quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Croniquintas/ Adiós redes

Ler virou cena rara - Foto: Maicon Cláudio da Silva

Por Elaine Tavares 

Por força da profissão – jornalista – sou obrigada a estar ligada no mundo das redes. Responsável pela Comunicação do IELA e da Rádio Campeche, ficaria impossível eu não entrar nesse universo caleidoscópico. Entrei. Por um tempo foi legal. Tudo novidade. Mas, com a chegada do algoritmo tudo mudou. Os espaços internéticos não são mais lugares de encontros e possibilidades. As redes viraram um imenso supermercado, gigantesco e insaciável, impondo ofertas de mercadorias a cada segundo, com uma violência insuportável. 

Todos os dias esse Walmart mundial vive de cagar-regras. E as mais estapafúrdias e contraditórias. Agora é preciso comer cinco ovos de manhã. Não. Melhor comer aveia. Não. Há que ter um pouco de carboidrato. Não. Não pode comer carboidrato, há que seguir a dieta cetogênica. Ah, mas sem carbo, sem alegria. E com carbo, sem saúde. Durma com isso. 

Também é preciso seguir certas regras até mesmo para tirar uma simples foto. Tem que fazer no tamanho do instragram, no tamanho do face e pequenos vídeos para o tiktok. Se não estiver no tamanho certo, perde seguidores, não há “entrega”. Saiba como tirar fotos melhores com a câmera do seu celular. Faça um cursinho walita que eu te ensino. Tem problema psicológico, compre meu curso e te ensino como enfrentar esse mundo cão. Tu vais ficar bem adaptado, nem vais mais chorar pela Palestina. 

Agora é preciso acabar com esse negócio de usar base líquida. Tem de ser a de bastão, igual às coreanas, mas também tem a da Virgínia, que é top. Ah, correr não emagrece, faça estes exercícios que descobri e que divido contigo por apenas dez reais. Exercício já era, a onda agora é o tai chi. Se tu és velha, há que fazer academia, criar músculo, senão ficas com Alzheimer. Não, não precisa, faça calistenia. Colesterol mata. Não, colesterol é bom. Use as 15 combinações de cores num guarda-roupa cápsula. E não se esqueça de comprar o sapato da temporada. 

Tudo isso me atordoa. Por isso mesmo comecei o desmame. Pouco a pouco vou saindo deste imenso xopin. Cansei de dar meu tempo para essa mais-valia ideológica atordoante. Não quero saber de ninguém cagando regra para mim. Deixa-me flanar pela vida com minhas roupinhas ripongas e chinelos havaianas. Deixa-me tirar a foto como eu quiser, dane-se se vai ficar bom ou não. Não quero comprar nada. Quero fruir a vida, simplesmente. A tecnologia foi feita para o homem, não o homem para a tecnologia, diria um Jesus moderno. Quero ler os meus livros embaixo da árvore e apreciar os passarinhos. 

Claro, essa é uma escolha minha, não cago regra pra ninguém. Só que, para mim, viver é muito mais do que comprar, então, bato o pó das sandálias e saio deste grotesco prédio comercial. Estarei nele, em nível médio, como diz o meu irmão, para trabalho e alguns memes. Então, amiguinhos, quando quiserem realmente falar comigo, me liguem no telefone ou mandem um email... Adiós... 


sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Croniquintas/ Só três palavrinhas

 Por Dinovaldo Gilioli

Ela me pediu, e eu enviei a crônica. Sem hesitar, assim que foi publicada no seu blog, postei na minha página do Facebook. Normalmente, ao compartilhar meus textos, recebo algum tipo de retorno, e eu realmente aprecio essa interação com os leitores e leitoras. Porém, uma semana se passou e a crônica teve pouquíssimas curtidas e nenhum comentário, o que me pareceu bem estranho. 

Só percebi o que estava acontecendo quando um amigo próximo me ligou, comentando que achou minha última postagem no Facebook muito desconcertante. Ele, de forma cautelosa, pediu que eu não ficasse chateado e me contou que até o pastor, sem mencionar nome, fez um comentário durante o culto. Eu, um homem de respeito e moral ilibada, fiquei profundamente impactado com o ocorrido. Completamente constrangido, agradeci a ligação do amigo e, imediatamente, telefonei para a blogueira. 

Descontrolado, expressei minha indignação.  

-Que história é essa? Tenho um nome a preservar. 

Ela simplesmente respondeu:  

-Esse programa do blogspot altera as frases... é o robô tentando corrigir... affff. Buscando justificar, ela ainda disse: 

-Copiei o texto exatamente como estava e fiz a revisão... mas na hora de salvar, o robô muda. 

Talvez, querendo demonstrar superioridade e competência, ela ainda teve a ousadia de dizer que gerencia oito blogs da blogspot e que só nesse é que dá esses bugs suspeitos. -Apesar de revisar atentamente, às vezes pequenos probleminhas escapam. Não se estresse, relaxa!. As pessoas, especialmente jovens, não dão a mínima para texto gigante igual ao seu. Também, convenhamos, não é para tanto, o robô alterou apenas três palavrinhas. 

Já estava irritado com os erros no texto mas a resposta da blogueira inconsequente aumentou minha irritação.

 -Não se estresse? Relaxa? - retruquei. Não se estresse, relaxa, porque isso não lhe afeta. É fácil para você, não é? O que estava escrito como canário virou caralho. O que deveria ser tapete virou cacete. O que era borboleta virou buceta. Com todo respeito às profissionais do sexo, 'vá pra puta que pariu', nunca mais irei publicar uma linha sequer no seu blog. 

