sábado, 24 de outubro de 2009

Um ato de amor

Elaine Tavares
Há dias em que pertencer à espécie humana me envergonha profundamente. Vi, outra noite, o que aconteceu em Chapecó, quando um grupo de jovens trucidou um rapaz. Os garotos se aproximavam do outro, caído, e chutavam, golpeavam com um capacete e até com uma barra de ferro. E o cara, ali, indefeso e só. Penso em quanta solidão também não haveria dentro daqueles que feriam. Quanto ódio guardado, quanta gana de causar dano... Fico pensando se nós, como humanos, não estamos in-voluindo. Que tipo de gente gesta uma sociedade baseada no egoísmo, no individualismo, no consumismo? Que tipo de gente pode vingar de um sistema em que para que um viva outro tenha de morrer? E é aí que me envergonho. Não por conta do gesto isolado de um grupo de desesperados, mas por este ato coletivo de construir uma sociedade tão pouco solidária e amorosa.
Eu vivo com alguns bichos e eles me dão lições todos os dias. Esta semana foi assim. Achamos uma gatinha perdida no mato. Algum humano havia “jogado fora” o serzinho para que morresse sem incomodar. Resgatamos, acolhemos e trouxemos para casa. Ela miava feito doida e logo todos os bichos da casa estavam ao seu redor. Juanita cheirou e arreganhou os dentes, brava pela intrusão. Zumbi, Tupac e Zé Pequeno também não gostaram da presença. Mas Steve, o cachorro, apesar de ser de outra “espécie” logo tomou para si a tarefa de protegê-la, e, lambendo-a, ia empurrando os demais gatos, bravos, para longe.
Miudinha, a gata cabia inteira na palma da mão. Estava assustada, então tomou leitinho e foi dormir na cama dos humanos, para ficar mais protegida. No meio da noite, o susto. A gatinha sumira da cama. Procura aqui e ali e nada. Então, alguém pensou em olhar dentro da casa do Steve e lá estava ela, encolhidinha, dormindo aconchegada ao cachorro.
No dia seguinte, outra lição. Já familiarizados com o cheiro e o miadinho, os demais gatos foram se chegando. Não arreganhavam mais os dentes e até arriscavam umas lambidas. Mas, no fim da tarde, quando o sol despencava na barra do céu, vi a cena que me enterneceu. Buscando a peito de uma mãe, a gatinha parecia perdida sobre o tapete. Então Tupac chegou de manso, deitou ao seu lado e puxou-a com a patinha. Aconchegou no peito e passou a lamber, devagar, como a dizer: “não tema mais. Estou aqui”. Agora nossa Sub Ramona está assim, protegida pelos seus novos irmãos. Quão simples é um ato de amor!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O Uruguai pelo olhar de Carlos Liscano

O Uruguai com Tabaré Vasquez: olhar sobre a conjuntura. Este é o tema da conversa que o IELA promove no dia 21 de outubro, às 15h, no Auditório do CSE/UFSC, com o dramaturgo e escritor uruguaio Carlos Liscano. Conhecido no mundo do romance latino-americano, Liscano decidiu, pouco antes das eleições, realizar uma entrevista com o então candidato Tabaré Vasquez. O trabalho que resultou num livro no qual Tabaré revela suas raízes, fincadas num conhecido bairro popular de Montevidéu (La Teja), e aponta os caminhos que iria seguir caso ganhasse as eleições.
Nascido no Uruguai em 1949, no mesmo bairro que Tabaré, Carlos Liscano esteve preso sob a ditadura militar dos 22 aos 35 anos de idade e foi na prisão que ele começou a sua carreira de escritor. Liberado em 1985, buscou exílio na França, onde publicou seu primeiro livro, “A mansão do Tirano”. Em 1996 regressou ao Uruguai e durante a campanha de Tabaré decidiu acreditar no processo de mudança.
Hoje, passados alguns anos daquela histórica entrevista, Carlos Liscano, fala sobre o governo de Tabaré Vasquez e analisa o quê de concretização aconteceu em relação aos planos anunciados no livro. Uma boa oportunidade para conhecer a realidade política, econômica, cultural e artística deste país irmão que, com a eleição de Vasquez saiu da eterna dicotomia entre os blancos y colorados, apontando uma nova vertente na política.

