segunda-feira, 2 de maio de 2011

Condições de Trabalho e dificuldades de atuação na Imprensa Sindical

Míriam Santini de Abreu (palestra feita no dia 28 de abril)

Agradeço o convite deste Sindicato (Sindprevs-SC), parceiro há muito tempo na luta por um jornalismo de qualidade, e tendo como colega, na mesa, um jornalista (Celso Vicenzi) que, como eu agora, também foi dirigente de Sindicato, no caso o Sindicato dos Jornalistas.

Desde que perdemos no STF a obrigatoriedade do diploma, nossa categoria, já fragilizada, se fragilizou ainda mais. A profissão agora se reconhece nos baixos salários, na precarização e na multifunção, ou seja, o jornalista faz de tudo, seu trabalho pode ser utilizado em diversos veículos e o salário, baixo, é um só. A situação é grave nas grandes redações em todo o país. Jornalistas chegam a trabalhar 12 horas por dia, cumprindo até oito pautas por dia. Isso tem conseqüências no jornalismo como atividade profissional e na saúde do trabalhador.

Neste quadro, vejo os Sindicatos como locais de trabalho privilegiados nos dois aspectos, qualidade no jornalismo praticado e na saúde dos profissionais. Mas mesmo neles há problemas.



Dificuldades:



Como são as relações de trabalho que os sindicalistas têm com seus funcionários? Allan Barbosa mapeou 133 sindicatos de trabalhadores da Região Metropolitana de Belo Horizonte, escolhendo os 30 mais representativos para traçar o perfil dos diretores. A pesquisa mostrou que o tratamento dos dirigentes em relação aos empregados do sindicato é bastante paternalista, prevalecendo sempre o informalismo, fazendo com que a gestão se torne pouco profissionalizada. Também há a tentativa de engajar os empregados na atividade política do sindicato: a postura dos dirigentes é de dificuldade no posicionamento “duplo” enquanto patrão e ao mesmo tempo “companheiro”. Isso acaba gerando atitudes e práticas que esbarram no paternalismo ou na inexistência de critérios de natureza técnica que regulamentem as atividades.



Nesse sentido, quero enfatizar dois aspectos que aparecem no nosso trabalho em sindicato.



1 – Adicional de militância e de lealdade

O funcionário de sindicato, como qualquer outro, vende a sua força de trabalho. Em sindicatos, porém, ocorre algo um pouco diferente: muitas vezes o trabalhador se envolve profundamente com a entidade, numa “identificação com a base” e com as suas lutas. Isso pode acontecer ou não. Quando acontece, é comum o funcionário carregar faixa e distribuir panfleto em manifestação. A luta do outro é a sua luta. O professor Herval Pina Ribeiro, médico do trabalho, diz que é ilusão sentir prazer no trabalho no mundo capitalista. Mas a situação dos empregados em sindicato é singular: eles muitas vezes sentem prazer em seu trabalho porque estão imbuídas da lógica de luta pela construção de um mundo mais justo. Por isso, quando enfrentam as contradições apontadas no estudo que mencionei, o golpe é profundo. Iludimo-nos com o que pensamos que o sindicato pode e deve ser, até encontrar, de forma às vezes cruel, o que é o sindicato às vezes é.

Como qualquer ser humano, o funcionário de sindicato, em sua relação de trabalho, também pode ou não desenvolver uma relação com algum dirigente que extrapole a profissional. Se estabelece uma relação de lealdade, de respeito e admiração mútuas, que não deixa de ser também profissional. Isso não é problema. O problema é quando a militância e a lealdade, apesar de não estaram no contracheque no final do mês, passam a ser cobradas, veladamente ou não.

Esse problema aparece com força em dois momentos: quando há mudanças na direção do sindicato, sempre um período de estresse na entidade, e quando há racha na direção. No primeiro caso, o empregado fica entre a cruz e a espada, como se diz. Se tomar posição em prol da chapa de situação, quando há mais de uma chapa, corre o risco de ser malvisto e até demitido se a outra vencer; se não tomar posição, corre os mesmos riscos em relação à chapa de situação, que espera dele uma atuação mais ativa; se tentar ficar neutro, a indiferença será vista como falta de compromisso e de lealdade.

Os grupos em conflito “disputam” a lealdade dos funcionários. Não importa o que façam, os trabalhadores sempre irão “cair na pontuação” de alguém. E se a demissão vier, nunca, mas nunca mesmo, será por motivos políticos. As razões apontadas serão geralmente “administrativas”.