E desliguei.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Sibyla Loureiro Goulart, repórter

 


Sibyla nasceu em Porto Alegre e lá viveu, na beira do Guaíba, até o final dos anos 1970, quando, já formada em jornalismo, mudou-se para Florianópolis. Naqueles dias pouco havia de espaço para trabalho por aqui e ela acabou voltando para a capital gaúcha para atuar junto ao mandato do João Vicente Goulart, filho do Jango, eleito deputado. Pouco tempo depois retornou, atuando como freelance para revistas e outros periódicos de fora.  

Foi só quando o Diário Catarinense se instalou em Florianópolis que ela conseguiu um trabalho fixo. Ali ficou por uma década até que, junto com o marido, Barão, decidiu enveredar pelo caminho do jornalismo comunitário criando a Folha de Coqueiros em 1995, jornal impresso e de distribuição gratuita. A praia da Saudade, em Coqueiros, foi sua primeira morada na capital e ela ali está até hoje, pena em punho, sempre atenta às mudanças e às histórias da comunidade.

Neste episódio do Repórteres/SC Sibyla fala de sua trajetória, dos desafios de reportar a vida do bairro, a experiência de vivenciar as mudanças no jornalismo nos 50 anos de profissão e os planos para o futuro. Seguir com a Folha de Coqueiros – há 30 anos reportando o bairro - é o principal.  

As imagens são de Rubens Lopes. 

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Croniquintas/ Vestido rosa antigo de crepe

 


Texto de Míriam Santini de Abreu

Minha mãe comenta, por telefone, que vai a um jantar dançante e tomará emprestado das amigas um xale “chique”.

– Vai com que roupa, mãe?
– Com o conjunto da Ilse! – ela responde.

Há uns 30 anos, a mãe pediu à amiga Ilse, já falecida e conhecida estilista de Caxias do Sul, que lhe fizesse um conjunto “chique” para o casamento de um sobrinho. A Ilse fez uma saia plissada de crepe com forro de cetim e uma blusa de manga comprida com um detalhe drapeado na cintura. A cor, um rosa “antigo”, como define a mãe. Lembro-me de que, no dia em que ela trouxe o vestido para casa para a primeira prova, e eu invoquei com o tal detalhe drapeado.  

– Não gostei. Diz à Ilse para tirar porque vai sair de moda.

Ela insistia que não, mas eu não desistia. Depois de minutos tentando convencê-la, fiquei exasperada:

– Ah, mãe, até parece que tu tem medo dessa Ilse!

Nunca me esqueci desse último comentário porque, naquele momento, eu registrava toda a conversa com um pequeno gravador comprado dias atrás. No que mencionei o tal medo, vi que um dos cachorros da vizinhança, sabe-se lá como, despencava de um muro com uns dois metros de altura que faz o limite entre o beco e a nossa casa. Comecei a gritar como uma louca:

– Ahhhhhhhhhhhhhhhh! Ahhhhhhhhhhhhhhhhh! O cachorro caiu! O cachorro caiu!

E lá ficou, gravado, o meu gritedo, meio ridículo, sempre lembrado quando se fala do tal vestido. A história só não é mais anedótica do que a conhecida frugalidade de minha mãe, não só em relação a roupas, mas a tudo. Tem as mesmas roupas e sapatos há anos, a maioria dados por amigas e conhecidas. 

Eu, que só viajo com o que puder carregar em uma bolsa apenas – seja para Caxias ou para outro lugar – sempre vasculho as gavetas dela para me vestir. E me decepciono:

– Credo, só tem paninho!

E ela, quando todos os filhos moravam em casa, volta e meia fazia o que chamava de “dar uma limpa”, que significava doar tudo o que não usava ou que não tivéssemos vestido nas semanas anteriores. Eram dias de medo. As coisas sumiam do guarda-roupa e da cômoda. Não adiantava xingar nem ranger os dentes. Hoje continua a “dar limpas” nas próprias roupas sempre que ganha alguma peça nova. 

Ao longo dos anos, salvaram-se apenas as peças do enxoval dela e do meu, uns sapatinhos de lã e babeiros lindamente bordados que usei quando era criança, um casaco de pele dado por uma prima e, cuidadosamente pendurado no roupeiro, o conjunto de crepe rosa antigo da Ilse. 

Na nossa conversa por telefone, ela profetizou: 

– Vai durar para sempre. Tu vai ficar velha e também vai usar.

Não duvido.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Alzemi Machado, escritor

 

Ele nasceu, por obra do acaso, no Rio de Janeiro, mas só nasceu mesmo. O pai era da Marinha e estava por lá. A sorte é que logo em seguida foi mandado de volta e Alzemi viveu sua infância no bairro do Estreito. Foi na escola que tomou gosto pela leitura e pelos livros. Jovenzinho fez um curso de encadernador, pois achava bonito “curar” os livros. E o curso foi a sua porta de entrada para o mundo da biblioteca.  

Não tinha nem 17 anos quando passou no concurso para encadernador da Biblioteca Pública e desde então nunca mais saiu de lá. Juntava a fome com a vontade de comer. Viver com os livros era tudo o que queria. Por isso mesmo fez a faculdade de biblioteconomia e passou por várias funções na biblioteca. 

O cotidiano contato com a memória da cidade também despertou nele o desejo de vasculhar o passado, principalmente a memória de pessoas, fatos e lugares que não eram muito procurados. Foi assim que nasceu o livro “Memória do Abrigo de Menores”, contando a história esquecida de um lugar que faz parte da memória afetiva de Florianópolis. 