Dia 21 de outubro
15h
Auditório do CSE

domingo, 18 de outubro de 2009

As lutas populares o financiamento

Elaine Tavares
Eu lembro quando era bem menina e fazíamos campanha para os chamados anticandidatos do MDB. Era a ditadura militar e tudo se fazia escondido. Ainda assim, num mutirão de poucas pessoas recolhia-se dinheiro e faziam-se os panfletos que eram empurrados por baixo das portas durante a madrugada. Depois, no final dos anos 70, quando se começou a construção da CUT e do PT, os lutadores sociais faziam a mesma coisa. Era uma romaria com o chapéu para gente ir a encontros, reuniões, para organizar o povo. Todo o financiamento da luta era feito pelos próprios trabalhadores, pela gente em movimento. Ninguém media esforço. Era brechó, venda de disco, de livro velho, de tudo o que se podia imaginar, e na solidariedade de classe, íamos construindo o sonho da anistia, da democracia, da libertação.
Naqueles dias, as coisas também eram feitas por nossas próprias mãos. As faixas de papel, a cola de farinha, as tintas malucas para as pichações nos muros. Jamais se pensaria em pagar alguém para produzir um panfleto. Tudo era artesanalmente produzido, com os talentos que arrebanhávamos nas fileiras da luta. E, na azáfama de fazer acontecer, se dava a mística da solidariedade, da partilha, da cooperação.Hoje os tempos mudaram, os velhos militantes apaixonados assumiram postos de mando nos sindicatos, nas centrais, nos partidos e tudo perdeu a sua aura. Agora, para não se perder tempo, os materiais de divulgação e propaganda são feitos por assessores, as faixas são terceirizadas e parece que todo mundo fica paralisado quando não há dinheiro para fazer as coisas.Outro dia, durante uma discussão sobre a Conferência Nacional de Comunicação, a qual acredito que não servirá para nada, a não ser respaldar os desejos dos grandes empresários da comunicação, sugeri que fizéssemos uma conferência paralela, assim, com as nossas regras e não com as que foram impostas pelos empresários. Foi interessante observar a reação dos lutadores. A idéia soou como um completo absurdo. “Como vamos trazer as pessoas do interior?” “Como vamos alugar um lugar para o encontro? E onde as pessoas vão dormir? E todos os custos, quem vai bancar?” Perguntas tolas, diante da grandiosidade da liberdade...
Então eu lembrei a todos daqueles dias em que nós movíamos o mundo sem grana dos sindicatos, sem ajuda das fundações estadunidenses, sem grana do governo. Nós construímos partidos, centrais, mudanças importantes. Nós fizemos coisas demais com o financiamento dos próprios trabalhadores, com gente dormindo na nossa cama, comendo nossa comida, dividindo as parcas economias. Mas, naqueles dias, nós éramos movidos por uma paixão infinda, um desejo abissal de mudar o mundo e nossa pobreza jamais foi obstáculo para nada.
Hoje vejo alguns lutadores com ares de saciedade, descansando nos aparelhos, aceitando dinheiro das fundações estrangeiras, esperando migalhas do governo e, por conta disso, se rendendo às regras impostas pelos patrões.Eu repilo isso. Tenho nojo e ódio. Quero de volta a luta renhida, feita por nós mesmos, financiada por nós mesmos, na solidariedade, no amor. Quando ninguém nos impunha pautas e ninguém nos infligia regras. Éramos livres! Pois quero outra vez essa liberdade... Ou nada!

Oração

A palavra vendaval pra nada serve se não puder ser uma oração nas folhagens.

Novo e belo blog

Na sexta foi a vernissage de apresentação do blog de Francine Canto, www.poemasdefrancinecanto.blogspot.com
que aconteceu à meia-noite em ponto, na terceira nuvem à esquerda da relva. Coisa linda, linda!

