quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Rua de afeto – Olavo Bilac

Atrás da árvore, a casa dos Parisi na Olavo Bilac, 2025. O prédio sobre a escada tomou o lugar da casa da nona

Velha casa da nona

Por Míriam Santini de Abreu

Casa é substantivo concreto, diz a classificação da língua portuguesa. Para mim, é abstrato. A pedra e a madeira de que são feitas têm alma. As casas são seres vivos. Elas nascem, crescem, envelhecem e morrem. As casas rangem, mudam de humor se está frio ou quente. As portas vergam, se expandem; as maçanetas enferrujam, o reboco se esfarela. As casas têm espírito.

Isso, dirão os descrentes, são apenas fenômenos físicos e químicos. É claro. Mas, desde o início dos tempos, somos, os humanos, fadados a interpretar, a dar sentido às coisas. Por isso nos custa tanto largar a vida, a vida que alimentamos também dentro de casa. 

Minha avó materna, Antonia, faleceu quando eu tinha 11 anos, e ainda estão no beco da Olavo Bilac, em Caxias do Sul, resquícios de meninices. A casa onde ela morava deu lugar a um prédio. Antes de a casa morrer, a tinta já havia há muito sumido; a madeira, de tão apodrecida, em alguns cantos se soltava ao toque dos dedos; as telhas só por milagre não despencavam do beiral. Nada restava, mas, contraditoriamente, restava tudo, porque ali estavam cristalizadas as minhas mais antigas memórias de infância. 

O sótão era o que mais me apavorava. Que medo quando os degraus de madeira cediam sob o meu peso e gemiam! E eu mesmo assim subia, atraída por um não sei o quê de mistério, de algo a ser secretamente revelado. Da janelinha eu via a rua, a solitária araucária na frente do terreno, e umas flores cujo nome não sei e nunca mais flagrei em jardim nenhum. Até as flores saem de moda. 

A nona morava na parte de cima da casa e eu, meus pais e meus dois irmãos no porão. A tremenda umidade do inverno da Serra Gaúcha atraía, para os nichos mais quentes daquelas velhas tábuas, uma fauna repelente. Eu, protagonista de estranhos feitos, fiquei famosa no beco por ter, sem querer, esmagado uma aranha caranguejeira ao correr de pés descalços. Vinham, esses bichos, da horta e da parreira atrás da casa, dois mundos a mutuamente se alimentar. Num dos canteiros eu enterrei, com uma sensação de triunfo, as adenóides extraídas de meu irmão do meio, trazidas dentro um pequeno vidro quando ele saiu do hospital. O Jardim das Adenóides. 

Na vizinhança, me embeveciam as lindas casas dos Scalabrin, dos Spada, dos Parisi, insuportavelmente sumarentas para a minha inveja agridoce. A mais amada era a casa de madeira rosa dos Parisi, rodeada por gramados e uma árvore até hoje de pé, ofertante de uma fava espinhenta que eu usava para brincar de pentear o cabelo e depois escondia num longo oco do tronco. É na frente da casa dos Parisi a minha foto com o adorado macacãozinho rosa, doado por alguém, cercada pelos meus irmãos e os dois irmãos Parisi, com o cachorrinho Dudi saltitando aos nossos pés.

Na garagem da casa dos Spada, com as irmãs Raquel e Rafaela, aprendi a ler e, na Escola Clemente Pinto, consegui entrar direto na primeira série com seis anos e sete graus de miopia. Foi rápido sair do “ivo viu a uva” para as deliciosas histórias da série Vaga-Lume. 

Visito vagarosamente a Olavo Bilac, da Marechal Floriano até a Rio Branco, quando vou a Caxias. A casa que parecia saída do filme “... E o vento levou”, perto da esquina com a Regente Feijó, cercada de árvores por quase meia quadra, virou um conjunto de torres tristes. Mas ainda estão ali a casa do Erni, que se fantasiava de Papai Noel no Natal, e a da Jacimara, onde nos juntávamos para brincar. Eu a percorro com uma euforia descontrolada e, às vezes, com uma pedra no peito. Mas chego em casa com aquele sentimento de fim de missa que me vinha quando a mãe, aos domingos, nos levava para a igreja. A sensação benfazeja de missão cumprida. De me percorrer na mais antiga rua dos meus afetos.

Casa dos Parisi, 1977, sob a árvore 

Na rua com meus irmãos, os Parisi e o Dudi, 1977


Casa dos Parisi com a velha árvore e os ocos esconderijos, 2025

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