domingo, 27 de março de 2011

Alma, um sambaqui



Míriam Santini de Abreu

Foi a Praia do Campeche, no Sul da Ilha, que escolhi para ver Ishtar, a DeusaLua, atravessar o céu naquele 19 de março. Eu, no meu poço; ela, na brilhante barca de lápis-lazúli em que navega de Leste a Oeste. Era cedo ainda quando desembarquei do ônibus e segui rumo à praia. Também foi proposital a escolha do caminho para lá chegar.

A rua pela qual desejei caminhar é uma que tem chagas no nome. Ao final dela, sentei-me na ponta de um muro atrás do qual havia uma árvore cheia de espinhos. Alisei-os com cuidado, e deixei que um penetrasse na ponta de um de meus dedos até a dor se tornar aguda demais.

Andei mais um pouco para atravessar as dunas, uma em especial, onde, há pouco mais de um ano, vi um homem que, parado na praia, olhava para o mar. Um homem ainda jovem. Mas algo em seus olhos, no franzir da testa, no jeito de dobrar o corpo ao dobrar das ondas lá adiante, faziam-no parecer para além do tempo e do lugar. Como se fosse o primeiro homem a ali chegar, tendo criado, ao seu modo, ao seu desejo, o som do vento, o marulho da água, o sal que encharcava o ar. Sabia onde estava, aquele homem. Eram dele o céu, a areia, a água.

Tirei as sandálias e caminhei até onde aguardavam tantos outros que, como eu, desejavam ver nascer a lua daquele dia 19. E lá fiquei, na praia, vendo-a erguer-se, ainda branca, leitosa, atrás da Ilha do Campeche, e tornar-se mais amarela à medida que alcançava alturas.

Sim, ali estava Ishtar, a simbolização da deusa babilônica que, nesta e em outras antigas culturas, cruza o céu em sua barca de rocha azulada.

No meu encanto, pensei em como essas lendas chegam até nós, como penetram em nossa alma e ali deitam raízes. Por isso nossas almas são como os sambaquis, os sítios arqueológicos existentes no litoral do país, muitos deles em Santa Catarina. Cada camada de um sambaqui pode revelar um mistério novo, incompreensível, mas que talvez ganhe sentido se o Arqueólogo que mora dentro de cada um de nós tiver o desejo, a paciência e a coragem de escavar mais, e mais, e mais, até reconstruir, de pequenos cacos, um cântaro onde alguém bebeu água ou fez uma oferenda numa madrugada quente e clara.

Eu vi Ishtar naquela noite, em sua beleza tão pura e tão próxima, e tão comovente, e pensei no espinho da árvore da rua das chagas. Deixei-me sangrar, mas num rio vermelho que correu dentro de mim e me irrigou. Como aquele homem que vi nas dunas – e que lá continua, porque o tempo do relógio e o espaço ditado por ele não existem para um ser que constrói mundos – como aquele homem eu agora sei onde estou. Agora pousei-me toda.

Naquela noite dormi na varanda de casa, envolta em um cobertor, e eram seis da manhã de domingo, o início do Outono, quando vi Ishtar novamente, desta vez no Oeste, não sobre a Ilha do Campeche, e sim a banhar a Cidade, leitosa, plena, ainda vigorosa depois da remada noturna. E então me lembrei de um trecho de uma música que amo, que fala do poço, do mundo, do céu, da dor e, especialmente, do amor:

Tou vitimado no profundo poço

na poça do mundo

do céu amor vai chover

Tua pessoa Maria

Mesmo que doa Maria

Tua pessoa Maria

Mesmo que doa Maria


Sim, dói... Mas mesmo que doa, do céu amor vai chover.

Maria de Verdade, de Marisa Monte (Composição: Carlinhos Brown)

http://www.youtube.com/watch?v=DXQLpfmdIBI