domingo, 30 de agosto de 2020

Sobre Wakanda e o socialismo

 Por Elaine Tavares

Chadwick Boseman é um ator negro que morreu aos 40 e poucos anos e causou uma grande comoção nos Estados Unidos. Ele interpretou um rei africano de uma terra imaginária, Wakanda, no cinema. Um filme sobre um reino negro, feito só com pessoas negras. Um marco nos Estados Unidos. Não vou entrar aqui no debate sobre a mensagem do filme, absolutamente liberal. Vou apenas perguntar: e poderia ser diferente? 

Sempre é importante lembrar que as ideias socialistas e comunistas foram varridas dos Estados Unidos na grande cruzada realizada pelo nefasto Joseph McCarthy entre os anos 1946 a 1958. Durante anos a fio qualquer pessoa com ideias mais à esquerda era denunciada e cassada. Acredita-se que mais de 10 mil pessoas perderam seus empregos e caíram no ostracismo social durante a chamada era McCarthy: professores, sindicalistas, artistas, escritores. Até o grande Charles Chaplin viveu na pele esse horror. 

Nas universidades se algum professor resolvesse incluir nas suas aulas de história a verdade sobre a Segunda Guerra ou algo sobre a Revolução Russa já era denunciado por alunos e imediatamente expulso. Se alguém numa empresa qualquer fizesse um abaixo-assinado para ter café para os trabalhadores também era apontado como comunista. E o comunismo passou a ser um inimigo a ser extirpado do país. Vale lembrar que muitas dessas pessoas que foram execradas não eram comunistas. Eram apenas pessoas que queriam lutar por direitos, mínimos às vezes. McCarthy promovia uma caça aos comunistas e a população apoiava fortemente, porque toda a mídia de massa divulgava a necessidade de combater o perigo vermelho.  

Foi uma campanha tão virulenta que o Partido Comunista dos Estados Unidos quase chegou a extinção, sobrando muito pouca gente identificada com essa proposta. E quando nos anos 1960 assomam as lutas pelos direitos civis, os direitos da população negra e contra a Guerra do Vietnam, as ideias que as movimentam são mais no campo liberal. Os Panteras Negras, que falavam de socialismo e apresentaram uma visão mais radical da luta contra o racismo, igualmente foram presos e execrados, sobrevivendo uma visão mais “palatável” da luta, com as ideias pacíficas de Luther King. Muitos avanços vieram a partir daí, ainda que cobrando alto em sangue e dor da população negra. Mas, tudo redução de danos, a considerar a realidade atual via massacre sistemático dos negros naquele país. O que dizer quando um negro desarmado leva sete tiros nas costas e um branco armado de fuzil mata e sai andando? 

Hoje, observando as figuras que representam as ideias mais progressistas nos Estados Unidos – de qualquer etnia - fica bastante claro que a visão vencedora – não apenas no campo da luta contra o racismo, mas também nas demais lutas por direitos – foi a visão liberal. Assim, o máximo que a turma consegue chegar é nas pautas que traduzem as lutas contra as desigualdades, o que significa que as desigualdades seguirão existindo, só que menos. Bom, isso não é suficiente. 

Essa é também a mensagem do filme Pantera Negra, do qual Chadwick Boseman foi protagonista. E, na indústria do cinema estadunidense isso já foi altamente transformador. Seria obviamente impensável que Hollywood colocasse na tela um filme só de negros, com uma mensagem revolucionária: ou seja, Wakanda saindo de seu isolamento para comandar uma revolução mundial, acabando de vez com as desigualdades e com a exploração. Não. Isso não sairia da cidade dos anjos. O que pode sair é o que saiu. Wakanda dando uma de Banco Mundial, FMI, Nações Unidas, financiando programas de redução da pobreza. Até aí, tudo bem.

Cá no meu cantinho eu entendo perfeitamente a comoção da população negra estadunidense com a morte daquele que representa um rei imemorial dos ancestrais. E sua história de luta contra a doença, mesmo durante as filmagens, o torna ainda mais heroico como ser humano e como homem negro tentando sobreviver na selva real. Ele certamente viverá na memória das crianças negras, que nunca tinham visto um rei negro no cinema. Levá-los a ultrapassar esse limite é a tarefa hercúlea dos partidos e dos movimentos revolucionários, que ainda são minúsculos nos Estados Unidos. 

Mas, por hoje, é isso que se pode ter. Não morreu apenas um ator negro, um bom ator a se considerar sua performance como James Brown, morreu alguém que representou, pela primeira vez em muito tempo, uma imagem positiva do negro estadunidense – ainda que camuflada em rei africano e limitada pela proposta liberal.  Chadwick representa um marco no cinema estadunidense e, na pele do rei de Wakanda, representa uma esperança para muitos meninos e meninas negras acostumados a ver seus iguais apenas em papel de empregados, drogados ou bandidos. Cruzar o muro do liberalismo é o próximo passo. 

A luta pelo socialismo/comunismo nos Estados Unidos é uma estrada que vem sendo reconstruída com muito vagar. Tanto que o Partido Comunista de lá passou décadas sem conseguir eleger sequer um vereador. Apenas no ano passado, o partido pode garantir um assento no legislativo da pequena cidade de Ashlan (oito mil habitantes), ao norte, no estado de Wisconsin, conhecido por ser o berço do chamado “progressismo” ainda no final do século XIX.


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