quinta-feira, 30 de maio de 2019

15 outonos de "Jornalismo nas margens"



Completam-se quinze anos de “Jornalismo nas margens: uma reflexão sobre comunicação em comunidades empobrecidas”, da jornalista Elaine Tavares. Era outono de 2004 quando ela lançou o livro, de 48 páginas.

E neste outono de 2019, precisamente amanhã (31), às 9h30, na Sala dos Conselhos do CSE da UFSC, Elaine defenderá sua tese em Serviço Social, sob a orientação da professora Beatriz Augusto de Paiva, com o título “Terra e território na América Latina: desafio indígena na era do capital”. São dois ciclos que se encontram.

O tempo vai passar e “Jornalismo nas Margens” será um clássico, trazendo um conceito inovador, o de jornalismo libertador. Ao longo de cinco capítulos do livro, Elaine reflete sobre o jornalismo não hegemônico, feito às margens, voltado para a grande parcela da população que está abandonada pelo poder público. Entre os autores citados despontam diferentes formas de nomear: folkcomunicação, comunicação alternativa, comunicação popular. Em todas elas a “comunidade” aparece como elemento que desencadeia essa forma de comunicar e, assim, a autora, ao pensar sobre o significado da palavra comunidade, traz uma reflexão fundamental: a imprensa comunitária não é produzida somente pela e para a comunidade. Ela também se faz com a comunidade.

Esse ponto de vista faz nascer o conceito que conduz os pensares dos outros quatro capítulos: jornalismo libertador. Para isso, Elaine busca raízes na Filosofia da Libertação, especialmente no que para ela contribuiu o filósofo argentino Enrique Dussel. A autora traz, para o jornalismo, uma forma de pensar o mundo a partir dos oprimidos, de narrar a vida a partir da consideração de cada ser como único, diferente, mas real. Entra em cena o papel do próprio sujeito-jornalista, que precisa refletir sobre o comprometimento com certas realidades que são negadas ou distorcidas pelo poder público e pela grande imprensa.

A autora discute esses aspectos no capítulo 3, no qual deixa claro que jornalismo é serviço público e nada tem de “neutro”. Segue pela vereda aberta por Adelmo Genro Filho e mostra que essa ótica libertadora não vale apenas para iniciativas feitas nas comunidades. Ela pode ser colocada em prática nos meios hegemônicos e chegar a um público maior e difuso, entre o qual possa despertar reflexões.
Outro aspecto levantado por Elaine é a necessidade de o jornalista olhar o mundo a partir do ponto de vista local. No capítulo 4, são desenvolvidos aspectos da notícia popular, que necessariamente precisa ligar os acontecimentos do lugar com o regional, o nacional, o mundial, e vice-versa, contextualizando e discutindo o significado dos fatos para a comunidade no qual eles repercutem, fazem sentir seus efeitos. No livro, a autora afirma que um dos pressupostos do jornalismo libertador é “(...) desvelar o cotidiano que cerca o viver daqueles que estão à margem” (p. 25).

No capítulo 5, a autora oferece caminhos para colocar a teoria em prática, discutindo as vantagens e as diferentes opções de veículos que podem ser usados nas comunidades. É certo que “Jornalismo nas margens”, ao dar corpo ao conceito de jornalismo libertador, inspira narrativas e jornalistas comprometidos, dispostos, como aponta Elaine, a “dizer o dizível e o indizível, ser capar de ver o que está além dos olhos, narrar, descrever, contar a história”, ajudar, enfim, a narrar e construir um tempo novo.


quarta-feira, 22 de maio de 2019

A cidade tem de ser para todos

Foto: Gabinete Vereador Lino Peres

Texto: Elaine Tavares

Quem em sã consciência gosta de pobreza? Ninguém. Cada ser humano no mundo só tem uma proposição: viver a vida em alegria, sendo amado e saciado. Ademais, a pobreza não é uma coisa natural, que acontece na vida por obra de deus ou do destino. Não. A pobreza é coisa construída historicamente. Ela acontece quando algumas pessoas, pelo uso da força, da mentira ou da persuasão, se apropriam da vida do outro, relegando-o a uma existência sem fartura. No caso da pobreza do nosso tempo, ela é fruto da forma como se organiza a vida no modo capitalista de produção. 