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Inciput erat verbum

Li em algum lugar que o Tao (o Algo, o Deus) é aquilo que se ouve e não tem som: voz do silêncio: sopro: com esta voz "quase" inaudível o Tao criou, no vazio em que se refaz infatigável: a pedra e a chuva, o carvalho e o mar: e todas as outras coisas.
Inciput erat verbum: no princípio era a palavra: uma das formas de honrarmos o pequeno sopro das palavras: pedra, chuva, carvalho, mar: é deixar que elas desvelem, e não nós, o que há de mais íntimo nelas.
Há pouca matéria numa palavra que nem mar, por exemplo, um pequeno sopro. Há pouca matéria em todas as palavras, por isso elas são, algumas vezes, desprezadas. Mas elas sempre esposam o infinito.
A palavra céu, para os hindus, é um ser vivo e não apenas uma palavra criada para a usura ou fins pessoais.
Assim as palavras: ancoradouro, turmalina, adágio, veneziana: são seres vivos que jorram da terceira margem do rio e, como seres vivos, devem ser honrados.
A palavra vendaval pra nada serve se não puder ser uma oração nas folhagens.

Aquilo que olhamos atentamente, olha atentamente para nós.
gerard manley hopkins

Se olho a palavra chuva atentamente, ela olha atentamente para mim, com suas curvas líquidas, com seus mistérios divinos, porque só a palavra chuva é quem sabe de si.
Se a palavra é sopro e sopro é vida.
shakespeare
Não que o Tao necessite de palavras, mas também o Tao aprecia comunicar-se através de palavras.
Escutar o que sopra do Tao: isto é honrá-lo.
O poeta é aquele que nunca sabe o que vai pronunciar uma palavra criada pelo Tao, feito uma criança que nunca sabe para onde vai a onda do mar ou as nuvens do céu: ele aguarda que o Tao (o Algo, o Deus) sopre: isto é honrar o jazz da vida, ou reverenciar a respiração do indestrutível.

Fernando José Karl

Viva o dia da resistência originária!

Elaine Tavares
É outubro na pequena ilha de Santa Catarina, um outubro friorento, nunca visto. Diferente, com certeza, daquele outubro de 1492, quando Cristóvão Colombo aportou em Santo Domingo, julgando ter chegado às Índias. Na manhã daquele dia 12 um pequeno grupo da etnia Taino observou a grande nau e preparou-se para o encontro. Na praia, eles esperaram, sem maldade. Pouco depois desciam os espanhóis e nunca mais a vida seria a mesma. Começava ali um processo de destruição que dura até hoje.

No rastro da invasão, povos inteiros foram dizimados, civilizações foram destruídas e milhões de almas aprisionadas. A conquista das terras novas, por espanhóis e portugueses, abriu caminho para a sangria das riquezas que, levadas para a Europa, propiciaram o florescimento do capitalismo, um jeito de organizar a vida tão predador quanto os tempos feudais.

As comunidades autóctones foram conquistadas por cavalos, canhões e homens de além mar. Mas, apesar da dominação, as gentes originárias nunca se renderam de verdade. Vencidas sim, mas não destruídas. Vez ou outra, ao longo destes 500 anos, levantaram-se os heróis da liberdade. Tupac Amaru, Tupac Catari, Sepé Tiarajú, Guaicaipuro, Daquilema Apu e tantos outros, abrindo caminhos que hoje seguem sendo trilhados.

Nestes primeiros anos do século XXI as culturas originárias estão vivendo um novo esplendor. Levantadas em luta elas buscam o reconhecimento de seus deuses, de seu jeito de viver. Querem ser reconhecidas como nacionalidades e recuperam seus verdadeiros nomes. Não mais índios, como se fossem uma coisa só. Não! São aymara, guarani, quíchua, shuar, bororo, caraíba, xavante, tamoio, uru, sioux, navajo, zapoteca, naso, embera, mapuche... e centenas de outros que voltam a dizer sua palavra viva.

Muito há para conquistar, muita luta por travar, mas a primeira delas é com os bem intencionados que dizem lutar pelos direitos dos originários, mas não lhes reconhecem o direito de ser quem são. É fato que grande parte das comunidades autóctones estão submetidas pela lógica do capital e, tal qual os empobrecidos de outras etnias são companheiros de classe: a dos oprimidos pelo sistema capitalista. Mas, de qualquer forma, para além desta condição de parceiros de classe, muitos dos originários que ainda vivem em comunidades estabelecidas por laços de parentesco tem sua especificidade étnica. Esquecer isso é não compreender que estes povos, mesmo tendo passado 500 anos, jamais se olvidaram de sua velha cultura, passada de pai para filho, no silêncio da resistência.

