Por Elaine Tavares - jornalista
Ali estávamos os dois, frente a frente. Eu, arrasada. Ele, abatido, no caixão. Lembrei-me de uma de nossas últimas conversas quando ele dizia, naquele jeito atabalhoado e gritão: “a solidão é foda, Elaine Tavares”. E ele falava da solidão que a pessoa fica quando se decide a andar na contramão. Quando tudo aponta para que a criatura aceite as coisas, não esbraveje, não enxergue, não reivindique, não se indigne – e ela insiste em não fazer parte do cordão dos escravos de Jó. Aí ela fica sozinha. A pessoa assume o status de “leproso social”. Era como ele se sentia. “Abandonam a gente”. Alguma coisa assim como a imagem dada por um poeta, do qual não lembro o nome: numa terra de fugitivos, quem fica é que parece estar fugindo.
Amilton Alexandre, o Mosquito era assim. Ele podia ter fugido para o mundo farto dos que se rendem ao sistema. Mas não, ele preferiu ficar do lado das gentes, do lado da cidade, das maiorias. Pagou alto preço por isso. E era uma dessas pessoas que não passam incólumes. Espalhafatoso, agitado, resmungão, inconveniente, excessivo. Tudo isso, é certo! Mas também era meigo, generoso, brincalhão, quase um menino, como lembrou hoje a Raquel Wandelli. Nietszche o descreve. “O super-homem é criança”. Assim, o Mosquito.
A primeira vez que o vi, não gostei dele. Era carnaval e ele comandava a folia no seu mítico bar, o Havana, reduto da cultura e da política no Desterro. Falava aos berros, xingava, esculhambava todo mundo. Eu, outra insuportável, torci o nariz. Mas, minha amiga Rose Laurindo, que é a generosidade em pessoa me dizia: “Ele é gente boa”. Fui acreditando. O tempo passou e comecei a gostar daquele homem amalucado que sonhava com uma cidade cheia de cultura, de coisas boas, de gente de bem. Com o fim do bar, o Mosquito sumiu. Mas, vez ou outra, quando acontecia alguma coisa muito escabrosa na cidade ele ligava, ou gritava da janela de um ônibus: “Elaine Tavares, tem que falar sobre isso, sobre aquilo”. Muitas das minhas pautas nasceram daquele olhar insistente que ele lançava sobre a vida da cidade. Era um repórter, dos bons.
E essa era outra de suas broncas. Ele se acreditava jornalista e queria o registro. Tivemos algumas conversas sobre isso, já que eu defendia o diploma. Tentava mostrar para ele que a questão do fim da exigência do diploma era coisa dos patrões, para explorar mais e melhor os trabalhadores, mas ele não se conformava. E mandava todos os sindicalistas “tomar no c” ... A gente ria. E eu o confirmava, dizendo que ele era mais jornalista do que uma multidão de formados. Ele ficava feliz. Gostava de ser elogiado.
Então, com o advento da tecnologia, a internet, o blog, ele pode dar vazão àquilo tudo que só esbravejava pelas ruas, nos bares, no mercado. E o seu blog “Tijoladas do Mosquito” passou a pautar a vida e a política da cidade e do estado. Mosquito matava a cobra e mostrava o pau. Dizia as denúncias com todas as letras. “Ele era muito excessivo”, dizem alguns. Excessivo? Excessivos são os filhos de uma aberração que destroem a cidade, o estado, a natureza, as gentes. Excessivos são os empresários corruptos, os devastadores de praias, os que usam da justiça para proteger os ricos, os políticos ladrões. Esses são os “excessivos”, e Mosquito os nomeava, com nome, sobrenome e CPF, acompanhado de um monte de outros adjetivos de baixo calão. Tão baixo quanto os crimes que as figuras cometem. Ainda que freqüentem os salões.
Mosquito amava a cidade. Cuidava dela como uma mãe extremada vigia seus filhotes. Era comum encontrá-lo pelo terminal urbano, tarde da noite, com seu computador levantado, mostrando alguma barbaridade. Ou então pelas ruas da cidade, registrando as falcatruas e os abusos. Ele era o vigia da beleza, do bem viver. Queria que a cidade fosse para todos e não só para alguns e não poupava os vilões e os vendilhões. Por isso, acumulou processos. Dizia o que nenhum jornalista diplomado jamais disse. Mostrava os documentos, provava.
