

Os carros como senhores das ruas

Agora, no mês do aniversário da cidade, a prefeitura oferece à Florianópolis uma obra que mostra o quanto o governo segue surdo aos interesses da população e continua realizando coisas que só garantem lucros para grupos muito fechados. É o caso do elevado do trevo da seta, uma obra que desde que foi proposta recebeu o rechaço das pessoas que moram no sul da ilha. Qualquer criança pequena já sabia que a idéia de um elevado que desaguasse quatro pistas de alta velocidade numa única saída para o sul causaria o maior engarrafamento. Foram feitas análises, protestos e, junto com a discussão do plano diretor, foram oferecidas alternativas muito mais interessantes. Mas, a prefeitura não escutou. Seguiu com seus planos.

A grande reivindicação de quem mora no sul da ilha era por um trem de superfície. Transporte de massa, capaz de carregar centenas de pessoas de forma rápida e eficaz, saindo do modelo do transporte atual que consegue transformar um trajeto de 20 quilômetros em duas horas de sofrimento e estresse. Todo o projeto foi apresentado nas audiências públicas. O trem margearia o mangue, servindo, inclusive, de proteção, evitando assim que construções fossem adentrando pela região que é um criadouro de vida marinha. Para a prefeitura a proposta aparecia como inviável por ser muito cara.

Agora, com elevado da Seta, a prefeitura gastou 16 milhões de reais e acabou trocando seis por meia dúzia. Então, se investir no trem era caro, imagine o que é perder 16 milhões sem qualquer melhoria para o transporte do sul da ilha. No dia em que o elevado foi aberto ao público, as filas se formaram por longas horas. E o que era a espera desesperada no canteiro de obras, se fez, gloriosa, sobre o belo elevado. Dentro do ônibus, parado por intermináveis minutos, as pessoas observavam o caminho para o aeroporto totalmente deserto. “Essa obra é só para os ricos que pegam avião. A gente segue aqui, feito gado”, reclamavam as vozes anônimas fechadas, no calorão do final da tarde, dentro do ônibus parado. Era como se, finalmente tivesse caído a ficha, e todo o protesto feito pelos movimentos sociais, que haviam sido rechaçados como sendo “coisa de eco-chato”, agora fizesse sentido.

Na verdade a cidade de Florianópolis nunca foi pensada para as pessoas. Aqui imperam os carros e o “business”. O sistema viário só se preocupa com o transporte individual. O coletivo é ignorado. Todas as mudanças que acontecem visam desafogar as artérias para os veículos particulares. Abundam as lojas de venda de carro e os financiamentos em 60 meses. Segundo o Departamento Estadual de Trânsito, a cada dia, circulam mais 27 novos carros. Em Florianópolis a relação entre população e carro per capita está em 1,9. Em 2010 a frota chegava a 270.463 carros na cidade. Ou seja, há um carro para cada duas pessoas. Isso pode parecer uma loucura, mas é fruto da completa incapacidade da prefeitura em organizar a cidade para que as pessoas possam se mover com qualidade. Tanto que é conhecida como uma das cidades com pior mobilidade urbana do mundo.

Todas as propostas que surgem de transporte de massa não passam da apresentação da idéia. Afinal, investir em trem, por exemplo, seria mudar todo o sistema, que já é feito para o lucro desenfreado dos poucos empresários que controlam as empresas de ônibus. Todas as linhas são loteadas, não há qualquer concorrência entre as empresas. O usuário é completamente refém deste tipo de transporte e não consegue encontrar alternativa. Como a cidade é pensada para os carros, nem mesmo a bicicleta consegue aparecer como saída. É praticamente uma ação suicida andar pelas ruas de Florianópolis montado em uma magrela. Atravessar para o continente, então, nem pensar. Não há ciclovias nas duas pontes que fazem a ligação. O que há são passarelas, sob a ponte, escuras, sujas e sem qualquer segurança.

Ainda no mês de março também o novo governador do Estado, Raimundo Colombo, igualmente enredado na mesma lógica da cidade para carros, lançou, através do Departamento estadual de Infraestrutura (Deinfra), a idéia de mais uma ponte unindo a ilha ao continente. A imprensa comprou a agenda e, durante dias, divulgou os desenhos ultramodernos da possível estrutura. Outra proposta que não leva em conta a necessidade das quase 200 mil pessoas que amargam o transporte coletivo da capital. Ao que parece só quem vai lucrar com essa idéia são as empreiteiras que farão a obra. Mesmo assim, a Assembléia Legislativa aprovou o Plano Plurianual que contém esta proposta. Ora, as absurdas filas que se formam no final da tarde, para quem precisa voltar para o continente certamente não vão diminuir com mais uma ponte. Pelo contrário. Quando menos se investe em transporte público, mais as pessoas procuram saídas individuais para tentar fugir da loucura que é viver nesta cidade. E aí, são mais carros nas ruas, num círculo que não tem fim. Nos últimos meses, a saída são motos, o que já tem provocado um aumento expressivo de acidentes. Segundo os diretores dos hospitais, 90% dos que chegam as emergências são vítimas de acidente com moto. Virou uma epidemia, sem que haja qualquer medida de redução de danos. É que ninguém mais agüenta o transporte coletivo do jeito como está.

Qualquer grande cidade do mundo já compreendeu que as pessoas que têm um bom transporte coletivo não fazem uso do carro. Com isso economiza-se energia, preserva-se o ambiente e as pessoas circulam com mais rapidez e eficácia. Isso já é coisa completamente incorporada nas políticas públicas destes lugares. Na Europa é coisa comum e na América Latina é caminho cada dia mais seguido.

Florianópolis parece não compreender que uma cidade com vocação turística, como seus governantes alardeiam, precisa garantir, no mínimo, a mobilidade das pessoas. Mas, como bem define o sistema capitalista de produção, os interesses de pequenos grupos se sobrepõem aos da maioria.

Hoje, um trabalhador que se utilize do transporte coletivo e que more num bairro há mais de 10 quilômetros do centro, perde quatro horas do seu dia dentro do ônibus ou nos terminais de baldeação. Algo praticamente inaceitável. Talvez a saída seja os sindicatos começarem a reivindicar estas horas nas suas negociações salariais como horas extras, a serem pagas pelos patrões. Afinal, nesta cidade, o ônibus só serve para isso mesmo: levar as pessoas ao trabalho. Raros são os que arriscam sair de casa no final de semana para passear. Uma saída de ônibus no domingo pode se transformar num transtorno tão grande que a pessoa acaba preferindo ficar em casa. Quem sabe se o patrão sentir essa fisgada no bolso, não começa a dar ouvidos às propostas que já existem e que não são levadas em conta.

A cidade de Florianópolis é um monumento à incompetência e ao servilismo aos grandes empresários. Aqui só o que interessa são os “negócios”, e de alguns. Alguns muito poucos!


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