Não é sem razão que as comunidades autóctones tenham logrado conquistar o estado plurinacional na Bolívia e no Equador, garantindo assim a condição de seguir mantendo sua forma original de organizar a vida. Não como um retorno obtuso a um passado acrítico de tradições, mas dialeticamente uma volta acima, recuperando os conceitos que podem ser retomados e inventando novas formas de viver num mundo que já não é mais o mesmo de antes. Um jeito permeado de telúricas lembranças, sim, mas diferente.

Hoje, o movimento originário avança e não se submete mais a teorias alheias. Conquistou sua maturidade, construindo saberes próprios, desgarrados do eurocentrismo e da submissão. Lutam pelo seu território, pela sua cultura e seus deuses. Sabem que são parte de um sistema que depreda, que destrói, que esgota a natureza. Sabem ser também parte do mesmo exército de desvalidos que representam a periferia do capital. Mas, como nacionalidades, querem o direito de viver de acordo com suas próprias regras, atendendo ao chamado da terra-mãe.

É este novo movimento autóctone que dá o seu grito neste 12 de outubro. Não mais como um povo tutelado pelos estados-nação, mas como uma gente que conquistou a possibilidade de voltar a dizer seu nome e de gerir a própria existência. Hoje, neste 2009, nunca o dito de Tupac Catari foi tão verdadeiro. “Eu voltarei e serei milhões”. Pois assim é agora.

Viva a resistência dos povos de Abya Yala!
12 de outubro de 2009
Desde a terra dos Guarani - Meiembipe

A Obscenidade do Império obtém o Diploma da Paz

Por Raul Fitipaldi

A Velha Prostituta, e sua filha Suécia, continuam exercendo um fascínio extraordinário sobre os escravos da Colônia com seus reis assassinos de ursos, suas feias rainhas, seus príncipes alcoólatras e suas princesas promíscuas. Mas não só. Também com sua idolatria ao filho bastardo, os Estados Unidos. Li e reli alguns comentários dos líderes da América Latina sobre a entrega do galardão à ignomínia conhecido pelo nome de “Prêmio Nobel da Paz”. Prêmio de marketing político que já foi dirigido a dar álibi a figuras tão rastejantes como Shimon Peres, serviçais como Mohamed ElBaradei, pró-ocidentais como Shirin Ebadi; cínicas como Jimmy Carter (outro membro do partido democrata ianque); corrompidas como Kofi Annan; dentre outras delícias da impostura. O “Alfredinho” me faz acreditar que o nosso nível de idiotização perante o espetáculo mediático continua quase intato. Apenas a Senadora colombiana Piedad Córdoba tomou distância suficiente do tom de obamania que ainda assola o continente, quando disse “que espera que, depois de ter recebido o Prêmio Nobel da Paz, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, rechace definitivamente o acordo para a instalação de sete bases militares do seu país em território colombiano e se perguntou quando é que se fechará a prisão que Washington mantém ilegalmente em Guantánamo, Cuba.”
Só neste mundo dominado por minorias medievais, sátrapas e obscenas, o Presidente de uma nação manchada de sangue, que aplica golpes associada às oligarquias mais apátridas e grosseiras, que passa pela pior crise da sua história, que desfila sua decadência impudica, que pratica o genocídio a diário com naturalidade demoníaca fora do seu território, e o crime de estado em casa, pode receber um prêmio à paz. Não seria melhor um Prêmio Kissinger à Morte?
O Nobel da Paz é um Prêmio Obsceno para um País Obsceno. Prêmio para distrair o foco dos fracassos acumulados em nove meses pela jovem administração obamaniaca no Afeganistão, no Iraque. A implicância dos EUA no golpe em Honduras, na preparação de um golpe na Guatemala, a tentativa de desestabilização dos governos da Venezuela com paramilitares no Zulia, as campanhas maciças contra Evo Morales e seu povo, as tentativas de quebrar e confundir a mobilização popular no Equador, o apoio constante aos oligarcas do campo argentino, e sobretudo, a instalação das Sete Bases Militares Gringas na Colômbia, aqui, na Pátria Grande. O país da cadeira-elétrica, da exploração sistêmica de hispanos, da falta de saúde, da obesidade, do maior consumo de drogas, dos criminosos em série, é dirigido pelo Prêmio Nobel da Paz.
Pareceria que o fato do Mr. Obama ser um cidadão negro, charmoso, jovem, lhe confere ao Império a possibilidade de fazer-se um lifting momentâneo badalado pelas redes de multiplicação do sistema, as modeladoras da opinião do mundo. Essa máscara da paz está grudada na pele com sangue iraquiano, sudanês, afegão, hondurenho, mexicano, haitiano, e, se nossos líderes não se arrancam, por muito que doer, esse “MÁSCARA” do Prêmio Nobel da Paz, só brotarão mais rios de sangue na região. Não há nenhum texto de política de estado que indique que há de se aplaudir o chefe de um bando de criminosos (o insinua Maquiavel, é verdade...), seja qual for a gangue, mesmo que sejam os ainda sócios majoritários e consumistas dos Estados Unidos de Sua América, não da Nossa.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Temporalidades

