Elaine Tavares
A luta de classe, já dizia o velho Marx, é isso mesmo: luta. Uma batalha entre aqueles que detêm os meios de produção contra os que são oprimidos por eles. Nesse confronto, as forças geralmente são desiguais porque os que dominam têm também o controle das forças armadas, a força bruta, a repressão. Por isso que, para vencer, os oprimidos só podem usar o que têm: "seus corpos nus", como dizia o grande repórter Marcos Faermann. Então, sem o recurso das armas só quando muitos corpos se unem numa mesma luta, é possível vencer a força bruta. Assim, a revolução!...
Mas, a revolução tampouco é coisa que nasce do nada. Ela é o acúmulo de anos e anos de medos, dores, ódios, amores, mortes, violências. As coisas vão acumulando nas camadas mais pobres da população, entre os oprimidos, até que um dia, um motivo torpe, uma coisa de nada, acende o estopim, e tudo começar a arder. Quem não se lembra de 1968, na França, quando uma manifestação estudantil contra a divisão de dormitórios, acendeu o pavio de um movimento gigantesco, que mudou a cara do mundo no que diz respeito aos costumes, à cultura e até à política. Não chegou a ser uma revolução, mas alavancou transformações importantes.
Ontem, no Brasil, a população viu o que não via há tempos. Multidões nas ruas, reivindicando, exigindo direitos, protestando. Começou como um dos tantos protestos contra o aumento de tarifas, teve uma reação fora de propósito pela polícia paulista e gerou uma onda incontrolável de manifestações. É um estopim.
Muitos analistas falam da falta de foco do movimento. Cada um protesta por uma coisa diferente. As reivindicações são difusas e não convergem para um propósito único, capaz de provocar uma fissura realmente considerável no sistema. Isso de fato é verdade. Há uma gana por dizer a palavra, há tantas coisas a reivindicar e isso tende a diluir as vitórias. Só que como as manifestações estão sendo feitas por gente, o resultado de tudo isso ainda é inalcançável. Tudo pode acontecer.
Tive a oportunidade de acompanhar algumas das grandes manifestações que ocorreram no mundo nos últimos anos. Estive na Grécia, nas greves gerais, quando milhões de pessoas saíram às ruas contra os "ajustes" impostos pelos bancos que levaram o país a bancarrota. Estive na Praça do Sol, na Espanha, vendo milhões a caminhar contra o arrocho provocado pela mesma crise que atingiu a Grécia. Estive na cidade do Cairo quando a multidão saiu às ruas para celebrar um ano da queda de Mubarack. Em cada um desses lugares, os milhões de manifestantes ( e tantos mortos) lograram poucas mudanças. A Grécia segue aprofundando as medidas de recessão, a Espanha elegeu um presidente da direita que também penaliza as gentes e o Egito ainda segue tentando garantir alguma transformação. Em todos esses momentos também foi possível observar as reivindicações difusas, as divisões internas, a intervenção "providencial" da direita. Porque a luta de classe é assim mesmo: batalha de duas concepções divergentes. E quando as gentes ocupam as ruas, a classe dominante sabe que também tem de sair, usurpando bandeiras e confundindo as mentes. Quando a força bruta perde eficácia, a classe dominante usa a confusão, usa a alienação mental potencializada pela mídia comercial a seu serviço, infiltra gente para fazer ações de desestabilização ou incita a que as façam. A batalha é feroz.
Mas, tudo isso não pode fazer com que o sentido da revolta seja diminuído. Num mundo onde as pessoas são diuturnamente bombardeadas com informações alienantes e desestruturastes, seja na escola, na mídia, nos diversos grupos sociais, é natural que os desejos de transformação sejam parciais, difusos, variados. Todo o sistema funciona no sentido de manter a mente das pessoas prisioneira da ideologia de que no capitalismo, em algum momento, se elas trabalharem direitinho, chegarão "lá". O que significa chegar a um nível de consumo capaz de satisfazer todos os desejos de vida boa e bonita.
Mas, no capitalismo, esse chegar lá é individual, depende de cada um. Daí a sua sedução. E essa mentira, repetida tantas vezes, em todos os veículos de transmissão da ideologia da classe dominante, vai se fazendo realidade. A classe dominante aprova e incentiva a formação de grupos diversos, para que as reivindicações fiquem mesmo difusas: negros, mulheres, LGBT, funcionários público, trabalhadores privados, familiares de presos, ecologistas, pela liberação da maconha, contra a corrupção. Assim, divididos e sem um corte de classe definido, fica bem mais fácil de controlar.
Só que chega um dia, como ontem, que essas gentes divididas entre tantas reivindicações segmentadas se juntam e caminham em uníssono. É onde nasce a possibilidade do ainda-não. É um momento único de explosão da consciência de classe. De alguma forma, todos ali na caminhada são oprimidos, estão enfrentando o mesmo aparato repressor, se enfrentam com um única classe dominante. É a luta de classe.
O que pode acontecer depois desses momentos de elevação da consciência de classe não há como saber. Pode ser apenas um momento de acumulação de força, de crescimento da consciência, de reconhecimento sobre quem é a elite dominante e como age para manter o controle. O fato é que a consciência de classe só pode brotar desses instantes únicos, de comunhão, de povo unido na rua. Ela não pode ser incutida pelo discurso, pelos cursos de formação. Ela só pode brotar assim, na práxis, no enfrentamento da vida mesma. As ruas do Brasil se encheram ontem, de jovens, de velhos, de trabalhadores, de crianças, de gente querendo mudanças. Como um dia, num passado bem próximo, se encheram pela anistia, pelas diretas, pela queda de Collor. Foi um momento lindo, bonito de se ver e viver.
Agora, nos palácios, governantes e aqueles que os governam, já ensaiam sua reação. Que virá. As tarifas vão baixar e eles esperarão para contabilizar os estragos, para observar as rachaduras no muro ideológico, sempre com o cimento na mão. Para nós, que estamos do outro lado também será tempo de observar onde avançou a consciência de classe e seguir, sempre prontos para o combate.
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