quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Morre o jornalismo, nasce uma coisa – Parte 1



Míriam Santini de Abreu – jornalista

O artigo é resultado de uma conversa que a jornalista Elaine Tavares e eu tivemos para pensar o nosso fazer no nosso tempo, dando continuidade ao trabalho da revista Pobres & Nojentas 

Aprendi com Adelmo Genro Filho, o teórico gaúcho autor de uma teoria marxista do jornalismo, que pensar dialeticamente implica perceber o novo e, no jornalismo, estar atento à sua irrupção na vida cotidiana. É a partir desta premissa que se faz possível a afirmação: o jornalismo como o conhecemos está morrendo e outra coisa, a ser nomeada, está nascendo. Melhor ainda: o jornalismo morreu e outra coisa nasceu. Nós, jornalistas, estamos no olho do furacão, testemunhando o novo nascer e o velho sucumbir. Por agora, uma hipótese: o jornalismo se alimentava prioritariamente da vida cotidiana no espaço socialmente construído, na rua; a coisa que nasceu se alimenta, prioritariamente, da “vida cotidiana” das redes sociais. Isso afeta todas as etapas da produção jornalística, 1) tornando praticamente desnecessárias, por exemplo, apuração e entrevista; 2) erodindo os recursos de narração e descrição; 3) dispensando o movimento interpretativo da realidade na mediação jornalística. Assim, a coisa daí resultante não pode mais ser chamada de notícia ou reportagem. E nem de jornalismo.

Para as empresas jornalísticas, o que interessa é o lucro, venha da forma como vier. Umas mantém o velho em maior ou menor grau para manter alguma respeitabilidade; outras, como as de Santa Catarina, distribuem prioritariamente a coisa nova e pouco dela lembra o jornalismo. Em todas, redações cada vez mais enxutas e mal pagas com um misto de celetistas (minoria), freelas, MEIs, CNPJs, estagiários e colunistas sem remuneração, hoje tidos como “produtores de conteúdos”.

O professor e pesquisador Jorge Pedro Sousa, no livro “Uma história do jornalismo no Ocidente: génese e desenvolvimento de uma instituição social até ao final do século XX” (2024), traz uma detalhada análise focada nos meios impressos. Reproduzo uma relevante nota de rodapé sobre a ideia de jornal:

Jornal é um termo que provém do francês journal, que significa registo da jornada, ou registo da jorna, portanto, registo do dia. Provém da expressão anterior papier journal, que significava um registo escrito a cada dia. A palavra francesa journal provém do italiano giorno que deriva, por sua vez, do latim diurnum/diurnus, também com a forma diurnae, que significava diário, de onde provém, igualmente, diurnalis, com o mesmo sentido. As Actae Diurnae romanas são consideradas por vários historiadores uma espécie de jornal arcaico. (Jornal) Diário deriva do latim dies, ou seja, dia, sendo, portanto, uma publicação que aparece a cada 24 horas. (Sousa, 2024, p. 37)

Como se percebe, as novas tecnologias de informação e comunicação ao longo dos séculos 20 e 21 arrastaram a etimologia do termo “jornal” para uma realidade na qual rareiam os impressos diários. O jornal impresso do dia hoje virou a publicação digital do segundo/minuto

O jornalismo no Brasil como o conhecemos (conhecíamos) constituiu-se nos anos 50 do século passado com os grandes jornais do Rio de Janeiro. As mudanças foram profundas, desde a gestão das empresas até a produção do texto, que passou a usar o padrão dos veículos estadunidenses, e não mais europeus. Consagraram-se a chamada “pirâmide invertida” e o “lead”. Para os jornalistas, inicia-se um processo de profissionalização, com a criação de cursos e de legislação específica. 

Não cabe resumir as transformações de lá para cá nas empresas e no fazer jornalístico, bem sintetizadas na citada obra de Sousa, que distingue seis períodos na história do jornalismo baseada nos modos e meios jornalísticos dominantes. Mas há que citar o impacto da internet, das redes sociais e da Inteligência Artificial no âmbito da concentração oligopólica dos grandes grupos de comunicação e empresas de tecnologia e das transformações globais do capitalismo. Tais impactos aparecem na coisa – falta-lhe nome – ainda chamada de jornalismo sem mais o ser. 

A COISA

Exemplo 1: Postagem no Instagram de site de notícias e mídia nacional numa terça de janeiro de 2025:

“Só em MG: mulher entra em desespero após queijo rolar ladeira abaixo”

20 mil curtidas, 560 comentários

Exemplo 2: Postagem no Instagram de portal de notícias de Santa Catarina numa terça de janeiro de 2025

“VÍDEO: ‘Tadinha da capivara’; animal ‘atropela’ criança em praia de SC e cena viraliza”

Os dois exemplos ilustram parte expressiva das publicações nos sites das grandes empresas de comunicação. Pode-se alegar que o jornalismo historicamente acolheu os chamados “features” ou “histórias de interesse humano”, os "pequenos aconteceres", como dizia Antonio Olinto. É fato. Mas, na práxis jornalística, tais histórias tinham a ver com a "atmosfera comum da vida", no dizer de Genro Filho, trazendo fragmentos do cotidiano que davam ao leitor a experiência de compartilhar da condição humana. A revista Seleções – uma usina ideológica estadunidense famosa pelos textos bem escritos – , por exemplo, mantinha seções intituladas “Flagrantes da vida real” e “Retalhos do drama cotidiano”. 

