sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Croniquintas/ O grande reino do Valinho

Imagem: Eduardo Schmitz

Texto: Míriam Santini de Abreu 

O filme Saneamento Básico (Brasil, 2007), que revi há uns dias, me traz lembranças antigas. Quando eu tinha uns sete anos, o pai e a mãe conseguiram, com sacrifício, dar entrada na moradia própria, construída num terreno de um beco que mais parecia um barranco. Mas o barranco, com o passar do tempo, foi “alisado”. O que incomodava era o bueiro que cortava a parte baixa do terreno, umas quatro casas depois da nossa. Nós, as crianças do beco, o chamávamos de “valinho”, e o valinho era parte do nosso grande reino. 

Eu soube que a ideia de contaminação aparece numa certa fase da infância. Para mim, demorou, porque não tínhamos medo das doenças que a água suja poderia provocar. Minha mãe, sim, e, para seu desespero, o valinho era lugar de brincadeiras. Ela ia até a janela nos inspecionar e via: lá estávamos, pulando de uma pedra para outra, naquela mistura de água de chuva com outras águas, menos idílicas. Mas, como era só água o que víamos, ali parecia passar apenas um córrego, cercado de grandes samambaias e urtigas, no fundo de um declive alto que dava ao cenário a aparência de um mundo perdido. 

A mãe não desconfiava da capacidade de nossa misteriosa imaginação. Da janela, ela gritava:
– Saiam desse vaaaalooo! Agora!

E, quando chegávamos em casa, ela puxava as nossas orelhas de um jeito especialmente dolorido, mas no dia seguinte, vestidos com nossos calções surrados e as Congas azuis, lá estávamos, novamente, no nosso reino das águas claras. 

Crescemos, então, e o valinho da infância virou o que era, um bueiro pernicioso. Os moradores do beco organizavam abaixo-assinado todo ano pedindo à prefeitura que fizesse a canalização. Uma parte a prefeitura fez, mas a outra, não. E como todo bueiro que se preze, o nosso ficava ainda pior no verão e quando chovia. Mas eis que um dia a mãe me liga para contar que, finalmente, o valinho foi todo canalizado. As águas agora correm sob concreto e terra, tudo porque, ali perto, será construído um conjunto de apartamentos. Eu comentei: – Mãe, é o fim de uma era! 

Às vezes, quando me dou ares de muita importância, um de meus irmãos comenta, sarcástico: 
– Baixa a bola, porque tu cresceu brincando num valinho! 

Eu dou um sorriso ambíguo. Gosto de pensar que, naquele tempo, a rua nos pertencia, e nós pertencíamos ao mundo.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Moacir Loth, repórter


O jornalista Moacir Loth é o 33º entrevistado do projeto Repórteres/SC. Nascido em Blumenau, ainda menino já ajudava a família na lida na roça e foi com a mãe o aprendizado da leitura. Na escola, tirava boas notas em redação e recorda que o primeiro livro lido era sobre regras gramaticais. 

Uma de suas saborosas histórias é a chegada, jovenzinho, ao Jornal de Santa Catarina, o Santa, no qual fez carreira de office boy a repórter e editor. Foi ali que ele protagonizou possivelmente uma das primeiras iniciativas no país de uma editoria dedicada exclusivamente ao meio ambiente. Em 1978 e 1979, havia duas páginas inteiras sobre o tema no Santa, publicadas nas edições de fim de semana com edição de Moacir com o então diretor da Acaprena no cargo da presidência, Nélcio Lindner. 

A vida a Florianópolis foi para ingressar no curso de Ciências Sociais na UFSC e, na capital, Moacir continuou a trajetória no Santa. O engajamento político-sindical custou-lhe três demissões e igual número de reintegrações na justiça. No currículo, passagens pelo jornalismo sindical e também no Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, onde foi diretor, integrante da Comissão de Ética e ainda diretor de base da Federação Nacional dos Jornalistas. 

O ingresso como servidor público na Universidade Federal de Santa Catarina, com passagem pela Agência de Comunicação e pela Editora da UFSC, marca uma nova fase da trajetória de Moacir, com reconhecimento pela Política Pública de Comunicação que orientava a produção do então impresso Jornal Universitário.  