Nesse modo há uma pequena fatia que se adona dos meios de produção e uma grande maioria que vende sua força de trabalho como única saída para sobre/viver. O trabalhador, em verdade, não vive. Ele apenas mantém a cabeça fora da lama da miséria. E os que, por algum motivo não conseguem ou não querem vender sua força de trabalho estão fadados ao abandono ou à morte. 


Quando o capitalismo começou com suas grandes fábricas moendo gente, era tanta família saindo do campo, expulsa pelos pretensos donos da terra, que não havia como as fábricas absorverem tantas pessoas com empregos. Então, o povo que conseguia trabalho, era obrigado a aceitar as condições absurdas de 18 ou mais horas de labuta, parcos salários e casebres imundos para viver. E os que não conseguiam emprego, vagavam pelas ruas, causando constrangimento aos abastados. Foi por isso que criaram leis contra a “vagabundagem”, e essas leis tornavam legal, inclusive, a escravidão. Se fossem pegas vagando pela rua, sem trabalho, as pessoas eram presas e vendidas, quando não mortas. A pobreza dos desgarrados da terra era vista como uma doença, que precisava ser escondida dos olhos das “pessoas de bem”. 


Então, não é novidade esse nojo e horror que os pobres causam aos abastados. Desde o começo do capitalismo foi assim. Basta ler os textos do velho Marx, lá no “Capital”. 


Hoje, em Florianópolis, vivemos esse momento doloroso, no qual as vítimas do capital são tidas como uma doença contagiosa. Vivendo um crescendo vertiginoso no número de moradores em situação de rua, a capital do estado de Santa Catarina, conhecida como Ilha da Magia, busca punir aqueles e aquelas que, na verdade, só precisariam de uma chance para colocar a cabeça acima da linha da miséria. 


Com as “pessoas de bem” reclamando muito dessa multidão de desgraçados dormindo nas ruas, a solução encontrada pela prefeitura foi colocar tapumes nos lugares onde o povo da rua busca abrigo para dormir. E isso é feito bem agora, quando o inverno está vindo. No nosso provinciano jogo dos tronos, os reis da cidade decidiram que o povo da rua é feio demais, fede demais, atrapalha demais e como não para de se multiplicar, a solução é simples: impedir que vivam. Já que não podem ser presos por “vagabundagem”, então que se tire tudo deles, os pequenos abrigos, a possibilidade da comunhão, a sociabilidade. 


O terror do nosso tempo é ter de vir escrever um texto no qual o que se tem a dizer é que tirem os tapumes, para que as pessoas possam dormir embaixo das marquises. Isso é, deveras, inaceitável. Pessoas há, é verdade, que vivem na rua por querer. São poucas. No geral, os que estão em situação de rua são pessoas quebradas psicologicamente, abandonadas, sem chances de trabalho, alguns dependentes químicos (que é uma condição de falta de saúde). E são consequência desse sistema que explora e mantém a pessoa no limite da vida. A rua é sua casa porque ainda que, desprovidos de tudo, eles querem viver. Querem desfrutar do jardim que deveria ser a vida. Querem a alegria e a felicidade. 


Impedidos de dormir nas marquises da Deodoro, os moradores em situação de rua se mobilizaram, porque afinal de contas também são pessoas com direito à cidade, e foram reivindicar junto à prefeitura. A ação dos moradores, juntamente com representantes de outros movimentos sociais e vereadores, exigiu da prefeitura um espaço digno para que as pessoas possam se abrigar. Hoje, os espaços que têm são poucos e cheios de regras que muito pouco podem ser cumpridas.


A batalha segue sendo travada. Os moradores da cidade, que têm casa para morar, olham os moradores de rua com intolerância. “Eles que vão trabalhar, deem duro como eu dou”, diz uma mulher no ônibus, enquanto vai apontando as dezenas de pessoas deitadas embaixo das árvores. Não há compaixão. E não há compaixão porque não há entendimento. Mergulhados na sua própria luta para não morrer, até mesmo os trabalhadores, que deveriam ser solidários, apoiam as ações higienistas. “Aquela rua lá (a Deodoro) é um fedor só. Tá certo”.


A Deodoro fede sim. Fede a gente que não conseguiu se inserir no “mercado”, fede a pobreza. Uma pobreza que é fruto da nossa própria incapacidade de construir uma sociedade justa. A saída é “limpar”, tirar o problema do caminho. Esconder. Deixar o centro saneado para os compradores de mercadorias. Não há espaço para a empatia. São os tempos do capital.