Míriam Santini de Abreu

Mais dia, menos dia descobre-se que há um tempo fora e um tempo dentro da gente. Às vezes, mais de um. O tempo de fora dita a hora, o dia, a estação. O tempo de fora é moldado pela natureza e também pelo engenho humano. E a gente deseja – e aceita - que o tempo de dentro responda a esse estímulo que nos chega pelos sentidos. A gente deseja que, às 17 horas do primeiro sábado ensolarado de primavera, também no tempo de dentro sinta-se um calor tépido, que deixe a alma macia. E a gente aceita que, no mais frio e chuvoso domingo do inverno, também na alma a umidade frouxa congele. Mas há uma contradição que atordoa: estar, no céu, o sol do meio-dia, e na alma o escuro de antes do nascimento do sol. Um escuro que impede a primavera de nascer também no tempo de dentro. Em qualquer dessas circunstâncias as palavras nascem. Mas a primeira deve ter nascido para celebrar a mais perfeita sintonia entre o tempo de fora e o tempo de dentro. E a segunda, certamente, para tentar arrancar do peito, pelo Verbo, a pesada pedra que tudo sepulta quando essa sintonia se quebra. E se assim não sentem, como podem os anjos compreender os homens?

Caminhando pelo Equador

Elaine Tavares

A cidade de Quito é uma belezura. O chamado casco colonial parece sair das páginas de um livro. Não é à toa que foi tombado como patrimônio da humanidade. Tudo está muito bem conservado e a impressão que se tem é de que se está passeando pelas ruas de um longínquo 1800. As igrejas pulam em cada esquina, imensas, descomunais, expressão máxima da dominação. Toda a cultura originária está aplastada. O que assoma é a morada da aristocracia com seus solares, seus pátios internos, suas arcadas.

Muitas das casas hoje se transformaram em pequenos centros de compra e o contraste é inevitável. No meio da cultura colonial o que vende mesmo é o artesanato originário. Ou seja, o produto é a cultura autóctone, mas a arquitetura é a da dominação. Tudo acaba se integrando como o que de fato acontece nesta América mestiça. Nas ruas é a população indígena que aparece com mais vigor, imorrível, apesar de tantos anos de opressão. São originários os vendedores nas ruas, os pequenos comerciantes, a gente que caminha para lá e para cá, num afã febril.

Até mesmo antigos conventos passaram à condição de comércio e muitos chegam ao limite da heresia, o que parece estranho numa cidade tão católica. Contam que as dezenas de igrejas estão sempre lotadas nas missas, mas mesmo assim, fazem-se piadas com as coisas do sagrado. Uma delas diz respeito a um antigo monge, o padre Almeida, que costumava fugir do convento durante a noite para fazer cantorias com sua guitarra. Para sair pela alta janela ele tinha de escalar um crucifixo e pisar na cabeça de Cristo. Diz a lenda que um dia, quando o padre iniciava sua escalada para fora, ao pisar na testa cravejada de espinho de Jesus, ele teria suspirado e dito: Até quando, padre Almeida? E este, assustado, mas não persuadido de ficar no convento, teria respondido: Até a volta, senhor! Pois o lugar deste fato virou restaurante e ali está em destaque a figura do padre a fugir...