Dono de um texto marcante, Moacir se destaca pelo fino humor, sempre presente, seja nas reportagens ou nos aforismos. 

Na entrevista, ele fala sobre as iniciativas editoriais e reportagens que marcaram sua carreira e avalia o jornalismo hoje em Santa Catarina. As imagens são de Rubens Lopes.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Croniquintas/ A boneca viajante

 


Texto: Elaine Tavares 

Nunca fui uma mulher de sorte. Da vida, tudo tive de arrancar. Sequer um bolo em quermesse eu ganhei. Isso, por vezes, me arrasa. Porque tudo bem não ter sorte, mas precisava tanto azar? Dia desses decidi dar um tempo das redes sociais. Só no trabalho. Daí que quando estou em casa, vou aos livros. E são muitos os que estão na lista de espera para serem lidos. Então resolvi dar passo a eles, emagrecendo a pilha.  

Vai daí que ando triste, tristíssima. Coisas da vida que não têm remédio e que precisamos enfrentar. Então, para enganar a tristeza pensei em começar a lista por um livro que ganhei recentemente do meu amigo Paulo Capela. É um texto do escritor espanhol Jordi Sierra i Fabra chamado “Kafka e a boneca viajante”. Livro pequeno, texto delicioso. É uma ficção sobre uma história envolvendo Kafka e uma garotinha que ele teria encontrado num parque, chorando porque perdeu a boneca. E Kafka decide inventar uma história de que ele era carteiro de boneca e trazia cartas da boneca que andava em viagem. Diz-se ser verdadeira a história, embora nunca tenham sido encontradas as tais cartas. 

Jordi decidiu dar vida a esse doce episódio da vida de Kafka, narrando os encontros entre a guriazinha e o escritor, que já andava no fim da vida, acometido de tuberculose. Pois não é que dei azar? 

O livro é um encanto, uma belezura sem fim. Uma narrativa delicada e emocionante. Descreve a angústia de Kafka tendo de inventar as aventuras de Brígida, a boneca, cada dia num país diferente, vivendo coisas incríveis e precisando preparar um fim para aquilo tudo. As cartas eram tão lindas que deixar de escrevê-las poderia fazer a menina ainda mais triste do que estava no começo. Um drama que vai se resolvendo da forma mais linda.  

O azar, no caso, foi ter pegado esse livro para ler em dias tão tristes. Não que o livro seja triste, não é. É bonito demais. E tão bonito, tão bonito, que no fim a gente fecha as páginas e se entrega ao pranto. Um pranto por belezura, por delicadezas, por bonitezas, por sensibilidade. Mas, enfim, um pranto. Chorei litros e, passados alguns dias, ainda estou aqui, chorando, ao lembrar. Tá, pra mim foi intenso. Pode não ser o mesmo para outro leitor. Mas, recomendo. 

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Moacir Loth no Repórteres/SC

O jornalista Moacir Loth é o 33º entrevistado do projeto Repórteres/SC. Nascido em Blumenau, lá iniciou a carreira no Jornal de Santa Catarina, o Santa, no qual também trabalhou em Florianópolis. Dono de um texto marcante, se destaca pelo fino humor, sempre presente, seja nas reportagens ou nos aforismos.   

Na entrevista, Moacir fala sobre sua experiência no jornalismo sindical e científico, a trajetória na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e as iniciativas editoriais e reportagens que marcaram sua carreira.  

O vídeo está em edição e será divulgado em breve com mais detalhes da trajetória de Moacir. As imagens são de Rubens Lopes.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Márcia Konder, escritora


 

Ela nasceu no Rio de Janeiro e passou sua infância em Ipanema, vizinha de Vinicius e Tom Jobim. A arte já entrava na vida por aí. Tempos depois veio para Florianópolis e aqui pode desfrutar da convivência com figuras como Franklin Cascaes e Aníbal Nunes Pires. Tímida, encontrou no teatro uma porta de entrada para novas sociabilidades.

