Elaine Tavares
A lembrança é vívida. Quando aconteceu
a Reforma da Previdência, em 2003, nos primeiros meses do governo Lula, eu
dirigia o Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal de Santa Catarina
(Sintufsc). E, naqueles dias, fomos implacáveis na crítica. Era a primeira
grande ação do chamado “governo popular”, e era um golpe mortal na aposentadoria
dos trabalhadores públicos, além de introduzir o malfadado fundo de pensão, uma
espécie de “roleta russa” com a velhice das gentes . Em Florianópolis, o
Sintufsc foi linha de frente na discussão e na luta contra a tal reforma.
Fazíamos debates, reuniões, atos públicos, passeatas, tudo em parceria com
outros sindicatos de trabalhadores públicos, alguns ainda tímidos, sem querer
bater no governo que iniciava sua trajetória.
Como parte da estratégia de luta,
fazíamos o cerco aos deputados federais do PT que eram da bancada catarinense.
Foi um momento triste e tenso, porque eram nossos companheiros de muitas lutas,
alguns, amigos. Daqueles atos assomaram muitas dores. Amizades perdidas, mágoas,
tristezas, desilusões. Mas, o que estava em questão não eram as dores pessoais e
sim o destino de quase 200 mil trabalhadores. Assim, não havia como não criticar
a reforma e lutar contra ela. Os velhos companheiros, naquele então deputados
federais, se recusavam ao debate e nos apontavam o dedo com o argumento de que
estávamos tentando desestabilizar o governo, que fazíamos o “jogo da direita” ao
criticar Lula. Não foi fácil enfrentar e seguir denunciando aqueles que até
pouco tempo eram nossos aliados nas lutas.
Pois no processo de votação da reforma
já tinha surgido a acusação de que o governo estava “comprando” votos para
formar a maioria e passar a reforma. E tudo isso era denunciado, a despeito das
caras amarradas dos que confiavam no governo como um governo de trabalhadores.
Para nós, que estávamos à frente do sindicato, nosso papel era claro: defender
os trabalhadores, ainda que para isso tivéssemos que enfrentar velhos amigos e
mostrar que o “rei estava nu”. Era a prática real daquilo que sempre tivemos
como princípio: independência de qualquer
governo.
Nunca tive problema em ser
“governista”, afinal, se um governo que ajudamos a eleger está no caminho certo,
há que se apoiar e defender. Mas, no caso em questão não era o que acontecia. A
Reforma da Previdência proposta por Lula era ruim e só traria prejuízos aos
trabalhadores. Não havia qualquer avanço naquela proposta, pelo contrário: era
uma exigência do ideário neoliberal. Ou seja, a reforma colocava a aposentadoria
dos trabalhadores lá em baixo e ainda obrigava àqueles que ganhavam um salário
melhor a entrarem no fundo de pensão. Ou isso, o rebaixamento dos salários em
40, 50 e até 70%. Assim, os trabalhadores públicos que futuramente se
aposentassem deveriam colocar sua vida nas mãos da especulação financeira.
Aqueles dias de luta foram duros e
intensos. Como a Central Única dos Trabalhadores apoiava a reforma, os
sindicatos de trabalhadores públicos ficaram sozinhos. Foi assim que nasceu a
Coordenação Nacional de Lutas, a Conlutas. Havia que se constituir uma
organização nacional que articulasse a luta das mais diversas categorias.
Começava, por parte do governo, um longo processo de cooptação de lideranças,
desmantelamento dos movimentos, dos sindicatos e da mais importante central de
trabalhadores, a CUT. Os trabalhadores públicos ficaram isolados, acusados de
atrapalhar o processo de mudança que o governo de Lula queria impulsionar.
O tempo passou, a reforma foi aprovada,
o fundo de pensão foi criado e tudo aquilo que os sindicatos de trabalhadores
públicos haviam anunciado se fez. A história nos faz justiça. Ninguém queria
desestabilizar governo, muito menos atuar na linha da crítica praticada pela
velha direita. O que queríamos era mostrar que aquela reforma, assim como as
outras que vieram depois, não era boa para os trabalhadores e, por isso,
tínhamos de apontar seus defeitos e criticar suas proposições. Havia, como ainda
hoje há, muitos sindicalistas que se sentiam constrangidos em fazer a crítica,
em se colocar contra, pois não queriam ser colocados no mesmo balaio que velhos
inimigos. Mas, outros sabiam que não havia jeito: ou se defendia os
trabalhadores ou prestariam contas à história.