Outro tema que lhe chamou atenção foi o carnaval e lá veio mais uma pesquisa de anos, que resultou na memória das sociedades carnavalescas e os carros de mutação. 

Ele não se considera um escritor, prefere ser identificado como memorialista. E, de fato, é o guardião da memória da cidade, sempre atento aos temas que se escondem nas prateleiras e nos arquivos de computador. Ele olha para a cidade e vê o que ninguém vê. Aí ele pesquisa e desvela. Sua história e e a construção de sua obra estão narradas aqui. 


quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Croniquintas/ Na maldição do transporte coletivo

Toda mudança é sempre para pior

O dia era como eu gosto. Uma chuvinha intermitente, vento suli, tudo conspirando para a alegria, já que eu ia para o centro, espaço de belezas desta cidade amada. Mas, no caminho, vi nas notícias que os malditos da prefeitura alteraram horários e rotas de duas linhas que comumente uso. A da Costa de Dentro e Costa de Fora. Pois os espertinhos - que não andam de ônibus - acabaram com as linhas criando uma única rota para fazer Costa de Dentro e Costa de Fora. Isso simplesmente altera a vida de uma imensidão de famílias que mora naqueles bairros, porque para muitíssimas pessoas essa mudança altera o tempo dentro do ônibus. Só quem usa sabe. Maldito Topázio! Malditos burocratas que não ouvem as gentes. 


Foi exatamente isso que fizeram com as linhas do Castanheira Gramal e Castanheira Eucaliptos. Elas foram eliminadas e agregadas à linha Morro das Pedras. Com isso a trajetória ficou muito mais longa. Imagina levar 45 minutos para chegar em casa, numa linha dentro do bairro, porque ela atende dois bairros juntos em vez de um só. Antes, a gente levava dez minutos. Agora 45. É de enlouquecer. 


Além disso, há que segurar a onda com os motoristas estressados ​​que explodem a qualquer comentário. Dia dessas uma senhorinha informou ao motorista que não tinha parado no seu ponto - ela, velhinha, cheia de sacolas - e ele saltou mal-humorado: "Era eu? Não era? Então não quero saber. A senhora puxa a cordinha e eu paro". Assim, na ignorância, sem nenhuma empatia. A gente meio que entende, eles perderam os cobradores, ficaram pressionados. Mas, não custaria nada ser simpático. 


E assim eu vinha no ônibus remoendo ódio contra Topázio e seus tecnocratas, pensando sobre o que fazer já que o povo é tão manso. Como é possível aceitar essas mudanças no transporte sem um movimento de rebeldia? Queimava em ódio. Nisso o busão chegou no terminal e o povo foi saindo à galope. Fiquei pra trás, cheia de bolsas, tripés e sacolas. Quando fui descer o motorista simplesmente fecha a porta. Plaft! A porta se fechou sobre o meu braço magrinho e eu fiquei meio corpo pra fora, meio corpo pra dentro. Pensei: puta merda, vou morrer igual aquela senhorinha que caiu do ônibus. O cara arrancou e se foi. Gritei, mas ele não ouviu, minha cara estava para fora. Por sorte havia duas mulheres ainda dentro do ônibus e elas gritaram para ele parar. Ele parou e então abriu a porta, me destrancando. Foram segundos, mas eu realmente me apavorei. Não houve tempo nem para reclamação. Ele abriu a porta, eu saltei, as mulheres também e ele se foi. Fiquei ali com cara de tacho. Só consegui pensar: maldito Topázio. 


Por muito pouco eu não fui parar no Balanço Geral, o programa das desgraças. A coisa parece engraçada, mas não é. É muito difícil enfrentar o transporte coletivo todos os dias, ainda mais sendo velho. 

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Escadarias do Maciço - O Parque e seu Guardião (E 6)



Fotos: Rubens Lopes

A equipe da revista Pobres & Nojentas apresenta mais um episódio do projeto Escadarias do Maciço, o sexto, desta vez sobre o Parque Natural Municipal do Morro da Cruz, criado em 2005. Quem nos acompanhou na visita ao Parque foi o morador e ativista socioambiental Ruy Antônio Pures Alves. Na equipe, o jornalista Rubens Lopes e o professor da UDESC Francisco Canella, com edição da jornalista Elaine Tavares.

Ruy mostra o parque, encravado na montanha – como ele chama o Maciço – em uma aula motivada por profundo amor pelo lugar e pela compreensão aguçada da relação sociedade-natureza. A entrevista foi envolvida por silêncio e som da mata, das águas e da flora, ambiente em que as palavras do Ruy ficam ainda mais transmitidas de conhecimento vívido. Ruy é um verdadeiro mestre de saber e fazer. Um guardião do parque, que precisa do cuidado da Prefeitura. 

Uma entrevista coincide com um período no qual a Comissão Parlamentar Especial (CPE) na Câmara de Vereadores discute a situação das Unidades de Conservação da capital e produziu um relatório preliminar de 46 páginas que vai na direção da desconstituição dessas unidades, inclusive o Parque do Morro da Cruz, com argumentos já contestados em pareceres apresentados na Câmara.

O projeto busca ouvir moradores do Maciço Central ou Maciço do Morro da Cruz, parte do Distrito-Sede de Florianópolis, revelando o cotidiano naquele espaço urbano da Ilha de Santa Catarina. O Maciço é uma formação rochosa próxima às áreas centrais da capital catarinense e se estende por quase 5 km no sentido das Baías Norte e Sul, atingindo 285 metros de altura. Nele há pelo menos 18 comunidades e cerca de 30 mil pessoas constituindo diferentes apropriações socioespaciais. 