Ainda próximo a Praça Maior fica o solar de onde Manuela Saenz atirou uma coroa de flores para Simón Bolívar, quando este entrou na cidade, vitorioso. É uma casa imponente, toda rosa, cheia de janelas. Ali é ponto de peregrinação daqueles que sabem do que foi a força deste amor entre Manuela e Simón. No balcão parece bailar a paixão desesperante que levou aquela pequena mulher quitenha a se transformar na Cabaleresa del Sol, guerreira, indômita, senhora dos exércitos e libertadora do libertador. Seu nome ecoa pela cidade como um mantra e seu retrato está em todos os lugares. Ela, vulcânica, reina, deusa, na Quito das igrejas.

Também pelas estreitas ruas pode-se apreciar os “agachaditos”, que são as comidas callejeras. Tudo o que se vende por ali tem algo de milho, a cultura ancestral. Qualquer coisa é “agachadito”, pode ser uma fritura, um peixe, uma tortilla, uma sopa, um molho de galinha. Diz a lenda que o nome nasceu por conta do hábito de um antigo habitante que se fazia de dândi, metido a rico sem ter tostão. Ele andava pelas festas, vestido com roupas da moda, mas não tinha dinheiro para comer. Então, quando vinha a fome, ele buscava os vendedores de rua e comia seus quitutes. Para não ser visto pelos que o consideravam rico, ele se abaixava. Daí nasceu o “agachadito”. Coisas divinas feitas por mãos populares.

Toda a cidade de Quito pode ser admirada de cima do Panecillo, uma dos montes que cercam a cidade. Este, por ter o formato de um pão é assim chamado: pãozinho. Ao chegar lá em cima outra cena surpreendente desta cidade sem igual. Impávida, domina a paisagem a estátua descomunal de uma virgem, representando a cultura religiosa que é tremendamente opressiva por ali. O curioso é que para mostrar que também respeita a visão dos vencidos, a cidade decidiu colocar sob os pés da virgem imensa, um artefato originário, uma olla, que representa uma espécie de vaso cerimonial das culturas indígenas. Mas, basta uma olhadela para se verificar o quanto aquilo é só um gesto ritual. Enquanto a virgem recebe cuidados e atenção, tendo, inclusive, uma iluminação belíssima, capaz de ser vista de qualquer ponto da cidade, a olla se mantém na escuridão, escondida e abandonada, ruindo sob a ação do tempo.

Do Panecillo também se pode ter uma visão deslumbrante da cidade. Dali, é possível observar como se deu a Batalha de Pichincha, comandada pelo jovem general José Antônio Sucre, em 24 de maio de 1822. Em menor número - ao pé do grande vulcão que leva o nome de Pichincha - mas com uma estratégia genial, o mariscal logrou vencer as tropas realistas e libertar Quito do jugo espanhol. Em pé, no beiral disponível sob a virgem, chega-se a ouvir os gritos da batalha, tamanha é a magia que se desprende na noite quitenha, iluminada como se tivesse milhares de fogueirinhas.

Outro lugar cheio de energia é o mercado de artesanato no bairro de Mariscal. Ali se concentram mulheres e homens que tecem a beleza da cultura originária. Muitos deles vêm da região de Otavalos, onde estão os kichuas. Impossível não se embasbacar com a belezaa das mulheres originárias, com suas saias pretas, blusas bordadas e o indefectível hualca , colar de contas amarelas que representa a riqueza da cultura autóctone. “Isso nos faz ter sempre em conta aquilo que nos dá a vida, o sol, o milho, além de ressaltar a beleza da mulher”, dizem.

De resto, a cidade de Quito é cheias de outros escondidos encantos, como o mercado de Hipiales, onde se concentra o comércio popular. Ali, por entre as barracas, as gentes oferecem sacrifícios ao deus consumo. Isso sem contar os milhares de minúsculos bares e cafés que oferecem o tradicional “seco de chivo”, que parece ser a comida mais pedida por ali. É feita com carne de bode e me pareceu delicioso. Também tem as dezenas de praças, grandes, pequenas, de todo o tipo, onde as gentes descansam sob o sol andino. Nas fraldas dos vulcões se amontoam as casinhas da gente mais empobrecidas. Mas nada que se compare às favelas brasileiras. Talvez por causa do frio rigoroso, todas elas, mesmo as mais simples, são de material. Luis Gavillán, que trabalha como motorista, esclarece que com Rafael Correa as coisas estão melhorando. “Eu votei nele quatro vezes e não me arrependi”.

