Por Míriam Santini de Abreu
Ultimamente estou a pensar no quanto as nossas particularidades definem quem somos. Eu nasci com um dedo a mais na mão direita e, aos sete anos, já tinha sete graus de miopia. Hoje são 22 graus em cada olho, mais uns seis de astigmatismo que o tipo de lente de contato que posso usar não corrige. Os dois fatos marcaram a minha infância.
Na escola, eu sempre era a menor da turma, com raras exceções. E estava sempre com o uniforme azul e branco da escola, as congas, um casaco de pelos na gola e nas mangas e o óculos tenebroso com lente de fundo de garrafa. Eu odiava o casaco, mas era o único que havia. Mas ele odiava ainda mais os óculos.
Papai e mamãe poderiam comprar a lente, mas não o aro. Então a mãe ia até o antigo INAMPS, onde havia aros doados, e trazia para casa o melhor que encontrava. Uma vez, ela apareceu com um modelo horrível, com os cantos puxados: – Óculos de gatinho, minha filha!
Ai, como eu sofria! Era vítima frequente do que hoje chamam de bullying, por causa dos “quatro olhos” e dos seis dedos, o sexto retirado ainda na infância, mas com cicatriz visível. E de nada adiantava chegar em casa e choramingar. A mãe, às voltas com a rotina, as costuras e os três filhos, respondia: – Resolve, minha filha! E eu resolvia. No tapa. Uma das brigas memoráveis foi no beco lá de casa. Eu e outra menina, depois e ainda hoje grande amiga, nos atracamos, rolamos no chão, pastas escolares voando no meio da refrega, o corpo e a roupa empoeirados, as duas aos berros.
Há algum tempo vi o documentário “Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho. Como me identifiquei com os depoimentos! Um dos entrevistados dirige na cidade, e vê as luzes do jeito que eu vejo, bolas gigantes, coloridas e borradas. O escritor João Ubaldo revela que nunca teve problemas com seus óculos, a não ser quando alguma companheira de cama pedia que ele os tirasse na hora de fazer sexo: – Eu as achava degeneradas! – diz o escritor. Nudez de vista, nem pensar.
Um dos meus constrangimentos memoráveis aconteceu justamente no consultório de um velho oftalmologista lá de Caxias do Sul. Eu fazia aquele teste de tentar ler as letras e números dentro de um círculo de luz, mas não via absolutamente nada, por mais que ele aumentasse o tamanho dos caracteres. Suava frio!
– Mas então tu tá cega! – exclamou ele.
Eu, de tão nervosa, olhei para cima, e lá estavam as letras e números. Enormes. O problema foi que antes eu tentava enxergá-los no abajur, uma bola redonda em cima da mesa do consultório!
– Ai, doutor, começa de novo – eu pedi, sem coragem de revelar a verdade.
Outra característica do míope de alto grau é a visão microscópica de perto. Sem óculos ou lentes, a gente consegue ver os poros da pele, os pigmentos de tinta de uma letra em um papel, a veia mais sutil de uma folha. O mundo se revela em detalhes que a visão normal não consegue perceber.
Nossas particularidades. Tem um livro intitulado “Um Garoto Chamado Rorbeto”, escrito por Gabriel O Pensador, que fala de um menino que tem seis dedos na mão direita. Eu li, deliciada, a história, e fiquei com uma saudade do meu dedinho!