Um dos desafios para as populações que ali moram é a mobilidade e a acessibilidade, sendo uma das formas mais características, além das linhas de ônibus, o uso das escadas para o trajeto entre as comunidades e delas até as áreas planas do centro da cidade. 

O episódio teve apoio da UDESC (Programa de Extensão Territórios Populares - EDITAL PAEX-PROCEU/UDESC nº 01/2023) e do Instituto Cidade e Território (ITCidades).

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Cláudio Schuster, escritor



Cláudio nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul, bem ao sul da grande Lagoa dos Patos. Cidade bastante conhecida por sua riqueza cultural. Música, literatura, teatro e cinema têm tradição por tudo. E Cláudio não ficou imune ao clima. Desde gurizinho, quieto e tímido, vislumbrava sombras pela janela de casa e já concebido em transformá-las em história. Fazer cinema era seu sonho.

Sem uma faculdade de cinema na cidade e sem muita possibilidade de sair de lá ele foi se arriscando no mundo das letras, cometendo poemas enquanto cursava jornalismo, o curso mais próximo do seu sonho. 

E foi quando a empresa gaúcha RBS decidiu criar um jornal em Santa Catarina que ele, já formado, decidiu vir para Florianópolis. Nunca mais saiu e foi justamente aqui que começou a poesia fazer, desta vez com mais constância. Veja o primeiro livro e depois mais outros. O jornalismo dá conta da vida e a poesia alimenta a alma. Atualmente ele trabalha em parceria com o músico Marco Oliva, que transformou algumas de suas poesias em música no espetáculo Beba Poesia. Agora, ele também performa poesia no palco, junto com Marco Oliva, vencendo mais uma vez a timidez. 

O trabalho poético de Cláudio Schuster, sua compreensão sobre a poesia e sobre a necessidade de um movimento cultural que extrapole as bolhas pode ser conhecido aqui em mais um episódio do projeto “Conversas na Tiradentes”, uma parceria da Pobres e Nojentas com os Desterrados. 

Imagens de Tasso Cláudio Scherer. 

Croniquintas/ Bendita Chuva



Texto de Dinovaldo Gilioli

Ela o olhou discretamente por debaixo dos óculos e foi fisgada imediatamente. Lendo em pé no ônibus e com uma mochila sem alça debaixo do braço, o moço estava anos-luz de distância do olhar dela. 

Sem entender direito o que estava acontecendo, ela, que namorava há três anos, procurou pegar o mesmo ônibus do tal desconhecido que arrebatou o seu coração na primeira olhada e sem sequer ser correspondida. Num desses dias chuvosos, o rapaz estava parado no ponto de ônibus totalmente descoberto. Ela, com sombrinha em punho, não hesitou em lhe oferecer uma carona até a casa dele. 

Havia descoberto naquela semana que residiam próximos. Desse encontro inusitado, com pouca conversa, sutis olhares e sem rolar até um beijo tímido, ela teve a certeza do que queria. No outro dia, conversou com o seu namorado e pediu um tempo. 

Após três meses terminou o namoro e começou a se encontrar com o moço do ônibus. Casados​​ e apaixonados há 37 anos, ele sempre repete: “bendita chuva que nos aproximou”. Na velha sombrinha, única testemunha do encontro, ainda permanecem as marcas desse amor à primeira vista

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Maciço: história e memória (E 5)



A equipe da revista Pobres & Nojentas apresenta mais um episódio do projeto Escadarias do Maciço, o quinto, trazendo hoje entrevista com o professor e pesquisador da UDESC Francisco Canella, estudioso das lutas por moradia em Santa Catarina. Na entrevista, gravada na Escadaria da Rua José Boiteux, Canella fala sobre a história da ocupação do Maciço do Morro da Cruz, as transformações mais recentes, como a presença de novos moradores migrantes, a tendência de pressão do mercado imobiliário e os desafios referentes à infraestrutura, serviços (saúde, assistência social, educação) e acessibilidade.

O projeto busca ouvir moradores do Maciço Central ou Maciço do Morro da Cruz, parte do Distrito-Sede de Florianópolis (SC), revelando assim o cotidiano naquele espaço urbano da Ilha de Santa Catarina. O Maciço é uma formação rochosa próxima às áreas centrais da capital catarinense e se estende por quase 5 km no sentido das Baías Norte e Sul, atingindo 285 metros de altura. Nele há pelo menos 18 comunidades e cerca de 30 mil pessoas constituindo diferentes apropriações socioespaciais. 

Um dos desafios para as populações que ali moram é a mobilidade e a acessibilidade, sendo uma das formas mais características, além das linhas de ônibus, o uso das escadas para o trajeto entre as comunidades e delas até as áreas planas do centro da cidade. 

O projeto tem o apoio da UDESC (Programa de Extensão Territórios Populares - EDITAL PAEX-PROCEU/UDESC nº 01/2023) e do Instituto Cidade e Território (ITCidades).


