Retirada do letreiro do Ministério do Trabalho ocorreu no início de 2019 - Foto: Portal T5 |
Segunda (21) haverá Atos nas principais cidades em defesa da JT
Por Míriam Santini de Abreu
Em 1930, Gandhi e seus seguidores caminharam
400 quilômetros em 25 dias contra o domínio do Império Britânico na Índia. Ao
chegar ao litoral, Gandhi apanhou um punhado do sal, produto que os indianos
eram proibidos de extrair de seu próprio país. Um gesto simbólico contra a
opressão. Naquele mesmo ano, no Brasil, o então governo de Getúlio Vargas
criava o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio para fazer o estado gerir
a relação capital-trabalho. Passadas quase nove décadas, o governo do
presidente eleito Jair Bolsonaro abre 2019 com outro gesto simbólico: a
retirada do letreiro que indicava o prédio do Ministério, extinto e dividido em
outros três por uma Medida Provisória assinada no dia 1º de janeiro. E outra
possível extinção se avizinha: a da Justiça do Trabalho.
Na segunda-feira (21), haverá Atos Unificados
em Defesa da Justiça do Trabalho em todos os Estados. Em Florianópolis, a
atividade será às 13 horas, na frente do TRT-SC (rua Esteves Júnior, 395).
Participam a Associação dos Magistrados (Amatra), o Sindicato dos Trabalhadores
no Poder Judiciário Federal no Estado de Santa Catarina (SINTRAJUSC), a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Catarinense dos Advogados
Trabalhistas (ACAT), o Instituto dos Advogados de Santa Catarina (IASC), a Associação
dos Servidores na Justiça do Trabalho (AJUT) e a Associação Brasileira dos
Advogados Trabalhistas (ABRAT). Também estão confirmadas atividades em Chapecó,
Xanxerê, Imbituba e Itajaí. No dia 5 de fevereiro, haverá Ato Nacional
Unificado no auditório Nereu Ramos, da Câmara dos Deputados, a partir das 14
horas.
Ataques nos anos 1990
Não são de hoje os ataques à Justiça do
Trabalho. Em 1999, estavam no Congresso Nacional projetos de lei e Propostas de
Emenda Constitucional (PEC), entre elas a PEC 43/97, que dispunham sobre a
extinção da Justiça e do Ministério Público do Trabalho. Pela PEC 43, existiria
apenas uma lei regulamentando a conciliação e o julgamento dos dissídios
individuais e coletivos, que seriam remetidos à Justiça comum.
Passados 20 anos, a pauta voltou à tona.
Entidades de todo o país estão se manifestando em relação às falas do
presidente Jair Bolsonaro no SBT, em
entrevista concedida no dia 3 de janeiro. Nelas, ele afirmou que é preciso
“facilitar a vida de quem produz no Brasil” e que o objetivo é aprofundar mais
ainda a reforma da legislação trabalhista.
À pergunta sobre se a Justiça do Trabalho deveria “acabar”, ele criticou
o excesso de processos trabalhistas, afirmou que o Brasil teria mais ações “que
o mundo todo junto” e disse ainda que a ideia de extinguir a Justiça do
Trabalho estaria sendo estudada. Bolsonaro vai encontrar parlamentares
receptivos à proposta. Ainda em 2017, o presidente da Câmara dos Deputados,
Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao defender a mudança da legislação trabalhista,
reclamou do excesso de regras para a relação entre patrão e empregado e sugeriu
que a Justiça do Trabalho “não deveria nem existir”.
Além dos Atos já marcados, as entidades
envolvidas estão fazendo campanha virtual porque muitas mentiras e
desinformação estão circulando nas redes sociais sobre a Justiça do Trabalho. O
Coleprecor (Colégio de Presidentes e Corregedores dos Tribunais Regionais do
Trabalho) está à frente da campanha “8 Fake News sobre a Justiça do Trabalho”.
Uma das mentiras mais difundidas é que Justiça do Trabalho não existe em países
desenvolvidos. Mas Inglaterra, Nova Zelândia, Alemanha, Austrália e Suécia são
exemplos de países que têm tribunais especializados em Direito do Trabalho. Na
Alemanha, há uma Justiça do Trabalho com plena autonomia e um corpo próprio de
magistrados, do 1º grau ao tribunal superior, tal qual no Brasil.
Clichês e senso comum
Os discursos que atacam a Justiça do
Trabalho, especialmente na mídia e por parte de políticos, se baseiam em
clichês e no senso comum, sem dados concretos, e deixam de lado, por exemplo, o
fato de ela existir por previsão constitucional, não podendo simplesmente
“acabar”, como afirmam os grandes meios de comunicação. Mas é possível afirmar
que há formas mais sutis de “acabar” com a Justiça do Trabalho, minar sua
capacidade de atuação.
A juíza do trabalho Ângela Konrath, do Fórum
Trabalhista de Florianópolis, aponta, neste sentido, os cortes orçamentários
que essa justiça especializada vem sofrendo ao longo do tempo, a não renovação
do quadro de servidores, com a supressão de vagas dos que se aposentam, o aprofundamento
da terceirização de serviços como os de tecnologia da informação. A JT, afirma
ela, está atuando com metas quantitativas que aceleram o ritmo do trabalho, mas
necessariamente não alcançam o primor na qualidade das decisões.