A triste notícia é que num modelo de sociedade que gera pobreza, é impossível escondê-la, domá-la, impedi-la. Enquanto a máquina do capital moi uma parte do povo, outra parte vive à margem. E luta. Porque também quer compartilhar do banquete. 


Em Florianópolis, o povo da rua não se cala, se junta e reivindica. A vida boa e bonita tem de ser para todos.


domingo, 19 de maio de 2019

Notícias do Dia, porta-voz da perversidade


Por Míriam Santini de Abreu, jornalista

O cotidiano brasileiro tem mostrado o ódio que os grupos dominantes têm das ocupações. De todas elas. Se universidades, escolas, Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas, praças, ruas ficarem às moscas, usufruídas apenas pelos poucos à frente do poder instituído, a vida segue na normalidade anormal do país. Mas ai de quem ousa ocupar em plenitude o espaço público, as instituições públicas, a rua. Florianópolis dá mostras disso com frequência. E ninguém expressa mais o ódio por isso gerado que o jornal Notícias do Dia, o ND, a usina ideológica mais azeitada dos grupos dominantes de Florianópolis.

No capítulo 6 do livro “O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo”, Adelmo Genro Filho afirma que os grandes jornais burgueses, em períodos de relativa estabilidade política, não são abertamente propagandísticos ou formalmente opinativos. Eles se referenciam no jornalismo informativo moderno. Mas, no período atual, não se fareja nada que aponte qualquer forma de estabilidade, muito menos a política. E aí a imprensa assume seu lado, tanto no espaço da informação – em que deveria reinar a “pluralidade de ideias” (como afirma o ND no editorial da edição de comemoração de seus 13 anos, em 13 de março último) – quanto no de opinião, como o editorial e as colunas.

Um recente exemplo foi a cobertura das grandes manifestações de 15 de maio em defesa da educação e contra a reforma da Previdência, reunindo cerca de 35 mil pessoas nas ruas de Florianópolis. A magra notícia do ND resumiu-se a afirmações sobre o trânsito “complicado” – como se não o fosse nos dias sem manifestação – e nas declarações risíveis de Jair Bolsonaro proferidas nos Estados Unidos. O editorial naquele dia seguiu na mesma previsível linha.

Ideologia e mentira

O papel a que se presta o ND, de porta-voz da perversidade, têm aspectos menos previsíveis, e eles aparecem em uma forma específica de ocupação, aquela por moradia. Um marco disso foi a Ocupação Amarildo de Souza, alvo da cobertura jornalística dos veículos da capital entre dezembro de 2013 e julho de 2014. Talvez em nenhuma outra ocasião na história recente da imprensa da capital tenha havido um fato gerador de tantas notícias, editoriais, colunas e comentários virulentos quanto aquele. Foram 27 edições em que o assunto esteve na capa ou na contracapa do ND. Parte da explicação para isso é a localização inicial da ocupação, na SC-401, a caminho das mais badaladas praias da Ilha.

Naquela cobertura, funcionaram todos os mecanismos da ideologia: a inversão de fatos, a sua naturalização, a ocultação do que não convinha ao expô-los e a apresentação de interesses particulares como se fossem universais. E apareceu mais: a mentira. O próprio ND, à época, divulgou que o terreno ocupado pelas famílias, ao contrário do que inicialmente fora publicizado, não era particular, e sim público em sua quase totalidade. Mas, na já citada edição comemorativa de 13 anos do jornal, em 13 de março último, o ND, ao mencionar as ocupações como um dos maiores problemas de Florianópolis, afirmou, junto ao título “Invasão ilegal e prejudicial”: “Com exclusividade, ND revelou e depois combateu a ocupação oportunista de área particular no Norte da Ilha”. Não se trata de ideologia ou manipulação dos fatos, e sim de mentira.

