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Gustavo, Elaine, Gladis e Miriam |
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Centro de Susques |
Por Elaine Tavares
O ano é 2005. O lugar foge a qualquer conceito e é chamado de pórtico dos Andes. Fica bem no pé da Cordilheira, na puna argentina. Uma pequena comunidade de 800 pessoas, última parada antes de avançar pelas montanhas, no rumo da fronteira com o Chile. Tudo ali tem a cor da terra, até as gentes, de um marrom indescritível. Quase não há árvores. Encravado entre montes pedregosos, o povoado de Susques desafia a vida. O ar é raro, afinal, fica a 3.675 metros acima do nível do mar.
Susques não está nos roteiros turísticos. É apenas conhecido pelos caminhoneiros que precisam entrar na aduana, instalada ali, para acertar os papéis com os quais cruzarão o Paso de Jama, posto da fronteira. Passou quase a sua vida inteira - e é um povo antigo, milenar - sem luz elétrica. Essa novidade só chegou ao povoado - por 24 horas seguidas – no ano de 2002. Mas, é ali que vive uma professora primária, que levou a sério essa “tal ideia” de integração latino-americana. Parece que na nossa América só os "pueblos chicos" compreendem a necessidade de um encontro verdadeiramente humano entre as gentes dos mais diversos países.
Gladis Contreras, que naqueles dias já passava dos 60 anos, deu aulas para a criança de Susques até o começo dos anos 2000. Chegou ali jovenzinha, vinda de um povoado vizinho. Apaixonou-se, casou-se e nunca mais saiu. Agora está aposentada e cuida de uma pequena hospedaria, chamada de "La Vicuñita". Ela conta que, tão logo começou "essa onda" do Mercosul, decidiu aprender o português para, depois, poder ensinar aos alunos. Estudou por cinco anos a língua do maior país da América Latina. Confessa que tem dificuldades, pois não tem com quem praticar. Daí a alegria com que recebeu três brasileiras perdidas em busca do caminho dos Andes.
Gladis fez a sua parte na tentativa de compreender o “brasileiro”. Fala devagar, pronunciando bem as palavras. Tem um bom vocabulário e consegue compreender tudo. Mas isso não é algo comum. No mais das vezes, as pessoas de fala espanhola têm bastante dificuldade de entender o português, assim como os brasileiros também patinam no entendimento do espanhol, embora muitos façam o esforço supremo de falar o “portunhol”, buscando maior aproximação com os “hermanos”.
O certo é que, nas ruas, na vida das pessoas comuns, a integração se dá de forma natural. No jeito simples de cada um inscreve-se o desejo de aprender sobre a vida do outro, uma ou outra palavra, busca-se o conhecimento sobre a geografia, os costumes. A comunicação vai fluindo, natural, dos mais variados jeitos. O encontro humano se faz. E, quando a gente parte, fica um pouco do Brasil. Assim como, na bagagem, levamos também algo do lugar, das gentes.
Já na vida acadêmica ou política tudo parece tão difícil. A integração que se pensa é apenas econômica, abertura para o comércio. A língua é banida, sendo sempre imposta a da maioria, sem qualquer respeito à diferença. No mundo do comércio há o império do inglês e até os líderes governamentais acabam falando o idioma gringo quando visitam países estrangeiros.
Poucos na América Latina fazem o que fez a professora Gladis Contreras, aparentemente perdida no povoado de Susques. Ela percebeu que uma integração não acontece por cima e deve, isto sim, começar na tentativa de compreender o outro, dando-lhe o devido espaço. Deve permitir que o outro apareça na sua diferença, que se explicite, que se diga na sua língua. Um e outro, tentando se entender. Um e outro aprendendo um do outro.
Naquele dia passado em Susques, aprendemos que a vida naquelas alturas é difícil. Que Gustavo, o filho de Gladis, insiste numa velha tradição plantando no quintal de casa a quínua – um cereal típico das culturas autóctones, quase em extinção – e, com ela, faz deliciosas receitas que compartilha com sua gente. Aprendemos ainda que os homens do lugar ganham a vida nas salinas, no trabalho duro, na extração manual do sal, que extingue a saúde, que fere os olhos. Aprendemos que a palavra Susques (portal dos Andes) deriva do idioma quéchua, que o povo dali vivia do pastoreio e da agricultura e que, agora, já anda perdido de sua antiga forma de viver com as modernidades chegando.
E foi ali, na entrada para a cordilheira, que, numa noite de muita chuva, Miriam, Marcela e eu, premiadas, uma com dor de dente e as outras com o mal das alturas, compartilhamos a vida, falando um pouco em português, um pouco em espanhol, trocando receitas, contando histórias. No meio da noite argentina, integrados, sem que para isso fosse necessária qualquer lei. Só o desejo infinito de compartilhar e compreender...
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