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Croniquintas/ Memórias do primeiro jornal

 

Aos 20 anos na Redação da FH


Por Míriam Santini de Abreu

Eu era auxiliar de escritório em uma rede de supermercados de Caxias do Sul em meados de 1990. Entrava na segunda fase de Jornalismo e decidi bater na porta do extinto jornal Folha de Hoje para pedir emprego. Consegui um estágio e lá fiquei durante dois anos. Como tantos outros que passaram pelo jornal, a minha relação com a Folha era um caso de amor. 
Havia a Tríade dos Editores – Cancian, Ibanor e Braga. E trabalhava lá o Darci Demetrio, que sabíamos – os repórteres – ter ganho um Prêmio Esso Regional Sul de Jornalismo. Toda semana o Demetrio selecionava uma reportagem para colocar no mural da Redação e comentar. Lembro-me ainda hoje do dia em que a primeira que fiz foi “para o trono”, como dizíamos. Era sobre uma ocupação de famílias empobrecidas ao lado da Prefeitura. Prova de que o tema me percorre há décadas. Recortei o comentário, datilografado em máquina de escrever, e guardei numa pasta de velhas matérias que tenho até hoje.
Eu amanhecia plena de notícias a apurar e escrever, e anoitecia pulsátil, mesmo depois das acabrunhantes viagens diárias a São Leopoldo para cursar jornalismo na Unisinos. 
Na Folha aprendi a adorar a Editorial de Geral, onde está a peonada do jornalismo: Repórter de Geral, em especial de matérias de cidade e meio ambiente. Aprendi a adorar também as botas pretas de cadarço com sola pesada, confortáveis e aptas para qualquer solo e clima. Botinha de Repórter é como as batizei. 
Toda manhã as pautas nos esperavam em tirinhas de papel. Cada saída com a equipe repórter-fotógrafo-motorista era uma celebração para mim, “foca” deslumbrada. Digitávamos os textos em PCs com monitor verde em meio ao alarido da Redação, uma sala apenas dividida em Editorias com uns seis PCs cada. Os Editores ficavam no único aquário – a sala com divisória de vidro -  e havia as salas menores de Fotografia e Arquivo, de recebimento de telex e de diagramação e finalização das edições. Ah, que grande azáfama! Papel, bloco, telefones, dicionários, “espelhos”, “bonecos”, dicionários, fotos, canetas, pressa! 
Quando o relógio apontava 17h30, eu, a Rosane Berti e o Samuel Frison corríamos Redação afora, sempre atrasados para encontrar, na Praça, o ônibus para a Unisinos. Havia histórias e risos nessas viagens, sempre tendo a Folha de Hoje como cenário.
As pessoas que trabalharam no jornal organizam confraternizações em Caxias e há um quase consenso em relação aos episódios mais marcantes da história da FH. Um deles foi o dia em que parte do prédio da Prefeitura da cidade pegou fogo. 
Era final de tarde, mas o Cancian, nosso Editor Geral, não precisou chamar ninguém de volta ao trabalho. Estávamos todos lá, uns nos carros do jornal, outros subindo às carreiras a rua Dom José Barea, no alto da qual está, ainda hoje, o Centro Administrativo. Eu e o Samuel chegamos juntos, e ainda hoje me lembro da gafe que cometi. Lá estava o prefeito Mansueto Serafini, uma expressão atordoada no rosto. Eu, afobada pela corrida, lasquei:
- Oi, prefeito, tudo bem!?
Atrás dele, as chamas destruíam parte do prédio! 
Nem bem perguntei, me dei conta da gafe e saí dali rapidinho. Uma insensibilidade de Nero, a minha.
Uma hora depois chega à rua, esbaforido, o então secretário da Educação. Ele conta que uma criança quase fora esquecida no local porque dormia em uma das salas da secretaria. A mãe havia saído e voltou desesperada quando soube do incêndio. Os detalhes da história hoje me escapam, mas eram muitos, e eu e o Samuel resolvemos fazer um texto assinado pelo dois. 
Eu estava então imbuída do espírito dos manuais de redação e – temente àqueles preceitos ridículos - insistia em um texto protocolar. O Samuel, hoje doutor em Literatura, queria fazer uma narrativa quente como as chamas. O texto publicado foi um híbrido, e o episódio da criança, dias a fio, discorrido em nossas viagens a São Leopoldo. 
A Folha fechou de forma melancólica em meados dos anos 1990. Não sei se algum estudante de jornalismo da Universidade de Caxias do Sul contou a história do jornal. Espero que sim. Lá se foram 35 anos. 

Escadaria da rua José Boiteux (E 4)




A equipe da revista Pobres & Nojentas apresenta mais um episódio do projeto Escadarias do Maciço, trazendo agora a escadaria da Rua José Boiteux, possivelmente a mais longa do Maciço do Morro da Cruz. Neste episódio entrevistando o morador Sidnei Paim, que vive no meio da escadaria. 

O projeto busca ouvir moradores do Maciço Central ou Maciço do Morro da Cruz, parte do Distrito-Sede de Florianópolis (SC), revelando assim o cotidiano naquele espaço urbano da Ilha de Santa Catarina. O Maciço é uma formação rochosa próxima às áreas centrais da capital catarinense e se estende por quase 5 km no sentido das Baías Norte e Sul, atingindo 285 metros de altura. Nele há pelo menos 18 comunidades e cerca de 30 mil pessoas constituindo diferentes apropriações socioespaciais. 

Um dos desafios para as populações que ali moram é a mobilidade e a acessibilidade, sendo uma das formas mais características, além das linhas de ônibus, o uso das escadas para o trajeto entre as comunidades e delas até as áreas planas do centro da cidade. 

O projeto tem o apoio da UDESC (Programa de Extensão Territórios Populares - EDITAL PAEX-PROCEU/UDESC nº 01/2023) e do Instituto Cidade e Território (ITCidades). 


quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Billy Culleton, repórter

O jornalista Billy Culleton é o 31º entrevistado do projeto Repórteres/SC. Nascido em Buenos Aires, mudou-se para Santa Maria (RS) para estudar primeiro Filosofia e depois Jornalismo, decisões amadurecidas em vivências na Pastoral Carcerária do município gaúcho e que também levou a viagens Brasil fora e às primeiras experiências jornalísticas.

