sexta-feira, 14 de maio de 2010

A luta contra o aumento das passagens ou Por um Jornalismo selvagem

Míriam Santini de Abreu

Há certos prazeres que só os jornalistas compreendem. Um deles – e esse não é privilégio dos jornalistas – é sentir o cheiro desprendido por um impresso. Dia desses eu e Elaine almoçávamos no Verdinho, um restaurante no centro de Florianópolis, ela com uma braçada de exemplares da Pobres & Nojentas. Eu abri uma das revistas, encostei o papel no rosto e aspirei fundo, com um prazer quase sensual. Mais gratificante que o cheiro do papel e da tinta, só mesmo perceber que naquele papel, impresso com aquela tinta, está um texto produzido pela gente.
Outro prazer eu senti ontem. O prazer de enlaçar um acontecimento no instante mesmo de seu desenrolar. De ser ao mesmo tempo partícipe e testemunha do desenrolar do processo histórico.
Eu estava sentada na escadaria da Catedral. Havia saído do trabalho e não sabia em que ponto do centro da cidade estavam os manifestantes contra o aumento da tarifa do transporte coletivo. Esperava. Havia por ali uma agitação incomum: viaturas paradas, policiais, de repente um veículo militar pesado descendo a Arcipreste Paiva acompanhado de motocicletas e um carro da PM com as sirenes ligadas.
Uns minutos se passaram e ouvi um bramido, um frêmito ecoando entre os prédios. Sim, vinham para a Câmara de Vereadores! Corri até lá, subi a escadaria que dá acesso ao Plenário e vi, dali, o povo se aproximar, subindo a Anita Garibaldi. Que mundaréu!
Eu, sem equipamento para filmar ou fotografar, liguei para um colega para pedir socorro, mas ele ainda estava trabalhando e bem longe dali. À minha volta, os colegas jornalistas, os cinegrafistas, os repórteres fotográficos, com aquela expressão no rosto cujo significado a gente compreende e faz o sangue correr acelerado. Vai dar notícia! As câmeras se enfileiravam no parapeito da rampa da Câmara, filmando, fotografando o rugido do protesto, o tremular de uma bandeira, a fileira incontável de policiais que tentava conter a multidão.
Há uns dias li um texto sobre o fato de os fotógrafos esforçados estarem substituindo, no jornalismo, os fotógrafos talentosos. Isso me fez lembrar um trecho do livro de James Agee, “Elogiemos os homens ilustres”, que diz:
“É por isso que a câmera me parece, junto da consciência desassistida e desarmada, o instrumento central de nosso tempo; e é por isso que, por outro lado, sinto tamanha fúria diante de seu emprego equivocado: que espalhou uma corrupção do olhar quase tão próxima do universal que sei de menos de uma dúzia de pessoas vivas em cujos olhos posso confiar até mesmo na mesma parca medida em que confio nos meus”.
Isso foi publicado pela primeira vez em 1941! E é tão atual... Ontem, por estar impedida de capturar em imagens o fato que agitou Florianópolis, compreendi o significado da reflexão de Agee. Porque na noite de 13 de maio a Capital se levantou, os pés bateram com força ritmada no asfalto, as vozes, num acalorado jogral, gritaram para se fazer ouvir pelos politiquinhos que querem mandam na Ilha. A imprensa estava toda ali. E eu, eu só pude fazer um registro ordinário e imprestável com o celular. Uma verdadeira corrupção do olhar.
Da mesma reflexão tirei caldo para pensar sobre o texto jornalístico. Hoje vou comprar os jornais da Capital para ler o relato sobre o acontecimento desta quinta. Como o dirão? Lembrei-me de um dos grandes textos que li na revista Realidade, a narrativa de um dia de jogo entre o Atlético e o Cruzeiro em Belo Horizonte. Perfeita. O texto, peça lendária do auge da revista Realidade, consegue reconstruir o acontecimento de forma a evocar, no leitor, o mesmo frenesi provocado pelo encontro dos dois times e o significado dele na cidade mineira. A expectativa, o arrebatamento.
O gesto de contar algo não substitui o gesto de viver algo. Esse é o limite do trabalho do jornalista. Mas a narrativa, a fotografia, a imagem, tem que ser como o chamado do tambor, o chamado da selva, o chamado do selvagem. Há um filme, Jumanji, que evoca isso. Um estranho jogo de tabuleiro traz para o mundo real as criaturas e as circunstâncias da selva. Elas depois voltam para o lugar de onde foram libertadas, para alívio dos humanos. No final, porém, o artefato fica à espera, enterrado na praia, emitindo o seu chamado selvagem, o batuque ancestral a que o que há de mais ancestral em nós responde.
Lerei os jornais hoje. Terão, meus colegas jornalistas, repórteres fotográficos e cinegrafistas, interpretado o acontecimento desta quinta de forma a fazer da imagem, do texto, um artefato que evoque no leitor, no telespectador, o bramido, o fragor daquela luta popular, medida mesma da justeza de sua reivindicação?