Mas hoje, este tipo de postagem geralmente não constitui uma notícia, reportagem ou crônica alimentada pela realidade cotidiana movimentando a rotina de produção jornalística (pautar, apurar, entrevistar, redigir). São postagens que reproduzem outras postagens que “viralizaram” ou “lacraram” nas redes sociais. A mediação jornalística reduz-se a baixar/copiar/colar, muitas vezes com texto de poucas linhas para identificar a situação. A “fórmula” noticiosa “O quem?, o quê?, quando?, onde?, como? porquê?”, já identificável nas antigas Atas Romanas, é afrouxada ao extremo. 

Vale reproduzir o que a Visão Geral Criada por IA do Google (em 14/01/25) define como “viralizar” e “lacrar”:

Viralizar significa que um conteúdo digital se espalha de forma natural e voluntária por toda a rede, de modo rápido e em grande escala. A palavra viralizar ganhou popularidade com o surgimento das redes sociais.  

"Lacrar" é uma expressão popular que significa fazer algo muito bem, ou dizer algo incrível. No contexto das redes sociais, pode ser usada para descrever alguém que atrai atenção sem se relacionar com a realidade.

Ora! Conteúdos digitais não se espalham de forma “natural” e “voluntária”. Hoje, as grandes empresas de tecnologia patrocinam formas cada vez mais intensas e sofisticadas de controle e manipulação do processo informativo, crítica feita por Genro Filho ainda nos anos 80 em relação às empresas jornalísticas, agora reféns das “Big Techs”. 

No caso da expressão “lacrar”, é notável a afirmação da IA do Google sobre atrair atenção “sem se relacionar com a realidade”. Para engordar seus sites e redes sociais, as empresas jornalísticas engolfam viralizações e lacrações das redes, parte delas encenadas, sem que nem jornalistas tenham que se relacionar com a realidade, no “corpo a corpo com a vida”, como dizia o jornalista João Antônio. Genro Filho alerta que o jornalismo a serviço da emancipação humana deve justamente tomar a realidade em sua totalidade, e não como um “(...) agregado de fenômenos destituídos de nexos históricos e dialéticos” (GENRO FILHO, 1989, p. 156). Então, estamos falando de jornalismo x conteudismo.

Em relação às viralizações e lacrações, volto à obra de Souza, segundo a qual a Web “fez de cada indivíduo um potencial fabricante e difusor de notícias, tendência potenciada pelas redes sociais” (p. 27). Mas é o caso de chamar de “notícia” o resultado dessa potencial fabricação por parte de cada indivíduo? No livro, o autor traz um interessante termo, “intenção noticiosa”. Creio que há, sim, intenção noticiosa em parte das incontáveis postagens que segundo a segundo inundam a Web e as redes sociais, mas elas não são notícias. Nem jornalismo. 

Uma das desgraças do nosso tempo é que as pessoas já não diferenciam uma coisa de outra, fato perceptível mesmo no campo progressista, na qual se constata ignorância sobre a diferença entre notícia, reportagem, artigo de opinião, crônica, coluna. Então, sem esse conhecimento, tudo vale. Qualquer coisa pode ser chamada de jornalismo.

Em Florianópolis, multiplicam-se perfis no Instagram vendidos como noticiosos, seguidos por milhares de pessoas, sem divulgar Expediente ou assinar textos para informar quem são os profissionais responsáveis pelos conteúdos. Num ou noutro, há um contato de celular para anúncios, um e-mail do tipo contato@. Mais nada, nem nos sites. E ninguém se importa. Os que insistem em fazer jornalismo fora da grande imprensa e que se iludiam crendo conversar ao menos com suas "bolhas" há algum tempo já notaram: nem mais nelas têm audiência. Tornaram-se invisíveis e irrelevantes.

Sobre o que significa testemunhar a morte do velho e o nascimento do novo, reproduzo parágrafo do livro “Marxismo, filosofia profana”, de Genro Filho, ao concluir a sintetização dos traços do método dialético. Ele afirma: 

Ele [o método dialético] se pergunta, a cada instante: que nascimento anuncia o que está desaparecendo? Ao perguntar isso ele se coloca dois pressupostos: a) O que está nascendo não é algo arbitrário, completamente inesperado, pois mantém um nexo com o que está morrendo e cedendo seu lugar. O pensamento pode, em certa medida, prever o que está nascendo se compreender a totalidade do fenômeno em seu desenvolvimento anterior e suas contradições atuais. O que está morrendo, então, não desaparece sem deixar vestígios, ele morre e passa a viver na substância do outro e, assim, deixa sua herança, mas não é mais ele. b) O que está nascendo não é o que morreu sob outra forma, já que aquele morreu efetivamente. Assim, há algo de surpresa real, inesperado, que nunca pode ser previsto e compreendido inteiramente antes de aparecer. E mesmo depois, a compreensão é relativa e provisória, pois não sabemos integralmente o que o novo vai deixar ao tornar-se velho e sucumbir. Não fosse assim, uma filosofia genial poderia apreender, de uma vez por todas, a realidade em todos os seus desdobramentos (GENRO FILHO, 1986, p. 45-6).

Aí reside parte do desafio e do fardo do nosso tempo histórico, título de um livro de filósofo húngaro István Mészáros: separar o jornalismo da coisa, identificar onde vive o jornalismo, revirar a linguagem jornalística, dar um salto gigante adiante e levar a palavra viva lá onde a miséria do cotidiano embota qualquer esperança. 

REFERÊNCIAS

GENRO FILHO, Adelmo. Marxismo, filosofia profana. Porto Alegre, Tchê, 1986.

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, Porto Alegre: Tchê, 1989

SOUSA, Jorge Pedro. Uma história do jornalismo no Ocidente: génese e desenvolvimento de uma instituição social até ao final do século XX.  Lisboa: LabCom, 2024. Disponível em: https://labcomca.ubi.pt/wp-content/uploads/2024/11/2024_Uma-historia-do-Jornalismo-no-Ocidente.pdf. Acesso em: 14 jan. 2025.