Outro ponto magnético é a pequena comunidade de Calacalí, a poucos quilômetros da capital. Ali, em meio a casinhas coloridas fica o exato lugar onde uma missão franco-espanhola, em 1736, mediu a metade do mundo, estabelecendo os equinócios e os solstícios. Um pequeno marco estabelece a linha e a pessoa pode ficar com um pé em cada hemisfério da terra. Não sei bem porque, mas algo nos atrai mais ao sul. Creio que é magia!

E assim é uma visão parcial desta cidade pulsante, cheia de contrastes e multicultural. Vigiada pelos vulcões que a circundam, por Sucre, por Manuela. Amada pelas gentes, espaço de disputas. Cidade/país em construção. E, por entre lutas, avanços e desacertos, os equatorianos seguem acreditando que por força de suas livres vontades, a vida vai ficar melhor. “Até hoje todos os presidentes desta república só nos roubaram. Agora, tem problemas, é fato, mas também há avanços incríveis. Nós vamos saber caminhar para um tempo melhor”, diz Luis. “E vamos conquistar outro tipo de desenvolvimento que não este, predador, do mundo neoliberal”, ensina Gonzalo Guzmán, líder indígena. O rosto altaneiro dos grandes caciques dos povos originários do Equador, que estão unidos em assembléia numa praça em frente ao teatro da Universidade Central, parecem concordar. Haverá de estar sendo gestado um novo Equador. Pluricultural, livre.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Você sabe o que anda comendo? Parte 2 - Falha nossa!

Li Travassos, de Florianópolis

Graças a uma leitora vegan, chamada Liliana (outra Li, pelo jeito), que postou um comentário em 30 de setembro de 2009, descobri que o corante do tipo Xantofila é vegetal, portanto natural, e não artificial, como havia sido dito no meu artigo "Você sabe o que anda comendo?" publicado em 11 de Julho de 2009 aqui, no blog da Pobres. Por minha conta, descobri também que o corante Betacaroteno aparece nas duas listas do texto, tanto na lista de naturais, como na de artificiais. Ele também é natural e vegetal. Sua fontes são vegetais como
cenoura, abóbora, beterraba, mamão, manga, batata doce, e também couve, repolho, espinafre, agrião e brócolis. Peço mil desculpas, mas retirei as listas de um artigo na internet, que continha estes dois erros. O importante é ter noção de que a maioria dos alimentos que comemos contêm aditivos, e que precisamos buscar suas origens. Há um tempo atrás, uma reportagem da TV Globo informou que uma de cada dez pessoas que consomem corantes com frequência, desenvolve algum tipo de alergia. Agradeço muito a Liliana pela informação, e reitero meu pedido de desculpas. Se quiser reler o artigo, ou ler o comentário, vá em http://pobresenojentas.blogspot.com/2009/07/voce-sabe-o-que-anda-comendo.html

