segunda-feira, 26 de abril de 2010

Alma, acolha o pássaro

Por Míriam Santini de Abreu


Há poucos dias recordei de um filme que vi na adolescência, um filme de Natal. Contava a história de uma mulher que vivia em uma pequena cidade e era proprietária de um banco modesto. O negócio era cobiçado pelo senhor Potter, dono mesquinho de praticamente toda a cidade. No dia de Natal, o tio e sócio da mulher perde uma soma expressiva de dinheiro. Desesperada, confrontada com a possibilidade de prisão, desonra e perdas financeiras por parte de seus clientes, ela pensa em se suicidar e deseja jamais ter nascido.

Eu não me lembro do nome do filme ou dos atores, mas gravei o nome do senhor Potter, e desejei ver a história outra vez. Eis que, neste final de semana, procurei filmes clássicos na locadora e um chamou a minha atenção por causa do nome, “A felicidade não se compra”, de Frank Capra, um diretor de filmes adoráveis. E não é que descubro ter sido o filme que vi há muito tempo uma refilmagem deste? A diferença é que o protagonista é um homem, George Bailey, interpretado por James Stewart.

Bailey é um jovem de grandes projetos, mas por uma série de motivos sempre tem que adiá-los. E os motivos invariavelmente envolvem um aspecto da personalidade dele: ter princípios. O banco era a única porta aberta para os empobrecidos da cidade, e Bailey, para manter essa porta aberta, abre mão de oportunidades e vê a juventude passar enquanto o irmão e os amigos concretizam seus projetos. Há uma cena em que ele está na estação de trem para recepcionar o irmão e na qual pergunta ao tio: “Sabe quais são os três sons mais excitantes do mundo? O barulho de âncora, o motor de avião e o apito de trem”. Às vésperas de uma viagem cheia de aventuras, ele descobre que o irmão se casou e não vai assumir o negócio da família e então os planos de Bailey mais uma vez são adiados.

Quando o tio perde o dinheiro (surrupiado pelo senhor Potter), Bailey se desespera e, no momento em que está para decidir dar fim à vida, tem que salvar um homem que se afoga no rio. O homem é um anjo um tanto incompetente que, tendo mais uma chance para mostrar serviço, deve evitar o ato de Bailey. Se tiver sucesso, ganhará asas. O anjo dá ao homem o que ele pediu, e assim Bailey tem a possibilidade de ver como é o mundo (a pequena cidade) sem ele, porque ele não nasceu.

Fiquei a pensar sobre a imensidão de mundos para os quais cada um de nós também não nasceu, mundos que jamais serão tocados pela nossa existência. E também sobre os tantos mundos que a gente abandona porque atende ao chamado da âncora, do motor do avião, do apito de trem. E assim deixa para trás um vazio de presença, uma ausência, que vai se fazer presença em outro lugar. E esse vazio de presença, esse não-mais-ser nos mundos abandonados, é sentido claramente no corpo que passa-a-ser em outro lugar, mas ainda mais furiosamente na alma. O corpo bebe na reflexão e aos poucos se acomoda. Mas a alma às vezes insiste em ficar para trás; demora-se à espreita dos quereres perdidos, dos quereres sequer percebidos, sequer vividos; recorda-se do dia em que viu pólen dourado nos olhos do pássaro, e se esquece da noite em que naqueles olhos havia somente lágrimas; adormece cálida e frutuosa sob os terebintos, e amanhece estéril, caverna negra onde nada pousa nem procura abrigo. Não é confiável, a alma. É preciso convencê-la, ameaçá-la, suplicar até: - Avia-te! Um corpo te espera! Um outro mundo te requer!

Bailey, imerso na sensação de fracasso por tantas possibilidades de ser perdidas, conhece o não-ser radical, o não ter nascido. E percebe que sem sua vida, sua presença, o mundo é outro. O anjo ganha asas e ao final do filme deixa a ele um livro de presente com uma dedicatória: “Ninguém é um fracasso se tem amigos”. E a gente percebe que tantas vezes, nos tantos mundos pelos quais a nossa experiência de ser circula, é também pelo terno canto dos amigos que a alma se rende aos apelos do corpo. Volta. Mansa. Quieta. Mas então é na caverna iluminada pelo pólen dourado que o pássaro se aninha e refulge.

Por isso, uma frase que amo, de autoria que desconheço, é essa: “E sempre ouço às minhas costas a marcha do tempo que passa adiante”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Mi,que lindo!!!Vc escreve com a alma!!!

Anônimo disse...

opsss, o anônimo sou eu.srsrsr
Juss

elaine tavares disse...

mimi, ontem, por incrível que pareça vim no ônibus pensando neste filme.. e não tinha lido teu texto... maravilhosos.. eu também vi este filme quando adolescente e sempre me lembro dele quando tudo parece perder o sentido...
lindo texto..lindo...