Elaine Tavares
As mulheres falavam alto, porque,
afinal, o ônibus é espaço pedagógico. Discutiam a greve dos trabalhadores da
saúde que, em Santa Catarina, já passa dos 30 dias. No dia anterior
trabalhadores do transporte público e os bancários haviam feito uma paralisação
em apoio aos grevistas, provocando horas de filas e ansiedade, tendo o apoio de
estudantes, sindicalistas e militantes sociais. E, no dia seguinte, a imprensa
catarinense tocava o pau em todo mundo, alegando que o "pobre" governador
Raimundo Colombo, não tinha como dar o aumento "absurdo" que os trabalhadores
pediam. Não bastasse isso, ainda vinham os "baderneiros" dos motoristas e
cobradores fazer confusão.
O tema era esse. As mulheres discutiam
a eterna capacidade da imprensa de distorcer os fatos. Ao longo da greve, passa
para a população a ideia de que o "absurdo" é os trabalhadores quererem aumento,
e não o fato de um governo deixar a população sem atendimento de saúde
simplesmente porque não quer se render à luta. Algumas pessoas viravam o rosto
com um olhar fulminante até as mulheres, numa clara atitude de discordância.
Certamente acreditavam na imprensa e nas inverdades que cria.
Mas, no banco da frente, uma outra
mulher espiava com o rabo do olho, até que não se conteve. "As pessoas não sabem
o que a gente passa". Explicou que era trabalhadora da saúde, aposentada há
alguns anos. "O que faz os trabalhadores entrarem em greve agora é que foi
tirada do salário a hora-plantão, E é isso que dá alguma dignidade ao que a
gente ganha. Sem isso, o meu salário, por exemplo, fica 800 reais. Como é que
uma família vai se sustentar assim?".
Então, enquanto partilhavam o trajeto,
as mulheres foram ouvindo aquela cuidadora de gente. Ela contou que a maioria
dos trabalhadores da saúde é obrigada a ter dois e até três empregos para
garantir um salário digno. E que isso se reflete no trabalho. "Imagine a gente
passar duas, três noites sem dormir, nos plantões. Quanto erros não são
cometidos? O perigo que isso é? Não porque a gente seja incompetente, é o
cansaço. Fico pensando porque as pessoas não se indignam com isso. Amanhã ou
depois elas vão parar num hospital e vão ser cuidadas por nós, trabalhadores
esgotados, cansados, aturdidos. Isso sim deveria ser discutido".
A greve na saúde é de fato um
transtorno e uma fonte de dor. Os empobrecidos, que sofrem tanto no dia-a-dia,
sem médico, sem atendimento digno, sem acesso aos equipamentos modernos de
diagnósticos, sem opções de tratamento nas cidades do interior, submetidos a
ambulancioterapia, acabam enfrentando mais um obstáculo. Mas, se formos observar
bem, nada muito diferente do cotidiano, o qual só é vencido por conta desses
mesmos trabalhadores, alguns deles verdadeiros heróis, que conseguem tirar leite
de pedra.
O governador Raimundo Colombo, que não
precisa de atendimento público, prefere ignorar o grito dos trabalhadores. Faz
queda de braço e se mantém inflexível. A imprensa reproduz os argumentos dizendo
que o Estado não tem condições de dar a gratificação que substituiria a
hora-plantão. Observem que a reivindicação dos trabalhadores ainda é modesta:
apenas uma gratificação, que viria para substituir a hora-plantão, diminuída ou
retirada. Ainda assim, o governador manda corta salários, humilha, recebe com
gás de pimenta. Ora, não tem condições de dar a gratificação? Segundo dados do
governo, no Portal da Transparência, só em recursos próprios o estado arrecada
por mês 12 milhões para a saúde, gastando apenas 1,5 com pessoal. Do total do
orçamento anual a saúde representa 15% de gasto. Que tal então cortar os
comissionados que têm salários variando de 5 a 12 mil? Ou a publicidade, que
consome 110 milhões ao ano? Dinheiro o estado tem, o fato que não quer investir
na saúde. É, porque salário é investimento.
A questão é simples. Um trabalhador
como o da saúde, que atua diretamente na sustentação da vida, precisa estar bem
pago e bem descansado. O certo seria ter um único emprego, descansar o
suficiente para poder cuidar bem de si e dos outros. Mas, o que se vê é um
trabalhador desesperado, esgotado pelo excesso de trabalho, tendo de atuar com
uma estrutura sucateada, um sistema desmontado, equilibrando-se no milagre. É
esse o que cuida do doente, que pode ser o teu filho ou tua mãe. Aí está o ponto
que deveria ser discutido pela imprensa.
O ódio da população deveria voltar-se
para isso. Para o descaso com a saúde pública, com os trabalhadores, com a
estrutura dos postos e dos hospitais. Mas, a maioria das gentes prefere odiar o
trabalhador que luta. E mais, quando um trabalhador, esgotado pela exploração,
comete um erro que custa a vida de alguém, todos os holofotes se voltam contra
ele, apontado como o monstro, o assassino, o irresponsável. Lembram da
enfermeira que injetou café na veia de uma pessoa? Pois é. Essa é crucificada!
Não há nenhum dedo apontando para o Estado, para o governador, o prefeito ou
para o diretor do hospital. A culpa é sempre individual, e do mais
fraco.
O fato é que o desmonte da saúde é
responsabilidade de quem governa, de quem gere os recursos, de quem decide para
onde vai cada centavo. A negativa da gratificação aos trabalhadores é só uma
ponta do problema. Há que pagar os trabalhadores, garantir a sua dignidade, há
que garantir atendimento à população nos postos de saúde, nos hospitais, há que
modernizar a estrutura, garantir os melhores equipamentos. E as pessoas também
precisam se mobilizar para que isso aconteça de fato. Não basta choramingar. Há
que lutar. Mas, para isso seria necessária uma articulação estadual e nacional,
para além do sindical, que pudesse avançar para uma mudança radical do Estado
brasileiro. Esse é o desafio da esquerda nacional. Ser capaz de gestar no meio
das gentes o desejo de um mundo outro, que não esse, no qual os direitos
precisam ser diuturnamente lembrados, na esgrima com o poder. Resta saber se
isso é possível num país onde as lideranças sindicais e sociais estão - na
maioria - domesticadas e cooptadas.
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