Negra: de tua língua nascerão liberdades

Por Raúl Fitipaldi

Me disseram que está morta. Que absurdo! Quanta ignorância carrega nossa urbanidade, tão branca e euro-centrista. Acaso não conseguem entender, irmãos das citys, que La Negra foi dormir no colo da Pachamama? Tá lá, escutem como uma brisa vem surgindo dos riachos, vem viajando num tardio minuano, que de raro, brotou em San Miguel de Tucumán. Escutem, couro redondo é batido com lento esmero. Abaixem os ouvidos, como para escutar o galope. Vem pela terra: é brisa grave, funda.
Já ouvi essa brisa estalar em ventos, em furacões, em trovões de Pátria Grande. Já a ouvi cortar as torturas com agudos estrepitosos e calmos.
Um parto gigantesco acontece no ventre da Pachamama, corais de pássaros índios entoam Tejada Gómez, Félix Luna, Pablo Milanés, Silvio, e Chico e Milton, e Charly e Fito, e tudo aquilo que ao povo se dirige e do povo se trata. Corais de ponchos mestiços e negros e vermelhos e pobres ponchos reluzentes abrigam mãos de mulher mansa, como mansa pode ser a guerra na réplica da denúncia. Escutem, escutem.
Vejam e escutem os cintilares. Aumentam as estrelas na Pátria Grande. São infinitos teus olhos Pachamama, iluminando este caminho insurgente. Nossa boca beija com tuas toadas insurgentes; nossa língua canta teu recital que contesta, nosso repertório foi por ti escolhido.
Pela Pachamama que esteve mais de 70 anos na terra, nos tratando de TÚ e de VOS.
Pachamama dos céus e da terra, dos mares e dos rios, das cordilheiras e dos desertos, Pachamama do Jardim da República. Terra-mãe dos povos sedentos, terra-mãe da minha minúscula adolescência, de minha sonhadora juventude, da minha maturidade inalcançada, desta solidão que me arrepende. Terra-mãe que com tuas palavras mandaste meu bico em riste, andar pelas ruas rebeldes de Montevidéu, Buenos Aires e Desterro. Um dia sonhei contigo em Jujuy, eu estive em Jujuy, mas nunca no jardim onde nasceste. Pachamama que me deixas cru e só no lombo agreste do chão, preparas minha cama, com sedas e perfumes, para a hora de eu voltar-te a escutar ao vivo.
Pachamama-Negra-Sosa, Mercedes só concedidas para doçura deste povo; que não morres-te como mentem, porque és a Terra de Antes da Terra, de tua língua seguirão jorrando nossas vozes à Luta, de tua língua dourada, nascerão cada uma das Nossas Liberdades.

domingo, 4 de outubro de 2009

Duerme, negrita!

Elaine Tavares
Por la mano de Vitor Jara: "Duerme, duerme, negrita, que tu mamá está en el campo, negrita"... Se foi "la negra", a mulher que nos anos setenta tanto me ensinou sobre "nuestra américa" e suas lutas... Com ela, ainda menina, entendi o Chile, a Argentina, as ditaduras e tantas coisas mais... Mercedes encantou e é destes mortos que nunca morrem...

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Quito, a metade do mundo

Elaine Tavares
É noite quando o avião começa sua descida na cidade de Quito, Equador. Da janela o viajante já pode notar o desenho de um lugar que a primeira vista parecer ser de sonho. As luzes aparecem em suas formas geométricas e formam figuras míticas. O aeroporto fica no meio de tudo e a impressão que se tem è de que o avião vai se arrastar por entre as casas. Mas é de manha que vem a surpresa maior e as retinas brasileiras parecem não dar conta do que vêem. A cidade é cercada por vulcões e, de qualquer lugar onde se esteja ali estão eles a vigiar.
Pelas ruas a vida é puro fermento. Os professores estão em greve e fazem cortes de rua, os famosos “paros”. Querem mudanças na lei de educação superior que está em discussão no paìs. Também estão em movimento os indígenas, trabalhando igualmente para manter suas vontades na nova lei de águas. Ao todo são 14 novas leis apresentadas pelo executivo e a população vive as voltas com os debates e discussões. A nova Constituição assim o exige, tudo està para ser regulamentado. As coisas estão mudando no Equador e isso se pode sentir nas ruas. Hà um frisson e todos sabem o que està passando.
È certo que este não è um processo fácil. Não houve nenhuma revolução. As coisas precisam ser feitas sob a pressão de uma oposição dura. Então, tal e qual a Venezuela no inicio do século XXI, o Equador vive a luta de classes no seu cotidiano, e de maneira bastante acirrada. Entre um corte de ruas aqui e outro ali, a grande cidade de Quito e os demais recantos do Equador vão construindo seu presente com os olhos postos no futuro.
Em Quito também vigiam as mudanças os espìritos de Manuela Saenz, a grande mulher equatoriana, libertadora do libertador. E também Sucre, o mariscal apaixonado, artífice da libertação. Pelas ruas de pedra do centro histórico pode-se sentir que os desejos de liberdade que um dia afloraram nas guerras de independência, e ainda antes, nas revoltas indígenas, segue aprisionado. Há muito por fazer, mas os equatorianos estão caminhando. Vulcânicos, apaixonados e seguros de que só a vontade do povo unido pode mudar as coisas. Eu caminho por entre eles e aprendo!