A escalada do jornal contra as ocupações – chamadas por ele de invasões – recrudesceu em 2018, em especial em junho. Entre os dias 5 e 30 daquele mês, o assunto apareceu em 8 edições, sempre com chamada da capa – uma delas em manchete – e três editoriais. O alvo, desta vez, foi a Ocupação Marielle Franco, no alto da Caieira (Maciço do Morro da Cruz), parte dela em área particular, parte em área pública, em uma Zona Especial de Interesse Social. As chamadas ZEIS são destinadas justamente para a construção de moradias para famílias de baixa renda, mas a Prefeitura de Florianópolis até hoje não conseguiu viabilizar nem um só empreendimento do programa Minha Casa Minha Vida na Ilha para a chamada faixa 1, a de menor renda.

Em 2019, a escalada virou uma cruzada. Ela começou na edição de 13 de março e se consolidou na de 23/24 de março, dedicada ao aniversário de Florianópolis. Com o jornal, o ND distribuiu a tradicional revista FloripaÉ e um produto novo, o Dossiê ND (na foto), dedicado às “bandeiras em defesa das causas de Florianópolis”, assim listadas: Invasões / Mobilidade / Presídio / Turismo / Comcap / Cidade Limpa / Ponta do Coral / Marina. As denominadas invasões pelo ND mereceram seis páginas do dossiê.



Na edição de 27 de março, o ND abriu uma série de reportagens – dos dias 27 a 29 - sobre as chamadas invasões irregulares “e as soluções para que Florianópolis não vire um novo Rio de Janeiro”.

Cruzada contra ocupações

A referência a uma cruzada do jornal contra as ocupações não é aleatória. No editorial da edição de 17 de maio – depois de mais uma série de matérias sobre o tema –, aparece o seguinte trecho: “Aos moldes da força-tarefa que resolveu o problema de boa parte dos imóveis abandonados na Capital, o grupo formado para atuar contra as invasões e ocupações ilegais de terrenos públicos e particulares é um passo importante nessa verdadeira cruzada de Florianópolis contra a favelização e domínio do crime organizado”.

Outro trecho afirma que os “invasores” “abrem uma chaga na cidade”: “Estamos a um passo de perder o controle dessas áreas e à mercê de verdadeiras tragédias sempre que o volume de chuva é um pouco maior, já que a cobertura verde dos morros está dando espaço às casas que surgem por lá do dia para a noite”.

A força-tarefa a que o editorial se refere tem a ver com a notícia publicada na mesma edição, sobre a iniciativa do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) de instaurar inquérito civil e buscar soluções contra as ocupações. Esse é o aspecto menos previsível da previsível cobertura ideológica do ND: o jornal – acompanhado por todos os demais veículos do grupo RIC, impele a tomada de providências, mas os convidados a protagonizá-la têm endereço certo. Quem foi convidado para a primeira reunião da força-tarefa do MPSC? A prefeitura e os empresários.

A notícia de 17 de maio não registra todos os nomes e entidades dos participantes daquela primeira reunião, mas menciona três: a organização FloripAmanhã e o Conselho de Segurança do Centro. E informa ainda que para a próxima, no final de maio, serão convidadas secretarias municipais, a organização FloripAmanhã, o movimento Floripa Sustentável e a Câmara de Dirigentes Lojistas. Os três últimos representam todos os setores do empresariado de Florianópolis.

No dia 15 de abril de 2019, o movimento Floripa Sustentável apresentou um manifesto, divulgado pelo jornal e intitulado “Manifesto em favor de Florianópolis”, “(...) para levantar a discussão em torno da inclusão social como eixo de desenvolvimento da cidade” tendo como lema “Prosperidade com Inclusão Social”. O manifesto afirma que o Movimento tem quatro pilares: o desenvolvimento econômico, a inclusão social, a preservação ambiental e o planejamento urbano. Cabe destacar quais seriam as ações consideradas urgentes sugeridas pelo movimento Floripa Sustentável para a cidade e extraídas do manifesto:

*Alterar o plano diretor para elevar o gabarito atual de 4 andares vigente na Ilha, com exceção do Centro, para 10 ou mais andares, de acordo com as características de cada região
*Construção de 4 mil residências por ano, não excluindo aquela parcela da população que se afavela nos morros, nas restingas, nos mangues e nas dunas, num processo que à jusante, aparece a criminalidade, o tráfico de drogas e a insegurança em toda a cidade
*Criação de centralidade (bairros que podem viver quase por conta própria para aliviar o trânsito entre as regiões e o Centro).
*Disciplinar a entrada de imigrantes sem condições.
*Multiplicar as iniciativas visando motivar crianças e adolescentes moradoras em áreas precárias para o esporte, as música, o artesanato, etc.
*Multiplicar as ações sociais nas favelas