Nas últimas semanas estava arrasado. Sem trabalho, sem dinheiro, sem o
respeito dos seus colegas, ele se debatia em meio a uma série de ameaças de morte e de prisão. Não aceitava ser condenado numa ação do Marcondes de Mattos, por exemplo, que destruiu o Santinho para colocar lá um hotel cinco estrelas para usufruto só dos ricos. Na sua ingênua bondade, ele acreditava que a justiça não iria lhe dar esse golpe. Mas ela deu. Porque a justiça está quase sempre com os poderosos. Queria um emprego, o Mosquito. Mas não encontrava quem desse. Ele era um incômodo. Da sua boca poderia sair a vociferação contra qualquer um, desde que esse um fizesse alguma merda contra a cidade, contra as gentes.
Hoje, ali, na pequena capela, os amigos foram chegando. E das suas bocas saíram as palavras mais belas. “Guerreiro, lutador, generoso, criança, defensor da cidade, apaixonado por Florianópolis, carinhoso, amigo, implacável contra a injustiça”. Cada uma delas foi tecendo a fala do Padre Vilson, que montou um mosaico dessa criatura cheia de contradições, mas igualmente repleta de maravilhas. Um ser humano, de sombra e luz! E, inacreditavelmente, Mosquito permanecia quieto. Fiquei a imaginar se numa outra dimensão ele não estaria aos gritos, vociferando.
Mosquito foi embora numa tarde temporal. A velha Desterro se derretia em água e relâmpagos. Foi a “hora noa” (hora da agonia) do guerreiro jornalista. Não sabemos ainda se alguém o matou. Pode ser que ele tenha se desencantado tanto com as ações, as ameaças de morte, de prisão, o fim do blog, a falta de perspectiva de futuro e tenha decidido partir. Se foi assim, certamente seu gesto foi a definitiva banana para os seus inimigos. Ninguém iria se deliciar sobre seu despojo. O grande urso, o menino indignado, o valente boca-suja deixa a vida. Mas a vida não o deixará. Amilton Alexandre, o Mosquito, é história! Não só por ter vivido a novembrada, pelo Havana Bar, pelos seus gritos de aviso, mas pelo seu amor incondicional pela cidade, pela cultura, pela justiça. E, enquanto o corpo que o abrigava baixa ao chão eu já o imagino, vivo, articulando junto a São Pedro, alguma confusão no céu... Quem sabe um bar?... Ou um cinema? Talvez um carnaval...
Ali estávamos os dois, frente a frente. Eu, arrasada. Ele, abatido, no caixão. Lembrei-me de uma de nossas últimas conversas quando ele dizia, naquele jeito atabalhoado e gritão: “a solidão é foda, Elaine Tavares”. E ele falava da solidão que a pessoa fica quando se decide a andar na contramão. Quando tudo aponta para que a criatura aceite as coisas, não esbraveje, não enxergue, não reivindique, não se indigne – e ela insiste em não fazer parte do cordão dos escravos de Jó. Aí ela fica sozinha. A pessoa assume o status de “leproso social”. Era como ele se sentia. “Abandonam a gente”. Alguma coisa assim como a imagem dada por um poeta, do qual não lembro o nome: numa terra de fugitivos, quem fica é que parece estar fugindo.
Amilton Alexandre, o Mosquito era assim. Ele podia ter fugido para o mundo farto dos que se rendem ao sistema. Mas não, ele preferiu ficar do lado das gentes, do lado da cidade, das maiorias. Pagou alto preço por isso. E era uma dessas pessoas que não passam incólumes. Espalhafatoso, agitado, resmungão, inconveniente, excessivo. Tudo isso, é certo! Mas também era meigo, generoso, brincalhão, quase um menino, como lembrou hoje a Raquel Wandelli. Nietszche o descreve. “O super-homem é criança”. Assim, o Mosquito.
A primeira vez que o vi, não gostei dele. Era carnaval e ele comandava a folia no seu mítico bar, o Havana, reduto da cultura e da política no Desterro. Falava aos berros, xingava, esculhambava todo mundo. Eu, outra insuportável, torci o nariz. Mas, minha amiga Rose Laurindo, que é a generosidade em pessoa me dizia: “Ele é gente boa”. Fui acreditando. O tempo passou e comecei a gostar daquele homem amalucado que sonhava com uma cidade cheia de cultura, de coisas boas, de gente de bem. Com o fim do bar, o Mosquito sumiu. Mas, vez ou outra, quando acontecia alguma coisa muito escabrosa na cidade ele ligava, ou gritava da janela de um ônibus: “Elaine Tavares, tem que falar sobre isso, sobre aquilo”. Muitas das minhas pautas nasceram daquele olhar insistente que ele lançava sobre a vida da cidade. Era um repórter, dos bons.