A vinda para Florianópolis foi em 1993, com ingresso no Diário Catarinense, consolidando carreira como repórter e editor de política em um período no qual as empresas mantinham setoristas para acompanhar de perto os três poderes. No DC, a partir de uma nota lida no Jornal do Brasil, viajou com o repórter fotográfico Daniel Conzi para a produção de uma reportagem sobre as circunstâncias da morte de João Goulart que municiou os trabalhos de Comissão Especial na Câmara dos Deputados entre 2000 e 2001. Tudo num tempo em que a internet era incipiente e a busca por fontes se fazia nas velhas listas telefônicas. 

Ao mesmo tempo, concluiu o mestrado pela UFSC, exerceu a docência durante 14 anos nos cursos de Jornalismo da Unisul, Universidade Federal de Santa Catarina e Centro Universitário Estácio SC. Com a saída do DC, até 2018 Billy foi assessor de comunicação em órgãos como o Tribunal Regional Eleitoral de SC e a Procuradoria Geral do Estado. De ascendência irlandesa, ele aproveitou viagens às terras europeias para fazer reportagens publicadas pela Carta Capital.

Em 2019, Billy criou o Portal Floripa Centro, que traz notícias do cotidiano e reportagens históricas sobre Florianópolis, constituindo acervo valioso de um jornalista conectado com a vida e as diretrizes nascidas de um corpo a corpo com a rua. Atualmente ele é gerente de Comunicação do Porto de São Francisco do Sul e tem à vista os projetos de retomada do Portal Floripa Centro e as investigações sobre a morte de Jango. Na entrevista, ele também fala sobre autores que influenciaram seu trabalho e analisa o cenário atual do jornalismo catarinense. 

A gravação e as fotos são de Rubens Lopes.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Billy Culleton no Repórteres SC






O jornalista Billy Culleton é o 31º entrevistado do projeto Repórteres/SC. Nascido em Buenos Aires, mudou-se para Santa Maria (RS) para cursar jornalismo.

A vinda para Florianópolis foi em 1993, com ingresso no Diário Catarinense como repórter e editor, seguindo também carreira na docência e em assessorias de imprensa. 

Na entrevista, Billy fala sobre reportagens que marcaram sua trajetória, como a investigação das circunstâncias da morte de João Goulart, e a produção para o Portal Floripa Centro, criado por ele em 2019. 

O vídeo está em edição e será divulgado em breve com mais detalhes da trajetória de Billy. As imagens são de Rubens Lopes.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Croniquintas/ No caminho de El Tatio

Nossos gêiseres

Eu não esqueço a cena. Era madrugada e um pequeno grupo seguia em direção a El Tatio, um dos pontos mais altos da região da quebrada de San Pedro de Atacama, no deserto chileno, onde ficam os famosos gêiseres. Havia chovido bastante na noite anterior e as estradas estavam muito ruins. O guia que levava o grupo era um representante legítimo dos Likan Antay, o povo atacamenho, originário do lugar. Seu nome: Getúlio. Homem de poucas palavras, com aquele silêncio pesado que precede tempestades, típico das gentes do Atacama que veem a cada dia seus espaços sendo tomados por empresários europeus.

Na Van seguia um grupo animado composto por brasileiros, chilenos e um espanhol. Basicamente colocávamos nossa vida nas mãos daquele homem, pois o caminho era absolutamente invisível, tamanha a espessura da neblina. Nada se via e só o que a gente sabia era que de um dos lados estreitos da estrada se abria um precipício imenso. Getúlio seguia impávido, conhecedor de que era daquelas milenárias veredas.

Então, houve um estrondo e o carro caiu num buraco, pendente para o lado do penhasco. Foi um momento de pânico geral. Logo estávamos todos na rua e Getúlio tentava retirar o carro da fenda onde tinha caído. Foi nessa hora que o espanhol surtou. Dizia ao indígena que ele era um irresponsável, que não havia condições de subir a montanha, que estava colocando em risco sua vida e tantas outras barbaridades que não vou reproduzir. Getúlio ouvia com sua impassível paciência enquanto, sozinho, lutava para tirar o carro da vala. Ficava explícito ali naquele monólogo do espanhol todo desprezo que ele tinha pelo saber e pela cultura de Getúlio, do povo originário. Sequer se prontificou em ajudar. Só gritando.

E foi tanta a loucura do espanhol que ele praticamente obrigou todo o mundo a voltar para a vila, fazendo ameaças e impedindo que o carro seguisse o caminho até os gêiseres. Como se a estrada ruim e o acidente fossem responsabilidade de uma “burrice” natural de Getúlio. A histeria do cara foi tanta que todos decidiram voltar para São Pedro e retornar a El Tatio só na madrugada seguinte, sem a presença do espanhol. Foi o que fizemos. 

No dia seguinte partimos pela mesma estrada e com o mesmo motorista, vivendo a mesma aventura da neblina fechada. Lá em cima, maravilhada com a beleza dos gêiseres, tive tempo de conversar com Getúlio enquanto devorávamos sanduíches no almoço. Eu meio que pedindo desculpas pelo espanhol. “Esse povo é assim, acha que ainda manda por aqui”, disse ele. "Pensam que somos sua colônia. Não somos mais!". 