No manifesto, as ações sociais nas favelas não são explicitadas, nem esclarecida a fonte de recursos para a construção de 4 mil residências por ano. Apesar de a inclusão social ser tomada como eixo de desenvolvimento da cidade, do ponto de vista dos impactos no espaço urbano o que interessa são os demais itens: construir prédios com mais andares no centro, criar centralidades nos bairros, acessíveis a quem pode pagar muito para morar nos melhores localizados e, sobretudo, disciplinar a entrada de imigrantes sem condições.

Será, portanto, nestas bases a contribuição do empresariado – aparentemente, até agora, a contribuição majoritária – para a força-tarefa do Ministério Público de Santa Catarina. Isso em um contexto no qual a cidade irregular alcança quase 85% do território da Ilha, inclusive a porção mínima e precariamente urbanizada. A população de estratos sociais de 0 a 3 salários mínimos perfaz quase 40% da população e não chega a representar 15% do território ocupado irregularmente. O restante é de outros estratos sociais e, principalmente, dos setores imobiliários especulativos, que têm objetivos claros de obtenção de renda e não de uso habitacional familiar. A moradia é condição mínima para uma vida digna em um cenário no qual estão sendo destruídos todos os avanços alcançados desde a Constituição Federal de 1988.

Natureza como álibi

O frequente receio do ND de que Florianópolis vire o Rio de Janeiro é por demais conveniente. Para compreender isso, há que ler o artigo de Rose Compans intitulado “A cidade contra a favela”, no qual a autora mostra a apropriação do discurso da preservação ambiental para a retomada da discussão sobre remoções de favelas no Rio de Janeiro, medida rechaçada no processo de redemocratização do país.

Cita-se um trecho do resumo do artigo: “Depois da favela como foco de epidemias e antro de marginais, a mais nova representação social que vem sendo construída apresenta-a como fator de degradação ambiental. Auxiliada pelo saber técnico-científico que demonstra empiricamente os danos ao meio ambiente causados pelas ocupações irregulares, observa-se a constituição de um movimento conservador que busca pressionar os poderes públicos a reprimi-las, sobretudo nas áreas mais valorizadas da cidade”. Subjacente a essa representação da favela como elemento de degradação ambiental, mostra o artigo, está o pressuposto de que o pobre desmata e o rico preserva.

A autora analisa a campanha promovida, em 2005, pelo jornal O Globo, intitulada “Ilegal. E daí?”, que teve como consequência uma ação movida pelo Ministério Público Estadual solicitando à Prefeitura a remoção de 13 áreas favelizadas. Ou seja, aqui como lá, o jornal começa a “cruzada”, omite a opinião de quem olha os fatos por outro prisma e toma o objetivo – terminar com as ocupações – como de interesse de toda a cidade, seja da forma que for. Do mesmo modo, legitima tal interesse pelo combate ao crime organizado, mote frequente do ND, e para evitar danos ao meio ambiente e tragédias por deslizamento em áreas de risco.

Não há, porém, levantamentos atualizados sobre onde são exatamente essas áreas, se coincidem com as das ocupações que o jornal combate e o risco efetivo para os moradores. A preocupação com danos ao meio ambiente não pode ser levada a sério vinda do ND, que sempre se posicionou a favor dos interesses do empresariado e considera tais preocupações um “entrave”, como mostrou em série divulgada em 2015 e na recente posição a favor da manutenção dos beach clubs. Do ponto de vista do empresariado, ainda menos. Empreendimentos como o Costão Golf, por exemplo, da mesma propriedade do badalado Costão do Santinho, provocaram mudanças oportunistas de legislação para saírem do papel. Mais: o Costão Golf ganhou uma lei só para ele, a Lei Complementar 133/2003, que permitia até mesmo a instalação de um teleférico de integração do Costão Golf Club ao Costão do Santinho sobre as dunas dos Ingleses e Santinho.