Atuar e escrever passou a fazer parte do seu cotidiano. Seus poemas começaram a ganhar vida e são inúmeras as coletâneas das quais suas palavras fazem parte. Tem dois livros solo publicados. Incursionou também pelo cinema fazendo ponta em filmes de cineastas catarinenses até que estrelou o delicado e maravilhoso ˜Lurdinha, a vendedora de ilusões”, de César Cavalcanti. 

Incansável na busca de novas formas de expressão acabou encontrando na dança cigana mais um espaço de vivência. Hoje, segue ativa na arte, sendo uma das apresentadoras do programa “Avós na Tarde”, publicado no Youtube todas as semanas. Também é rainha do Baile Místico, uma proposta cultural que busca dar visibilidade à mitologia local.

Sua trajetória de vida e sua obra está retratada neste episódio radiante, como ela mesma, do "Conversas na Tiradentes". Com imagens de Tasso Cláudio Scherer.

 

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Croniquintas/ Quatro olhos, seis dedos




Por Míriam Santini de Abreu



Ultimamente estou a pensar no quanto as nossas particularidades definem quem somos. Eu nasci com um dedo a mais na mão direita e, aos sete anos, já tinha sete graus de miopia. Hoje são 22 graus em cada olho, mais uns seis de astigmatismo que o tipo de lente de contato que posso usar não corrige. Os dois fatos marcaram a minha infância.


Na escola, eu sempre era a menor da turma, com raras exceções. E estava sempre com o uniforme azul e branco da escola, as congas, um casaco de pelos na gola e nas mangas e o óculos tenebroso com lente de fundo de garrafa. Eu odiava o casaco, mas era o único que havia. Mas ele odiava ainda mais os óculos.


Papai e mamãe poderiam comprar a lente, mas não o aro. Então a mãe ia até o antigo INAMPS, onde havia aros doados, e trazia para casa o melhor que encontrava. Uma vez, ela apareceu com um modelo horrível, com os cantos puxados: – Óculos de gatinho, minha filha!


Ai, como eu sofria! Era vítima frequente do que hoje chamam de bullying, por causa dos “quatro olhos” e dos seis dedos, o sexto retirado ainda na infância, mas com cicatriz visível. E de nada adiantava chegar em casa e choramingar. A mãe, às voltas com a rotina, as costuras e os três filhos, respondia: – Resolve, minha filha! E eu resolvia. No tapa. Uma das brigas memoráveis foi no beco lá de casa. Eu e outra menina, depois e ainda hoje grande amiga, nos atracamos, rolamos no chão, pastas escolares voando no meio da refrega, o corpo e a roupa empoeirados, as duas aos berros. 


Há algum tempo vi o documentário “Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho. Como me identifiquei com os depoimentos! Um dos entrevistados dirige na cidade, e vê as luzes do jeito que eu vejo, bolas gigantes, coloridas e borradas. O escritor João Ubaldo revela que nunca teve problemas com seus óculos, a não ser quando alguma companheira de cama pedia que ele os tirasse na hora de fazer sexo: – Eu as achava degeneradas! – diz o escritor. Nudez de vista, nem pensar.


Um dos meus constrangimentos memoráveis aconteceu justamente no consultório de um velho oftalmologista lá de Caxias do Sul. Eu fazia aquele teste de tentar ler as letras e números dentro de um círculo de luz, mas não via absolutamente nada, por mais que ele aumentasse o tamanho dos caracteres. Suava frio!


– Mas então tu tá cega! – exclamou ele.


Eu, de tão nervosa, olhei para cima, e lá estavam as letras e números. Enormes. O problema foi que antes eu tentava enxergá-los no abajur, uma bola redonda em cima da mesa do consultório!


– Ai, doutor, começa de novo – eu pedi, sem coragem de revelar a verdade.


Outra característica do míope de alto grau é a visão microscópica de perto. Sem óculos ou lentes, a gente consegue ver os poros da pele, os pigmentos de tinta de uma letra em um papel, a veia mais sutil de uma folha. O mundo se revela em detalhes que a visão normal não consegue perceber.


Nossas particularidades. Tem um livro intitulado “Um Garoto Chamado Rorbeto”, escrito por Gabriel O Pensador, que fala de um menino que tem seis dedos na mão direita. Eu li, deliciada, a história, e fiquei com uma saudade do meu dedinho!