E essa era outra de suas broncas. Ele se acreditava jornalista e queria o registro. Tivemos algumas conversas sobre isso, já que eu defendia o diploma. Tentava mostrar para ele que a questão do fim da exigência do diploma era coisa dos patrões, para explorar mais e melhor os trabalhadores, mas ele não se conformava. E mandava todos os sindicalistas “tomar no c” ... A gente ria. E eu o confirmava, dizendo que ele era mais jornalista do que uma multidão de formados. Ele ficava feliz. Gostava de ser elogiado.
Então, com o advento da tecnologia, a internet, o blog, ele pode dar vazão àquilo tudo que só esbravejava pelas ruas, nos bares, no mercado. E o seu blog “Tijoladas do Mosquito” passou a pautar a vida e a política da cidade e do estado. Mosquito matava a cobra e mostrava o pau. Dizia as denúncias com todas as letras. “Ele era muito excessivo”, dizem alguns. Excessivo? Excessivos são os filhos de uma aberração que destroem a cidade, o estado, a natureza, as gentes. Excessivos são os empresários corruptos, os devastadores de praias, os que usam da justiça para proteger os ricos, os políticos ladrões. Esses são os “excessivos”, e Mosquito os nomeava, com nome, sobrenome e CPF, acompanhado de um monte de outros adjetivos de baixo calão. Tão baixo quanto os crimes que as figuras cometem. Ainda que freqüentem os salões.
Mosquito amava a cidade. Cuidava dela como uma mãe extremada vigia seus filhotes. Era comum encontrá-lo pelo terminal urbano, tarde da noite, com seu computador levantado, mostrando alguma barbaridade. Ou então pelas ruas da cidade, registrando as falcatruas e os abusos. Ele era o vigia da beleza, do bem viver. Queria que a cidade fosse para todos e não só para alguns e não poupava os vilões e os vendilhões. Por isso, acumulou processos. Dizia o que nenhum jornalista diplomado jamais disse. Mostrava os documentos, provava.
Nas últimas semanas estava arrasado. Sem trabalho, sem dinheiro, sem o
respeito dos seus colegas, ele se debatia em meio a uma série de ameaças de morte e de prisão. Não aceitava ser condenado numa ação do Marcondes de Mattos, por exemplo, que destruiu o Santinho para colocar lá um hotel cinco estrelas para usufruto só dos ricos. Na sua ingênua bondade, ele acreditava que a justiça não iria lhe dar esse golpe. Mas ela deu. Porque a justiça está quase sempre com os poderosos. Queria um emprego, o Mosquito. Mas não encontrava quem desse. Ele era um incômodo. Da sua boca poderia sair a vociferação contra qualquer um, desde que esse um fizesse alguma merda contra a cidade, contra as gentes.
Hoje, ali, na pequena capela, os amigos foram chegando. E das suas bocas saíram as palavras mais belas. “Guerreiro, lutador, generoso, criança, defensor da cidade, apaixonado por Florianópolis, carinhoso, amigo, implacável contra a injustiça”. Cada uma delas foi tecendo a fala do Padre Vilson, que montou um mosaico dessa criatura cheia de contradições, mas igualmente repleta de maravilhas. Um ser humano, de sombra e luz! E, inacreditavelmente, Mosquito permanecia quieto. Fiquei a imaginar se numa outra dimensão ele não estaria aos gritos, vociferando.
Mosquito foi embora numa tarde temporal. A velha Desterro se derretia em água e relâmpagos. Foi a “hora noa” (hora da agonia) do guerreiro jornalista. Não sabemos ainda se alguém o matou. Pode ser que ele tenha se desencantado tanto com as ações, as ameaças de morte, de prisão, o fim do blog, a falta de perspectiva de futuro e tenha decidido partir. Se foi assim, certamente seu gesto foi a definitiva banana para os seus inimigos. Ninguém iria se deliciar sobre seu despojo. O grande urso, o menino indignado, o valente boca-suja deixa a vida. Mas a vida não o deixará. Amilton Alexandre, o Mosquito, é história! Não só por ter vivido a novembrada, pelo Havana Bar, pelos seus gritos de aviso, mas pelo seu amor incondicional pela cidade, pela cultura, pela justiça. E, enquanto o corpo que o abrigava baixa ao chão eu já o imagino, vivo, articulando junto a São Pedro, alguma confusão no céu... Quem sabe um bar?... Ou um cinema? Talvez um carnaval...
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