Pois não é que no dia seguinte fomos todos chamados à chefatura dos “carabinieri” para dar declarações. O espanhol havia feito uma denúncia crime contra Getúlio, dizendo que ele havia colocado em risco a nossa vida. Claro que todos defendemos Getúlio, pois ele não só tinha cuidado muito bem da situação como sabia andar naquelas estradas de olhos fechados. Nunca houve risco para nossa vida. Foi o maior mico do espanhol! Mas, mostrou bem a sua cara...


quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Croniquintas/ Culpa do Vento Sul


Por 
Dinovaldo Gilioli

O sujeito era muito vaidoso, daqueles que não saíam de casa em dia de vento sul só para não espalhar o cabelo que, aliás, tinha muito pouco. Certa vez, essa sua vaidade quase lhe fez romper o casamento. O ingresso para o show tinha sido comprado com bastante antecedência, sua esposa sabia que se comprasse em cima da hora e tinha tal vento não havia quem o tirasse de casa. 

Esse show era o sonho de Tereza. Fã incondicional do músico, era sua grande chance de assistir o ídolo, quem sabe até conseguir tirar uma foto com o famoso cantor e postá-la na internet. Com certeza ia causar inveja nas amigas. Tereza também tinha lá suas vaidades. 

No dia fatídico, ela não se aguentava de ansiedade. O sol estava radiante e tudo corria dentro do previsto. No entanto, quem é que domina o tempo. À noite, sem nenhuma previsão meteorológica, caiu um vento sul de arrancar peruca e pra complicar mais ainda uma chuva fina, daquelas que corta feito navalha. 

Tereza já imaginava a cena: Godofredo, seu digno esposo, ia querer ficar em casa e ela não saia sem ele. Você sabe, mulher casada, proba, de moral ilibada, não ia andar por aí à noite desacompanhada. Na próxima hora do show, Godofredo não dava nenhum sinal. Todo sujo de mexer no quintal, banho que era bom, nada. Tereza não se conteve. 

- Apura Godofredo, desse jeito vamos perder o show! 

Ele se fez de esquecido, mas lembrou o tempo todo do vento sul e da chuva fina gelada. Na maior cara de pau indagou: show, que show? Tereza não hesitou um segundo sequer. 

- Tudo bem, se não quer ir por causa do vento sul e da chuva fina, paciência. Vou convidar o Jerônimo pra ir comigo. 

Jerônimo foi ex dela e era muito amigo do casal. Godofredo tinha uma confiança demasiada no amigo e ele disse, sem pestanejar: "com Jerônimo pode ir, até porque não estou me sentindo bem". Pura mentira, é claro. 

Dito e feito, Jerônimo topou na hora ir com a Tereza. E lá se foram. Animada e saltitante, chegou em casa à meia noite. O show tinha terminado às 22h. Acordado ainda, Godofredo perguntou: E, daí, como foi o show? 

Sem muito pensar, num ato falho, Tereza respondeu, perguntando: show, que show?



quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Raimundo Caruso, escritor


Raimundo Caruso é catarinense, nascido em Urussanga, no sul do Estado. Bem jovem foi estudar em Curitiba e lá na capital paranaense esteve em contato com rico movimento cultural movido por escritores de alto calibre. Fez a faculdade de jornalismo porque lhe encantava a palavra.

Mas, inquieto, percebeu que conhecer era também andar pelos caminhos da América. Foi quando decidiu pegar uma mochila e sair pelo mundo. Andou por vários países, coletando imagens e histórias que depois se transformaram em livros. Esteve por um tempo no Jornal O Estado, de Florianópolis, e passou pela UFSC, aonde deu aula.

Disposto a não se deixar prender por amarras empregatícias decidiu voltar a viajar, desta vez com a intenção de entrevistar pessoas e contar as histórias, tendo como parceira, em muitos livros, sua esposa Mariléia Caruso. Assim, nasceram novos livros, sobre a Amazônia, os Açores, os jangadeiros do Ceará, a Bolívia, os automóveis. Ele acredita que a entrevista é o suprassumo do jornalismo. Também já se aventurou no romance – tem três escritos. 

É essa trajetória de vida e obra que o projeto “Conversas na Tiradentes” apresenta agora, com imagens de Tasso Cláudio Scherer, direção de fotografia de Sérgio Vignes e entrevista de Elaine Tavares. 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Croniquintas/ Enxoval de Palavras






Por Míriam Santini de Abreu

Eu devia ter uns 15 anos quando descobri que minha mãe fazia, às escondidas, o meu enxoval. Palavra linda, vem do árabe ax-xauar. Lá estavam, na prateleira mais alta do guarda-roupa dela, escondidos, os delicados conjuntos para enfeite em crochê, toalhas, colchas, lençóis, tudo bordado com ponto cruz colorido e miúdo.

Ah, que berros eu dei naquele dia! Fiz um discurso inflamado contra o que, naquela época, o enxoval significava para mim: casamento formal e filhos. E eu, eu só pensava em ser jornalista.

A mãe, como sempre, fez cara de paisagem e não deu a mínima para as minhas queixas. Anos a fio, continuou a comprar toalhas e tecidos e a costurar e pregar, nas barras, arremates bordados naquele caprichado ponto cruz que ela até hoje tem disposição para fazer.

Algumas peças eu escondi dela, como um pequeno pano decorativo de veludo preto com um beija-flor bordado, de fios lindamente coloridos, que eu queria fazer crescer até virar um vestido tão deslumbrante quanto os de Scarlett O'Hara. Escondi tão bem que nunca mais achei. 

Quando finalmente pude morar num local onde valia a pena colocar adornos tão bonitos, humildemente pedi o enxoval. Ela me olhou com aquela expressão de triunfo e disse que eu deveria, sim, levar o que queria, mas aos poucos. E assim é, até hoje.

Toda vez que vou para casa, vasculho a guarda-roupa dela para escolher peças do enxoval, inspiradas em modelos de umas revistas antigas de ponto cruz que a mãe guarda até hoje. Muitas das peças em crochê foram feitas por tias já falecidas e a gente gosta de afirmar: – Tem pelo menos 50 anos!