O
mensalão
É essa história que se descortina sob
nossos olhos nos dias em que o Supremo Tribunal Federal começou o julgamento dos
envolvidos no chamado mensalão, que surge da reforma da previdência. O dinheiro
das sobras de campanha do PT que foram parar nas contas de aliados e outros nem
tanto, servira para “sensibilizar” os deputados na votação da dita (ou mal-dita)
reforma da previdência. Isso já fora denunciado e era sabido que essa era uma
prática corrente no Congresso Nacional durante os governos anteriores. O que não
se esperava era que o PT também a colocasse na ordem do dia, afinal, essa
prática é o que conhecemos como corrupção. E aí, nesse universo, todos são
corruptos. Os que distribuíram o dinheiro e os que o aceitaram, afinal, um
deputado é eleito – como representante do povo – para atuar em consequência com
os interesses da população. Não deveriam ter de receber um “incentivo” a mais
para fazer sua obrigação já tão suntuosamente remunerada. Mas, é assim que
é.
A história do mensalão é toda recheada
de absurdos, como se fora um desses alucinantes folhetins da tarde nos canais de
TV. O detonador da denúncia foi nada mais, nada menos do que um dos corruptos: o
deputado Roberto Jeferson que, não satisfeito com seu quinhão, decidiu melar a
vida de todo mundo. Para a elite brasileira – que nunca realmente engoliu Lula,
apesar de o mesmo ter atuado, no mais das vezes, em consonância com seus desejos
- aquilo foi a cereja do bolo. Era o seu momento de colocar no chão aquele que
se alçava como o mais popular dos presidentes brasileiros contemporâneos. Ainda
que sem mexer com absolutamente nada da estrutura de poder da classe dominante,
Lula sempre foi uma pedra no sapato, por atuar, inclusive, na lógica do
assistencialismo visando permanecer - ou o seu grupo – no comando da política
brasileira. Aquilo aparecia como inaceitável aos poderosos. O escândalo do
mensalão foi o orgasmo tardio da elite brasileira. Agora, o PT já não poderia
mais se colocar como a vestal da moral e da ética. Estava conspurcado,
colocava-se no mesmo saco da farinha política
nacional.
Por conta disso, a cruzada moral
conduzida pelo STF no caso mensalão não poderia ter sido diferente. Haveria que
se condenar um a um dos envolvidos, com absoluto destaque aos petistas. Qualquer
pessoa que viva na política sabia que assim seria. Todos haveriam de ser
condenados por formação de quadrilha, por terem movimentado milhões de reais na
compra de consciências. Não estaria em questão o fato de que isso sempre fora
assim, que outros governos também tivessem usado do mesmo expediente, ano após
ano no Brasil. Também não estariam em foco outros escândalos de corrupção
graúda, como por exemplo as privatizações de FHC, que expropriaram a nação
brasileira em milhares de milhões. Ou ainda a agiotagem oficial praticada
cotidianamente pelo sistema financeiro junto aos cidadãos e cidadãs comuns, os
mesmos que se esganiçam gritando: “crucifiquem, crucifiquem” aos réus petistas.
O grupo de poder que sempre dominou o país tinha nas mãos a chance de derrotar,
não o PT, ou os inimigos pessoais, ou o próprio presidente Lula. Com isso, essa
gente poderia derrotar uma linda ideia que foi cultivada durante anos e anos no
processo conhecido como abertura democrática: a ética da esquerda nacional. Era
uma oportunidade de ouro e não seria
desperdiçada.
Nesse importante processo de descrédito
da “esquerda” (onde colocavam o PT) também não haveria de faltar a ação sempre
oportunista da chamada “grande mídia”, outra fatia da sociedade brasileira que
nunca conseguiu suportar a ideia de conviver com, ou festejar, figuras que até
bem pouco tempo abominavam . Assim, a cruzada moral do STF encontrou a aliada
perfeita e o mensalão foi se tornando notícia frequente, tanto mais frequente
quando mais se aproximavam as eleições de 2012. Com a derrocada do “santo do pau
oco” que era o PT e sua turma, os conservadores poderiam assomar novamente como
os guardiões da moral e da ética.
Mas, apesar de toda exposição e o
espetáculo diário das sessões do STF demonizando principalmente as lideranças
petistas, os resultados eleitorais foram pífios aos conservadores. O governo de
Dilma Roussef segue popular e com elevadíssima aprovação nacional. Lula recebe
prêmios pelo mundo afora e mesmo os condenados como José Dirceu, Genuíno e
outros seguem com suas vidas, apoiados pelos correligionários e militantes
petistas.