Na realidade, diz Konrath, não é um ato que
extingue um ramo do poder ou um ministério. Isso é arquitetado gradativamente
até a chancela final, como ocorreu com o Ministério do Trabalho: “A extinção do
Ministério vem num desfecho de não aparelhamento deste órgão: sem concurso
desde 2013 e com déficit de 1.300 vagas para auditores, sem falar no número
absurdo de déficit de servidores”.
Nos últimos 20 anos, diz a juíza, a JT sempre
teve um papel importante nas relações entre capital e trabalho, seja numa
perspectiva progressista, de afirmação dos direitos sociais trabalhistas,
primando pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores, seja no sentido
conservador, de legitimar política e culturalmente a manutenção do sistema, do status quo de um modelo de gestão em que
o lucro de alguns vem da apropriação do resultado do trabalho de muitos e em
que predomina o velho jargão de que “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
Mas, avalia Konrath, a Emenda Constitucional
45, de 2004, trouxe alterações importantes que impactaram de forma positiva a
afirmação de direitos civis e políticos ao trabalhador inserido numa relação
básica de trabalho. Com a ampliação da competência da JT, temas antes
esquecidos começaram a despontar nos processos, como as questões atinentes à
vida privada e intimidade dos trabalhadores, as lides acidentárias na busca de
reparação de lesões sofridas no trabalho, as não discriminações. “Isso tudo
passou a fazer parte do cotidiano juslaboral, possibilitando que o trabalhador
acessasse ao Judiciário Trabalhista temas pertinentes à sua condição de pessoa
e não apenas restritos aos direitos sociais básicos como são jornada e férias”,
afirma a juíza.
Além disso, o reconhecimento jurídico da
substituição processual plena pelos Sindicatos viabilizou o acesso do
trabalhador à JT via “ação sem rosto”, ajuizada pelas entidades sindicais em
prol de toda a categoria. A jurisprudência da JT também conseguiu afirmar
alguns ícones, como a estabilidade da gestante, que relaciona os direitos do
nascituro com o trabalho da mulher. “Por ser uma Justiça em que o acesso era
indiscutivelmente facilitado pela gratuidade alcançada aos que não pudessem
arcar com os custos do processo, as causas traziam os temas suscitados pelos
trabalhadores, possibilitando a abertura de discussão sobre uma vasta temática
e, assim, corrigindo eventuais lesões, inclusive em sentido inibitório pela
coletivização das demandas”, afirma Konrath. Se as causas não chegam à JT, acrescenta
ela, não há chance de discuti-las e as relações ficam oprimidas, não são
arejadas pelo novo.
Isso mudou com a reforma trabalhista, que
afeta a Justiça do Trabalho, a fragiliza e prepara o cenário para os recentes
ataques. Konrath afirma que a reforma feriu de morte a estrutura dos direitos
sociais trabalhistas e implicou verdadeiro cerceio ao direito de ação ao impor
ao trabalhador o chamado ônus da sucumbência. Se validada esta alteração pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), o acesso à Justiça será impedido, pois quem sequer tem
dinheiro para as custas (2% do valor da causa) não poderá arcar com o ônus da
sucumbência (2% de custas + até 15% de honorários do advogado + honorários
periciais). “Considero esta a pior alteração, junto com a tarifação do dano
moral”, diz a juíza.
A servidora aposentada do Sintrajusc e
ex-coordenadora do Sintrajusc Denise Zavarize afirma que os ataques à JT
ocorrem em contexto de precarização e transformação das relações de trabalho, como
a reforma trabalhista e a adoção de novas tecnologias como o Uber. “O Uber é um
exemplo de como a pessoa pode ficar isolada, crer que não está na condição de
trabalhadora, e sim na de patrão de si própria, mas continuar sendo explorada”,
explica.
Ela avalia que a JT não é nem será
revolucionária, porque seu papel tem a ver com colocar “panos quentes” na luta
de classe. Ainda assim, no atual cenário, essa justiça especializada atua no
sentido de criar condições mínimas nas relações de trabalho, dar um freio na
exploração sem limites, abrindo possibilidades para as pessoas terem o
necessário para buscar outras perspectivas, se organizar, avançar na construção
de outro modo de viver e constituir relações.
Desinformação nas redes sociais
Entre as muitas informações distorcidas que circulam
nas redes sociais, aparece a afirmação de que a Justiça do Trabalho custa muito.
Segundo o relatório Justiça em Números
do CNJ, a JT custa cerca de R$ 88,00 por ano por habitante, menos da metade do
que custa a justiça comum, cuja extinção ninguém está propondo. “O valor é
significativamente baixo, sobretudo se considerarmos os direitos que são por
meio dela garantidos e o fato de que a Justiça do Trabalho arrecadou para os
cofres públicos quase três milhões e setecentos mil reais em 2017”, responde a
Associação Juízes para a Democracia (AJD), em dossiê feito para esclarecer a
população.
O dossiê mostra que a redução de direitos
trabalhistas e o impedimento de acesso dos trabalhadores à JT não beneficiou a
economia, não diminuiu o desemprego, ampliou a informalidade, majorou o
sofrimento no trabalho e o número de acidentes, provocando maior custo social,
e, com isso, reduziu a arrecadação tributária e previdenciária, ampliou o
déficit da Previdência e o déficit público em geral. O juiz Jorge Luiz Souto
Maior, em artigo sobre a possibilidade de extinção da JT, alerta que, mesmo inexistindo, por enquanto, uma proposta concreta
nesse sentido, não deve ter sido mera coincidência o aparecimento do tema logo
na primeira entrevista, em rede nacional aberta, do Presidente da República.
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