À parte o que a ideologia do ND encobre, está o fato motivador, reluzente, cristalino, desta cruzada contra as ocupações: proteger a propriedade privada e tomar para uso privado o que, na Ilha, ainda é público. Isso é dito pelo próprio jornal, no editorial da edição de 9 de maio: “A pressão da sociedade precisa ser permanente, até que a propriedade privada seja respeitada e a urbanização da cidade seja plena, evitando que áreas de interesse social ou preservação permanente sejam ocupadas irregularmente”. O jornal ignora até mesmo um pequeníssimo avanço sob o capitalismo, a função social da propriedade e da cidade previstas na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade, de 2001.

Sim. É disso que se trata. Mesmo nas áreas de interesse social, será o empresariado a ditar o que é ou não regular. O poder público – como historicamente ocorre na Ilha – irá direcionar os investimentos públicos em áreas e em obras decididas pelos grupos dominantes, processo amplamente mostrada no livro da professora e pesquisadora Maria Inês Sugai intitulado “Segregação silenciosa: investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis” (Editora da UFSC, 2015).

A charge abaixo, também na edição de 17 de maio, foi publicada à guisa de elogio à força-tarefa do MPSC. Mas ela expressa, perversamente, a relação de força entre seres humanos transformados em coisas. Dentro da retroescavadeira – com seu olho de ódio –, a força-tarefa dos grupos dominantes da cidade e seu discurso de defesa da natureza e da inclusão social; dentro do casebre minúsculo, em fuga, as pessoas que podem ser jogadas na rua pela incapacidade de pagar – e bem – para morar na Ilha da Magia. A charge evoca casas marcadas para desaparecer e lembra a atuação da Polícia Militar em uma ação violenta na Ocupação Marielle Franco, quando, em meio ao terror dos moradores, algumas casas foram marcadas com a letra “D”.



A essa perversidade de que o ND é porta-voz, movida pelo ódio, há que se contrapor outro ódio, do tipo tão bem descrito pelo poeta Cruz e Sousa em seu poema “Ódio Sagrado”:

Ó meu ódio, meu lábaro bendito,
Da minh'alma agitado no infinito,
Através de outros lábaros sagrados.

Ódio são, ódio bom! sê meu escudo
Contra os vilões do Amor, que infamam tudo,
Das sete torres dos mortais Pecados!

Artigo “A cidade contra a favela”: http://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/172

domingo, 5 de maio de 2019

Para onde irão?



/// Ocupação em Florianópolis luta para impedir despejo ///

Por Míriam Santini de Abreu

Uma fila de gente descia a rua General Rosinha, no Mont Serrat, parte do maciço que corta o centro de Florianópolis de Norte a Sul e para onde, ainda no início do século passado, foram expulsas as populações pobres que viviam nas áreas planas das proximidades. Era noite de quinta-feira. Vinham com instrumentos, palavras de ordem e um grande estandarte amarelo. Ali volta e meia passam procissão e desfiles da escola de samba Copa Lord. Desta vez, não. Eram os moradores da Ocupação Marielle Franco, onde hoje estão 120 famílias. Premidos por uma ordem de despejo prestes a ser executada, eles buscam desesperadamente apoios na cidade. Na quinta, se juntaram ao pessoal da Batalha do Rap, na Praça Tancredo Neves, na frente da Assembleia Legislativa. Nesta sexta (3), caminharam nas ruas do Centro da capital catarinense com faixas coloridas em que ficava sem resposta a pergunta: “Pra onde vamos, senhor juiz?”

Pararam antes no Largo da Catedral, um dos lugares em que os movimentos sociais se encontram, no coração da capital catarinense. Era preciso explicar aos passantes – alguns dirigindo desaforos às famílias – o que significa, de uma hora para outra, deixar de ter onde morar. Falou o Jacir, agarrado ao cachorrinho branco, o Jacir que lá na Ocupação tem uma hortinha e pés de tudo quanto é chá: “Nós temos criança, nós temos cachorro, nós temos gato, nós não pedimos nada, queremos a nossa casa. Eu não quero que derrubem nossa casa. Eu peço, fortaleçam um irmão, fortaleçam as famílias, fortaleçam as crianças”. Falou um gurizinho, o Mateus, sobre a sua tristeza de ver a mãe sempre chorando porque, disse ele, de uma hora para outra não poderá mais deitar a cabeça sobre o travesseiro. Falou a Adriana, que já não sabe o que dizer ao filho de oito anos que pedia, sorrindo, enquanto ela ajudava a pintar as faixas: “Mãe, vem pra sombra, mãe, vem tomar um ar, mãe, relaxa!”.