O rescaldo da
pataquada
De tudo o que houve, desde 2003 até
agora, o que significa dizer desde a reforma da previdência e todo o processo de
conformação de uma maioria disposta a sustentar os projetos governistas no
Congresso Nacional, o que fica, então, de resultado? É inegável que a exposição
de figuras importante do Partido dos Trabalhadores como corruptos de grande
monta consolida a proposta central da elite brasileira que era a de desmoralizar
a esquerda. E que fique claro que o PT desde há muito tempo não representa mais
uma força verdadeiramente de esquerda. Principalmente quando se fez governo e
atuou em consonância com o ideário neoliberal. Mas, para a maioria da população,
principalmente aquela que é informada basicamente pela televisão, o PT é sim
sinônimo de esquerda. É como esquerda que gente como Miriam Leitão, Arnaldo
Jabor, Reinaldo Azevedo, entre outros, tratam o PT. Então, a mácula está
consolidada. A esquerda também é corrupta. Nada se salva. Essa é a mensagem do
espetáculo do mensalão.
De nada adiante a defesa dos militantes
petistas a clamar pelas corrupções passadas de FHC, de Collor, de Sarney que, em
volume de dinheiro, são muito mais escabrosas que a do mensalão. Ao que parece,
corrupção é sinônimo dessa gente. Mas, não o era no caso do PT que sempre
denunciou as maracutaias desses velhos adversários. E aí, ao assumir o governo
esse partido teria de valer da máxima do comandante Che Guevara: “no governo, na
escola, em casa, com a namorada, em tudo, temos de ser perfeitos”. Não foi o que
aconteceu. Independentemente de muitos dos envolvidos terem um lindo passado de
luta, o fato é que participaram do esquema, ou fizeram vistas grossas, o que dá
na mesma. Isso é inegável. Por isso foram julgados e condenados. Assim como
seriam condenados FHC, Sarney e Collor caso a oposição, na época, tivesse tido
chance de levá-los a julgamento. Os fatos são os fatos e, se postos num
tribunal, não têm como ser contestados. O que passa é que a oposição nunca teve
poder e a corrupção dessa gente passou e passará
incólume.
Igual destino não foi possível ao PT,
os adversários tinham e têm o poder. Fato importante da conjuntura que deveria
ser melhor analisado pelas forças petistas. Ainda que o partido governe o país
desde 2003, o poder ainda está firme nas mãos da mesma velha
oligarquia/burguesia industrial que sempre comandou os destinos da
nação.
As lições do mensalão estão aí, às
claras, para serem digeridas. O PT embarcou na canoa furada da busca de uma
“governabilidade à força” e por cima. Não buscou se valer da governabilidade
real, que se conquista com as forças sociais organizadas, com os trabalhadores.
E tinha tudo para isso. Quando Lula chega ao poder tem uma força popular
gigantesca ao seu lado. Mas, em vez de forçar a mão para a esquerda, buscando
amparo nas gentes, o governo foi se rendendo às reformas neoliberais e políticas
assistenciais. Em vez de focar nas demandas populares, preferiu uma aliança com
a classe dominante. Perdeu. E os lobos, tão logo tiveram chance, abocanharam o
cordeiro. Outra lição para ser digerida. Pode até ser que a figura de Lula não
tenha sido abalada no processo, mas, no frigir dos ovos, o resultado do mensalão
acabou sendo bem ruim para uma força que nada tem a ver com ele: a esquerda
brasileira. Não bastasse vir sendo fragmentada e diminuída com a política de
cooptação implementada pelo petismo, ainda acabou sendo colocada no mesmo
patamar que os velhos e históricos corruptos nacionais. “É o fim dos partidos”,
“são todos iguais”, “vamos votar em pessoas não em projetos”... Esses são os
novos mantras da despolitização que já se fortaleceram nas últimas
eleições.
Mas, se num primeiro momento isso pode
parecer um grande estrago, também pode vir a ser uma mola de subida. Se
efetivamente a esquerda brasileira quiser, pode tirar boas lições desses
processos e avançar. Para isso, haveria que se dar um bom espaço ao estudo
sistemático desse período, para a autocrítica e para construção de novas liras e
novas canções. Há um longo caminho a percorrer para constituir outro tecido
político que venha disputar a vida nacional, uma coisa nova, bonita, capaz de
tornar real a “moral guevariana” de “ser perfeito”, verdadeiramente ético e
voltado aos interesses reais da nação brasileira. Tarefa árdua e difícil, mas
não impossível. E, nesse processo, os petistas históricos, os que participaram
do início daquele projeto, quando ainda havia proposta de socialismo, de caminho
pela esquerda, também deveriam ser capazes de olhar para toda essa história com
seriedade, autocrítica, realidade e optar por novos rumos. Afinal, na política
concreta, na vida real, a história avança e exige
mudanças.
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