Elaine Tavares
Ali estava eu, enfrentando meus
medos. Sozinha, sentada bem no meio do avião. Havia pedido um lugar no corredor,
por conta do temor. Uma coisa meio estúpida já que dento do avião, não faz
diferença. Ainda assim, me sinto mais segura. Mas, ao entrar, uma mulher, mais
nervosa do que eu, insistiu para trocar o lugar. Ela estava na janela, e suava.
Cedendo à opressão da bondade deixei a mulher ocupar meu lugar e lá fui para o
assento da janela. Foi a minha vez de começar a suar. O voo era de La Paz à
Santa Cruz de la Sierra, e seria a primeira vez que eu cruzaria a cordilheira
dos Andes num avião. Daí o medo. Sempre vêm à mente aquelas cenas de acidentes
nas montanhas e coisas assim.
Sem saída, enterrei a cara num livro
do Enrique Dussel que havia comprado em Sucre. As 20 teses sobre política.
Julguei que me distrairia com o debate, sempre original, do filósofo
argentino/mexicano e o tempo de voo passaria num átimo. E ali fiquei, entretida
na ideia de que o poder, se for obedencial, não é ruim nem corruptor. Genial
esse homem! Minha cabeça fervilhava em orgasmo intelectual.
Foi então que senti, do lado de fora do
avião, uma presença. Pelo canto do olho percebi que havia algo ali, naquelas
alturas. Meu corpo se retesou, os cabelos arrepiaram, todos. Uma espécie de gelo
me tomou inteira. Como poderia haver algo lá fora, naquela altura? Então,
lentamente, despreguei os olhos do livro de Dussel e enfrentei o pavor. Virei a
cabeça e me deparei com a visão mais incrível que já pude
presenciar.
Bem ao lado, quase sendo possível
tocá-la, se descortinava a espinha dorsal de Abya Yala: os Andes. Nunca pensei
que pudesse ser tão belo. Eu, que já havia caminhado por suas entranhas, nas
longas viagens de ônibus, não tinha noção do que seriam, vistos assim, do alto.
O avião passava tão perto, meio em paralelo. Da janela, podiam-se ver as neves
eternas e quase sentir sua textura. Aguçando a vista, dava para ver as trilhas
feitas pelos animais andinos - ou pelos homens - nos pontos mais baixos. Foi um
momento sagrado. Sem que eu pudesse conter, as lágrimas me foram caindo, numa
volúpia de emoção. Eu, guria nascida na planura missioneira do Rio Grande do
Sul, lugar de onde só se pode vislumbrar o infinito, agora provava daquela visão
andina, concreta, numa hora mágica.
Observei que o lugar onde eu estava
sentada era o centro do avião e percebi que aquela posição conformava também o
centro da “chacana”, a sagrada cruz andina dos povos originários. E que, agora,
dentro de mim, também se desenhava essa figura mítica das gentes do meu
continente. Nascida na planura, criada no cerrado mineiro, vivendo em frente ao
mar, agora provava da beleza dos Andes. O grande círculo dos quatro cantos
estava fechado. Ninguém mais pode ser o mesmo depois desta experiência. Ali se
conformava minha alma abyayálica. Ali se definia, agora com mais vigor, essa
decisão de assumir uma identidade autóctone, charrua que sou.
Os Andes, o mar do Brasil, as planuras
das “misiones”, o cerrado, tudo isso é a expressão da Pachamama, a grande mãe. A
visão majestosa das montanhas andinas tornou mais forte a certeza de que nesta
terra grande, nesta “nuestra” América, nesta Abya Yala, podemos ser algo mais do
que imitadores baratos de uma cultura imposta. Por todo o continente se levantam
as gentes originárias recuperando seus deuses, seus credos, suas formas
organizativas. Ensinam eles que, antes da conquista, aqui viviam homens e
mulheres que tinham outros modos de se relacionar com a terra, com a água, com
as matas, com as pessoas e os animais. Um outro jeito, nunca respeitado. E que
foi solapado, subsumido na dominação.
Mas, agora, aí estão, vivos, se
expressando, crescendo. Porque nunca morreram. Porque estavam latentes, ou
disfarçados, esperando a hora histórica, que chegou. E, assim como os Andes,
gigantes, magníficos, belos, os povos originários irrompem na vida social dos
países de toda Abya Yala dizendo, bem alto, a sua palavra, exigindo respeito às
suas culturas, línguas e modos de vida. Quéchuas, aymaras, guaranis, mapuches,
mocovís, charruas, kollas, kunas, caraíbas, pataxós, navajos,
tantos...
O grande sol, Inti, se derramando sobre
os Andes, bateu na brancura das neves eternas, Pachamama espreguiçou. O condor
bateu, forte, as asas, as llamas correram, brincalhonas, os cuys saltitaram
alegres. No céu, a pura paz. Nos caminhos, lá embaixo, os aymaras da Bolívia -
mais antigos que os incas - seguiam suas vidas, mais fortes que nunca. E eu,
hipnotizada, agora entendia o segredo já sussurrado pelos povo navajo: “Beleza
em cima, beleza em baixo, beleza pelos lados. A vida é um caminhar na beleza”. E
assim será, melhor, quando vencermos e superarmos o capitalismo predador. Esse
dia vai chegar, pela força das gentes!
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