Se a mãe inventa de dar alguma peça de presente para amigas e parentes, eu faço um berreiro, em atitude infantil: – É meeeuuu! É tudo meu!

Sob quadros, nas paredes, nas colchas, nos lençóis... As artes enxovalísticas de dona Eluci estão por toda parte lá em casa. 

Naquela época, o enxoval significava tudo o que eu não desejava para mim, o modelo contra o qual eu me rebelava. Hoje, significa o que é: peças delicadas feitas pela minha mãe. 

Nada entendo de agulhas, linhas e máquinas de costura. Mas quero seguir o exemplo da mãe e deixar por aí ao menos um enxoval de palavras.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Croniquintas/ Em Susques, com Gladis Contreras

Gustavo, Elaine, Gladis e Miriam

Centro de Susques



Por Elaine Tavares

O ano é 2005. O lugar foge a qualquer conceito e é chamado de pórtico dos Andes. Fica bem no pé da Cordilheira, na puna argentina. Uma pequena comunidade de 800 pessoas, última parada antes de avançar pelas montanhas, no rumo da fronteira com o Chile. Tudo ali tem a cor da terra, até as gentes, de um marrom indescritível. Quase não há árvores. Encravado entre montes pedregosos, o povoado de Susques desafia a vida. O ar é raro, afinal, fica a 3.675 metros acima do nível do mar.

Susques não está nos roteiros turísticos. É apenas conhecido pelos caminhoneiros que precisam entrar na aduana, instalada ali, para acertar os papéis com os quais cruzarão o Paso de Jama, posto da fronteira. Passou quase a sua vida inteira - e é um povo antigo, milenar - sem luz elétrica. Essa novidade só chegou ao povoado - por 24 horas seguidas – no ano de 2002. Mas, é ali que vive uma professora primária, que levou a sério essa “tal ideia” de integração latino-americana. Parece que na nossa América só os "pueblos chicos" compreendem a necessidade de um encontro verdadeiramente humano entre as gentes dos mais diversos países. 

Gladis Contreras, que naqueles dias já passava dos 60 anos, deu aulas para a criança de Susques até o começo dos anos 2000. Chegou ali jovenzinha, vinda de um povoado vizinho. Apaixonou-se, casou-se e nunca mais saiu. Agora está aposentada e cuida de uma pequena hospedaria, chamada de "La Vicuñita". Ela conta que, tão logo começou "essa onda" do Mercosul, decidiu aprender o português para, depois, poder ensinar aos alunos. Estudou por cinco anos a língua do maior país da América Latina. Confessa que tem dificuldades, pois não tem com quem praticar. Daí a alegria com que recebeu três brasileiras perdidas em busca do caminho dos Andes. 

Gladis fez a sua parte na tentativa de compreender o “brasileiro”. Fala devagar, pronunciando bem as palavras. Tem um bom vocabulário e consegue compreender tudo. Mas isso não é algo comum. No mais das vezes, as pessoas de fala espanhola têm bastante dificuldade de entender o português, assim como os brasileiros também patinam no entendimento do espanhol, embora muitos façam o esforço supremo de falar o “portunhol”, buscando maior aproximação com os “hermanos”.

O certo é que, nas ruas, na vida das pessoas comuns, a integração se dá de forma natural. No jeito simples de cada um inscreve-se o desejo de aprender sobre a vida do outro, uma ou outra palavra, busca-se o conhecimento sobre a geografia, os costumes. A comunicação vai fluindo, natural, dos mais variados jeitos. O encontro humano se faz. E, quando a gente parte, fica um pouco do Brasil. Assim como, na bagagem, levamos também algo do lugar, das gentes.

Já na vida acadêmica ou política tudo parece tão difícil. A integração que se pensa é apenas econômica, abertura para o comércio. A língua é banida, sendo sempre imposta a da maioria, sem qualquer respeito à diferença. No mundo do comércio há o império do inglês e até os líderes governamentais acabam falando o idioma gringo quando visitam países estrangeiros. 

Poucos na América Latina fazem o que fez a professora Gladis Contreras, aparentemente perdida no povoado de Susques. Ela percebeu que uma integração não acontece por cima e deve, isto sim, começar na tentativa de compreender o outro, dando-lhe o devido espaço. Deve permitir que o outro apareça na sua diferença, que se explicite, que se diga na sua língua. Um e outro, tentando se entender. Um e outro aprendendo um do outro. 

Naquele dia passado em Susques, aprendemos que a vida naquelas alturas é difícil. Que Gustavo, o filho de Gladis, insiste numa velha tradição plantando no quintal de casa a quínua – um cereal típico das culturas autóctones, quase em extinção – e, com ela, faz deliciosas receitas que compartilha com sua gente. Aprendemos ainda que os homens do lugar ganham a vida nas salinas, no trabalho duro, na extração manual do sal, que extingue a saúde, que fere os olhos. Aprendemos que a palavra Susques (portal dos Andes) deriva do idioma quéchua, que o povo dali vivia do pastoreio e da agricultura e que, agora, já anda perdido de sua antiga forma de viver com as modernidades chegando.

E foi ali, na entrada para a cordilheira, que, numa noite de muita chuva, Miriam, Marcela  e eu, premiadas, uma com dor de dente e as outras com o mal das alturas, compartilhamos a vida, falando um pouco em português, um pouco em espanhol, trocando receitas, contando histórias. No meio da noite argentina, integrados, sem que para isso fosse necessária qualquer lei. Só o desejo infinito de compartilhar e compreender...