2 – A LER na minha base dói; a do meu funcionário não

A falta da auto-crítica dos dirigentes sindicais se revela fortemente quando o assunto é violência moral no trabalho, ou assédio moral, e doenças do trabalho. Os sindicalistas costumam levar a sério esses problemas quando os afetados são trabalhadores da base que representam. Mas nem sempre levam isso a sério quando os afetados são funcionários do seu sindicato. Aí é “corpo mole”, “lerdeza”, “excesso de sensibilidade”. O mesmo dirigente que, numa assembléia, faz discurso contra o assédio moral, é capaz de humilhar, aos gritos ou com ironia, no mesmo dia, um trabalhador do sindicato. Pior do que isso só o silêncio que paira nas diretorias a respeito dessas práticas. Se protegem, os sindicalistas. Ou preferem, em nome da luta, minimizar esse tipo de fato para evitar desgastes considerados irrelevantes.

A pesquisadora Margarida Barreto diagnostica muito bem o resultado do assédio moral nas relações de trabalho, e as conclusões valem para os sindicatos: Na medida em que esses atos vão se dando, todos os colegas passam a ter medo de ser a próxima vítima, de ser humilhado, de perder o emprego ao defender um colega que está sendo humilhado. O ambiente de trabalho passa a ser dominado pelo medo do coletivo, que leva todos a fazerem o pacto do silêncio. Se antes esse ambiente era marcado pela amizade, esse calar significa que os laços fraternos já não existem, passam a ser fragmentados, rompidos, levando à degradação das relações de trabalho.

Um bom diagnóstico da situação é dado pelo Sindicato dos Trabalhadores em Entidades Sindicais de 1º e 2º Graus, Associações Profissionais e Centrais Sindicais de Florianópolis e Região Sul, o Sindes. Em entrevista com representantes da entidade apuramos que, dos anos 90 para cá, os problemas estão se intensificando nos sindicatos, especialmente o assédio moral. Num momento, o funcionário é “companheiro”; no outro, é cobrado para fazer horas extras e produzir mais, independentemente das condições de trabalho. Os jornalistas são fortemente atingidos nesses casos. Muitas vezes, ficam noite adentro fechando o boletim ou o jornal da entidade, no mesmo esquema das redações da mídia privada, só que em nome da militância e da lealdade, doadas ou sutilmente cobradas. Se adoecem, LER principalmente, ganham fama: gente que vive doente. Quando está bem e produz, é excelente; quando adoece, o tratamento começa a ficar diferente.

Quando há racha na direção, o jornalista vira uma espécie de “colchão” entre os grupos em disputa. As correntes lutam pela hegemonia do discurso nos meios de comunicação da entidade, e é comum que caiba ao jornalista a impossível missão de atender a todas, contemporizar a disputa, botar “panos quentes”. Se divulga um texto solicitado por um grupo, o outro pergunta de onde o texto surgiu, de que forma foi parar no jornal. Esse tipo de cobrança já virou até alvo de piada: a culpa é do “duende do computador”, um ser que habita as profundezas da CPU e, de lá, produz textos que caminham até a gráfica.

Há um aspecto que fica claro nessa realidade: a dificuldade de comunicação entre o dirigente-patrão e os funcionários, e a falta de transparência nas decisões. Muitas vezes, ocorrem mudanças administrativas que simplesmente não são formalmente comunicadas. O dirigente espera que os trabalhadores as descubram, e isso para não ter que comunicá-las e correr o risco de ser tachado do mau patrão. Assim, espera o resultado de uma mudança que deseja, mas não a comunicou ao funcionário.



Pontos positivos:



Mas há outros lados que quero enfatizar. Vejo hoje, nos sindicatos, um dos lugares privilegiados de produção de um jornalismo crítico, contextualizador, interpretativo. E para isso é preciso refletir sobre a relação com os dirigentes e com o nosso trabalho.

O que vou falar agora é resultado de auto-crítica e de conversas com colegas, e também do que observo no dia-a-dia de nossa atividade nos sindicatos. O fato é que, muitas vezes, por preguiça, acomodação, desinteresse, falta de compromisso, deixamos de aproveitar as brechas, às vezes bem largas, que poderíamos aproveitar. Sim, falamos muito das demandas da categoria que nosso sindicato representa, mas quantas vezes, tendo oportunidade, deixamos de fazer um trabalho mais abrangente, voltado para temas de interesse geral, reportagens, jornalismo crítico? Por que nos deixamos capturar, às vezes sem pressão de chefias, pelo modo de fazer jornalismo que hoje predomina nos grandes jornais?

Outro ponto: por que, sem refletir, também nos rendemos à multifunção? Penso que, sim, um jornalista deve se apropriar de tudo o que a tecnologia oferece para fazer seu trabalho, mas isso não significa que ele deva fazer tudo ao mesmo tempo, às vezes por um salário que não condiz com sua capacidade de trabalho. E aí a crítica que faço também é uma auto-crítica. Quantas vezes, tendo margem para negociar com os dirigentes, assumimos o trabalho de cinegrafistas e repórteres fotográficos, ou deixamos de entregar a um profissional a tarefa de mudar o projeto gráfico de informativos ou jornais? Isso só avilta ainda mais nossa profissão e nossos salários, além de fechar postos de trabalho.