– Eu não sei o que eu vou dizer pra ele, nenhuma dessas mães aqui sabe. O que dizer a eles quando eles não conseguem vaga em escola porque nós não temos um comprovante de endereço, porque nós não somos vistos como pessoas, aquelas crianças não são vistas. Mas tem uma notícia boa. Porque lá dentro da comunidade Marielle Franco nós somos humanizados e os nossos filhos brincam nas ladeiras abaixo, ladeiras acima, é o espaço que eles têm, é o espaço que eles acreditaram que nós tínhamos conquistado pra eles. Mas querem nos tirar isso, e não é justo. Para onde vamos com nossos filhos?

Pouco antes de Adriana falar, o sino da Catedral havia dobrado para o início da missa. E Adriana então interrompeu o que dizia e conclamou:
– Senhor padre, eu lhe peço, com licença, dá licença. Gente, vamos pedir ajuda para quem for. É a missa.

E foram subindo a escadaria Catedral adentro. Uns paroquianos não gostaram: - Falta de respeito...
Mas o padre, que se preparava para celebrar a missa, não achou. Acompanhou os moradores na volta ao alto da escadaria e lá se soube que ele era um filho da General Rosinha, perto dali nascido, no Mont Serrat, por onde os ocupantes haviam descido para buscar apoios na cidade:

- Eu sou lá do Morro - informou o padre.
E ao final da conversa, arrematou:

– Que vocês continuem se unindo e mostrando força para esse mundo que está aí. Este é o nosso mundo. E cada um de vocês pode lutar por dias melhores.

Era o padre Eugênio Kinceski.

***

Há pelo menos sete ocupações organizadas (fora as espontâneas) na região de Florianópolis em áreas públicas ou em privadas que estavam sem uso. Todas sofrem repressão da Polícia Militar, das prefeituras ou do Judiciário para reintegração de posse. Na parte insular de Florianópolis, por causa do preço dos terrenos, ainda não foi possível construir nenhum empreendimento do Minha Casa Minha Vida para a Faixa 1, que atende famílias de baixa renda. Na parte da capital que fica no continente, foram apenas dois, num total de 156 apartamentos. A maioria está na periferia de Palhoça, onde a terra é mais barata. A lista de pessoas cadastradas à espera de uma habitação de interesse social na capital chega a quase 17 mil, mas os dados são de seis anos atrás. Em contrapartida, Florianópolis tem um dos metros quadrados mais caros do país, como na badalada praia de Jurerê Internacional. Mas muita terra hoje explorada para o turismo foi obtida por fraude.

O livro “O golpe da ‘Reforma Agrária’: fraude bilionária na entrega de terras em Santa Catarina”, de Gert Schinke, através de extensa pesquisa nos arquivos do extinto Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina (IRASC), que funcionou entre as décadas de 1960 e 1970, mostra que, dos cerca de 16 mil títulos de propriedade entregues pelo órgão, em torno de 11.200 poderiam ser considerados no mínimo irregulares pelos critérios que legalmente davam base para reforma agrária. Em vez de serem entregues prioritariamente a camponeses, posseiros e pescadores, como previa a lei, as terras foram concedidas a militares, funcionários públicos, empresários pecuaristas e profissionais liberais.

A Fundação João Pinheiro mostrou, ano passado, que o déficit habitacional (número de famílias que vivem em condições precárias de moradia) aumentou. Em 2015, era 6 milhões e 355 mil. O gasto excessivo com o aluguel passou a representar 50% do déficit habitacional do país. Ou seja, diz o cientista social Fernando Calheiros, em 2015 mais de 3,177 milhões de famílias urbanas com renda de até 3 salários mínimos acabaram comprometendo 30% ou mais da renda familiar mensal somente com o custeio do aluguel.

Isso foi antes que, em 2019, o IBGE anunciasse que o Brasil está com 13,1 milhões de pessoas desempregadas.

No final de senana passado, os moradores estiveram no Encontro Estadual Ocupações Urbanas e, neste sábado, no I Fórum do BRCidades de Santa Catarina, ambos na UFSC, denunciando a falta de interesse da Prefeitura em resolver a situação. A parte pública em que as famílias estão é Zona Especial de Interesse Social, destinada justamente para quem se encontra em situação precária de moradia.