Superação:



Quero citar aqui o trecho de uma entrevista de Deleuze, na qual ele fala sobre Poder e Potência:



"Não há potência má, o que é mau, há que se dizer, é o grau mais baixo da potência, e o grau mais baixo da potência é o Poder. O que é a maldade? É impedir que alguém faça o que pode, que efetue sua potência. De modo que não há potência má, há Poderes maus. Talvez por isto, todo Poder seja mau por natureza. A tristeza está ligada aos sacerdotes, aos tiranos, aos juízes, porque estes proíbem a potência de se expressar. Todo Poder é triste”.



Penso que isso vale para os sindicalistas e para os jornalistas em sindicato. Aleida Guevara, em recente palestra feita em Florianópolis, disse que a maior virtude de seu pai era a coerência entre o discurso e a prática. Essa coerência infelizmente não tem sido regra nos sindicatos e entre os sindicalistas. Exercem o Poder, mas a Potência, o ato de fazer, resultado do discurso, é deixado de lado. Uso aqui uma palavra que vem do latim, virilidade, vigor, energia. Uma virilidade que não associo ao ser homem, e sim a este vigor, a esta energia, e sinto falta disso em jornalistas de sindicato e também nos sindicalistas. É esta virilidade que permite algo cuja falta critico, a finalização das coisas. Ficam pela metade projetos, programas, propostas, que geraram belos discursos e não se tornaram concretos. E isso porque, muitas vezes, o Poder do Dirigente mata a Potência do Jornalista, e vice-versa!

Afirmo também que o dirigente deve, sim, se colocar na condição de patrão, porque tem o poder de demitir. Mas precisa ser um patrão melhor que o da iniciativa privada, ao qual faz a crítica. E o jornalista também precisa compreender que relações de lealdade muitas vezes têm um preço. Às vezes, um dirigente ao qual somos leais precisa se reportar a nós na condição de patrão, e há uma incompreensão nesse processo que pode afetar uma relação de trabalho que para nós é importante e produtiva. Há então que se ter vigilância, bom senso e delicadeza também nessas relações.

Para finalizar, volto ao tema da condição de trabalho. Há sindicatos e sindicalistas medíocres, e nesses sindicatos a luta para se fazer jornalismo de qualidade será grande. Mas há entidades onde temos abertura para um fazer diferente, um jornalismo crítico, com reportagem, com ... virilidade. E por que mesmo aí muitos não fazem? Eu falava sobre isso com meus alunos quando dei aula. Acho que há três caminhos: comprar a briga, sabendo que isso implica riscos; deixar para lá e pensar no salário, ou ir pelo caminho do meio, do médio. A opção de cada um reflete também o que cada um é, e não há aqui juízo de valor, apenas uma constatação. E um aluno um dia disse: - Bom, o caminho do meio é o mais seguro, e a gente se compromete um pouco mais. Respondi que sim. Mas disse que o caminho do meio também tem um preço: ele nunca dará ao jornalista aquela sensação única, que todo jornalista, diplomado ou não, sente quando faz um trabalho brilhante, do qual se orgulha, e que foi o resultado de uma compra de briga, de um bocado de estresse. O que posso dizer, depois de 11 anos em sindicatos, e fiz trabalhos em quatro, é o seguinte: às vezes a gente se envolve tanto no trabalho que acordar de manhã é uma alegria, porque há um mundo a mudar. Mas, talvez, de um dia para outro, isso se perca por uma série de possibilidades. Aí o golpe é grande e dolorido, golpe intenso que não sentem os que escolhem o caminho do meio. Mas aprendi uma coisa: jamais rever o envolvimento no passado com a alma dolorida por um golpe no presente. Porque o que me movia naquele passado era viril, e ponto. Se ninguém percebeu o quão importante a experiência foi para mim, o tanto que me dediquei, o fato é que, para mim, ela era importante e alvo da mais profunda dedicação. Ali exerci a minha Potência! E porque me permiti exercê-la.

Tive uma experiência recente onde pude exercer toda essa virilidade, toda essa Potência. Durou um mês e meio. Mas me alimentou de uma forma profunda, como há muito eu não experimentava, o amor por essa profissão que escolhi aos 12 anos e que exerço há 21 anos. E o alimento foi tanto que fico com esse estoque de Potência para inundar outras experiências. Por isso penso que eventos como esses são fundamentais para alimentar a nossa Potência no coletivo, para que, com ela, possamos fazer frente a situações em que os dirigentes querem apenas expressar seu Poder. E também para convencê-los de que todo Poder, se não for coerente na relação entre discurso e prática, é triste. Não condiz com o papel ainda fundamental que os Sindicatos têm na construção de um mundo justo, onde caibam todos e todas. Um Sindicato de gente viril.



Nenhum comentário: